Se há falta de vagas no sistema penitenciário para que condenados cumpram suas penas em regime semiaberto ou aberto, devem eles ser encarcerados ou recolhidos em prisão domiciliar? O que deve prevalecer nestes casos: o direito coletivo da sociedade de ter segurança pública ou o direito individual do condenado, de não cumprir uma pena mais grave do que prevê a lei?
A questão foi debatida em audiência pública nesta segunda-feira (27/5) no Supremo Tribunal Federal. A audiência foi convocada pelo ministro Gilmar Mendes, relator de um recurso interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul. Mais de 20 especialistas, entre juízes, gestores, defensores públicos e integrantes do MP se revezaram na tribuna do STF com argumentos contra e a favor da prisão domiciliar.
O debate irá subsidiar o julgamento do Recurso Extraordinário 641.320, no qual o MP gaúcho questiona decisão do Tribunal de Justiça do estado que concedeu prisão domiciliar a um condenado do regime semiaberto. O TJ gaúcho decidiu de forma mais favorável ao réu porque não havia vaga em estabelecimento voltado para o regime semiaberto para que ele cumprisse pena dentro das condições previstas em lei.
Como era de se esperar, o debate foi polarizado. Defensores públicos com o argumento de que o preso não pode ser apenado com mais rigor por conta da falta de organização do Estado em organizar o sistema prisional. Membros do Ministério Público com a justificativa que a “sociedade cordata” não pode arcar com o risco e as consequências de ter criminosos na rua por conta da falta de estrutura estatal.
Em meio ao debate polarizado, houve sugestões interessantes e a apresentação de dados alarmantes. O juiz auxiliar do Conselho Nacional de Justiça, Luciano André Losekann, revelou como é complexa e complicada a situação dos presos que cumprem pena em regime semiaberto no Brasil. Coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do CNJ, Losekann mostrou que, na prática, o regime semiaberto no país é uma ficção.
“Na maioria dos estados, os presos aguardam em eternas listas de espera sua progressão do regime fechado para o semiaberto. Mas as listas são absolutamente ilusórias porque quem consegue Habeas Corpus acaba passando na frente de presos que esperam a mais tempo pela progressão”, afirmou Losekann. O juiz disse que em um dos mutirões carcerários feitos pelo CNJ em São Paulo, em 2011, “havia sete mil presos já com progressão deferida aguardando no regime fechado a vaga no semiaberto”.
Sem fiscalização
A maior parte dos debatedores frisou que sem fiscalização qualquer regime de cumprimento de pena fora do fechado não surtirá o efeito desejado: a ressocialização. “De nada adianta fixar prisão domiciliar se não houver parâmetros mínimos de fiscalização. Muitas vezes, os presos voltam a delinquir no livramento condicional porque não há qualquer fiscalização”, observou Luciano Losekann.
Ponto comum também foram as críticas de que a União não repassa as verbas para investimento no sistema carcerário e, por outro lado, os estados não investem no sistema do regime semiaberto e outros que visam à ressocialização de presos. Para Losekann, talvez fosse necessário pensar em um sistema que substituísse o regime semiaberto pelo livramento condicional, mas efetivamente monitorado. Isso porque, na maioria dos casos, o sujeito fica esperando uma proposta de trabalho para poder progredir. Proposta que, por vezes, nunca chega. A espera já fez o regime semiaberto ser apelidado de “regime semifechado”. De acordo com Losekann, há no país 75 mil pessoas cumprindo pena em regime semiaberto e ainda há déficit de 24 mil vagas.
Segundo o ministro Gilmar Mendes, hoje mais de 20 mil presos cumprem pena em regime mais grave do que deveriam por falta de vagas nos regimes aberto e semiaberto. Segundo dados do Ministério da Justiça, a população carcerária no Brasil é de 548 mil pessoas. E os presídios e cadeias dispõem de apenas 310 mil vagas.
Súmula vinculante
O defensor público geral da União, Haman Tabosa Córdova, lembrou que em fevereiro de 2011 a Defensoria Pública apresentou a Proposta de Súmula Vinculante 57, que pede a possibilidade de cumprimento de pena em regime menos severo diante da falta de vagas no regime semiaberto. E defendeu a aprovação da súmula.
De acordo com o defensor, a previsão de investimentos do governo federal da ordem de R$ 1,2 bilhão pode ajudar, mas não resolverão o problema. Haman Tabosa, como outros debatedores, frisou que raramente os recursos financeiros são aplicados na construção de unidades específicas para o regime semiaberto. De forma geral, são construídas unidades apenas para separar condenados definitivos dos presos provisórios. “A ineficiência do Estado não pode permitir a violação do direito à liberdade do cidadão”, defendeu.
Os integrantes do Ministério Público que participaram da audiência atacaram a possibilidade de o Supremo sumular a matéria. Mas não só eles. O juiz Losekann, por exemplo, disse que a aprovação de uma súmula vinculante nesse sentido tem de ser acompanhada de um regramento mínimo, principalmente no que diz respeito à fiscalização do cumprimento de regimes domiciliar, aberto e semiaberto.
Ivory Coelho Neto, procurador de Justiça do MP gaúcho, atacou a proposta de súmula. Segundo ele, na prática, “o benefício judicial é a conversão da condenação imposta pela sociedade brasileira por meio do Judiciário em mera censura moral”. Isso porque não há, segundo ele, uma efetiva fiscalização para aferir se a prisão domiciliar está sendo cumprida. Segundo ele, a determinação judicial se transforma em uma recomendação para que o condenado permaneça em casa.
O procurador, contudo, não é contra a concessão de prisão domiciliar na falta de vagas em regime semiaberto. Coelho Neto ataca a adoção generalizada da medida. Ele sugeriu que o STF, ao julgar o recurso de relatoria de Mendes, dê interpretação conforme a Constituição ao caso para estabelecer condições mínimas para a concessão da prisão domiciliar.
Os procuradores Miguel Tassinari de Oliveira e Paulo José de Palma, que representaram o Ministério Público de São Paulo, também criticaram a possibilidade de conversão da prisão em regime semiaberto em prisão domiciliar automaticamente. “Ao permitir que um indivíduo condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade em regime semiaberto cumpra a pena em regime menos gravoso, o Estado baixa o nível de proteção à segurança pública aquém do desejado”, afirmou Oliveira. Já Paulo de Palma defendeu que os interesses maiores da sociedade possam devem ser resguardados nestes casos.
A audiência pública seguirá nesta terça-feira (28/5), com mais oito expositores. Falarão representantes de secretarias estaduais que tratam da questão da segurança pública e administração penitenciária dos estados de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo. Também está prevista a exposição do presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, Herbert José Almeida Carneiro.
Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 27 de maio de 2013
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