sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Filme Luta por justiça mostra que Brasil deve reencontrar inocentes

O filme Luta por justiça mostra a trajetória de um advogado que se forma em uma das mais prestigiadas faculdades de Direito dos Estados Unidos e abandona uma carreira promissora para atuar em defesa de pessoas presas por crimes que não cometeram. 
É a história de Bryan Stevenson, um advogado negro que, formado em Harvard, decidiu ir para o Alabama para defender pessoas que estão no corredor da morte. Em seus 30 anos de atuação, Stevenson conseguiu liberar centenas de acusados injustamente ou diminuir as suas penas, chamando a atenção para a assistência jurídica inadequada e preconceituosa, que prejudica em especial homens jovens e negros. 
Nesse momento em que tanta gente anda entorpecida pelo desejo de culpar e punir, a busca pela inocência parece ainda mais gratificante e emocionante. A pré-estreia foi feita aqui, em São Paulo, em parceria com o Innocence Project Brasil, coordenado pelas advogadas Dora Cavalcanti e Flavia Rahal, que vêm fazendo um trabalho extraordinário em nome dessa causa.  
Estão querendo nos vender a ideia de que penas mais severas e mais prisões são a solução para problemas variados, da insegurança até a corrupção. Mas, como mostra o filme, não é tão simples assim.
O primeiro problema a ser encarado é o fato de que o sistema é falho e, ao penalizar quem não tem culpa, faz aumentar ainda mais a sensação de injustiça, exatamente um dos males que se quer combater. Casos criminais podem ser complexos e cheios de reviravoltas. Por isso é importante que as pessoas tenham direito a um processo adequado do começo ao fim, passando por todas as etapas, sem atalhos forçados para a cadeia, como querem no Brasil os defensores da prisão em segunda instância, para ficar em um único e suficiente exemplo.
Outro risco da apologia ao castigo é fomentar a tese de que o conflito é mais eficiente do que o diálogo para superar nossos desafios. Os experimentos mais bem-sucedidos, até mesmo nos Estados Unidos, com seus mais de dois milhões de presos, sugerem que descobrir formas de esvaziar cadeias é mais eficiente do que trabalhar para enchê-las. Há um outro detalhe: em nosso país, nas últimas décadas, tanto os índices de criminalidade quanto os números de presos só cresceram. Mais de impressionantes 900% nós últimos 30 anos. Com mais de 800 mil presos, somos, hoje, a terceira população carcerária do mundo. Mantidos os índices de encarceramento, chegaremos em 2025 com mais de um milhão e meio de detentos nas masmorras medievais do nosso sistema penitenciário. Alguma coisa está errada. 
Além disso, o discurso punitivista cria um ambiente perfeito para o desenvolvimento de um sistema paralelo de “justiça”, ou, por que não dizer, de “justiçamento”. O que pretende um promotor quando vaza um documento sigiloso, a não ser instigar a opinião pública a julgar? Ou o que desejam os milicianos digitais ao atacar a honra de determinados alvos sem provas, com fakes e mentiras? E o que dizer ainda de juízes que se escoram mais em interpretações do que nos fatos e na lei? E a mídia? A mídia não poderia ficar de fora. Quando publica teorias infundadas, sem a devida checagem, municia os justiceiros, mesmo sem querer.
É esse o caldo que leva inocentes para a cadeia.
Por tudo que representa, é inevitável falar do processo que levou à prisão o ex-presidente Lula. Os bastidores, revelados nos áudios divulgados pela "vaza jato", mostram que o processo foi conduzido do começo ao fim pelo desejo de punir, e não pela missão de julgar. Ficamos com a impressão de que os despachos já estavam prontos e assinados antes das provas serem anexadas aos autos. 
Um processo que começou pelo fim... Um drama, compartilhado por muitos outros Silvas.
Luta por justiça é o tipo de filme que deve ser visto por todos, em família, para nos lembrarmos que todos são inocentes até que se prove o contrário e que só o devido processo legal e uma sentença transitada em julgado tem o condão de dizer o contrário. O trabalho da Dora Cavalcanti e da Flavia Rahal é um sopro de esperança. Sem sombra de dúvida é a semente de uma mudança. Essa é também uma das bandeiras do Grupo Prerrogativas, que reúne algumas dezenas de juristas comprometidos com a defesa da democracia, das instituições, da liberdade de imprensa e com um sistema de justiça que não seja seletivo e que não esteja a serviço de interesses políticos e eleitorais.
O Brasil está há muito tempo procurando culpados. Está na hora de reencontrar os inocentes.
Marco Aurélio de Carvalho é advogado especializado em Direito Público, sócio-fundador do Grupo Prerrogativas e da  Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e membro do Sindicato dos Advogados de São Paulo.

É possível suspender CNH por dívida, reafirma 3ª Turma do STJ


É possível decretar a suspensão da CNH e do passaporte de devedor, desde que esgotados os meios típicos de cobrança de crédito e mediante decisão devidamente fundamentada. Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça permitiu a aplicação da medida contra sócios alvo de ação de despejo e cobrança de alugueis em fase de cumprimento de sentença.
O acórdão reafirma jurisprudência recente construída pelo colegiado, mas ainda não consolidada no STJ, já que o tema não foi analisado pela 4ª Turma em recurso especial. Em decisão recente, a 3ª Turma exigiu indícios de ocultação de patrimônio para a adoção de “meios executivos atípicos” como a suspensão da carteira de motorista do devedor.
Relatora tanto daquele recurso como deste, a ministra Nancy Andrighi explicou, em ambas ocasiões, que o Código de Processo Civil deu poder ao juiz sobre a aplicação das medidas executórias atípicas, dando maior elasticidade ao processo de cobrança de acordo com as circunstâncias de cada caso.
Trata-se de coerção psicológica com o objetivo de pressionar o devedor para que se convença de que deve pagar a dívida. A ministra compara a medida coercitiva indireta à prisão por falta de pagamento de pensão alimentícia, em que o tempo na prisão não exime o devedor do pagamento.
"Não se nega, no entanto, que, em certas ocasiões, a adoção de coerção indireta ao pagamento voluntário possa se mostrar desarrazoada ou desproporcional, sendo passível, nessas situações, de configurar medida comparável à punitiva. A ocorrência dessas situações deve ser, contudo, examinada caso a caso, e não aprioristicamente, por se tratar de hipótese excepcional que foge à regra de legalidade e boa-fé objetiva estabelecida pelo CPC/15", conclui a ministra.
Assim, estabelece balizas para que essas medidas sejam aceitáveis: intimação prévia do devedor pelo juiz, para pagamento ou apresentação de bens destinados a saldá-lo; decisão devidamente fundamentada, "não sendo suficiente para tanto a mera indicação ou reprodução do texto do artigo 139, IV, do CPC/15"; e esgotamento prévio dos meios típicos de satisfação do crédito.
"Em suma, é possível ao juiz adotar meios executivos atípicos desde que, verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio apto a cumprir a obrigação a ele imposta, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade", resumiu a relatora.
Caso concreto
No caso concreto, o juiz de primeira instância determinou a suspensão da CNH e do passaporte dos sócios devedores, bem como a desconsideração da personalidade jurídica e o direcionamento da execução a seus sócios.

Em segundo grau, o Tribunal de Justiça da Paraíba negou a suspensão da CNH. Diante da impossibilidade de análise de provas, a ministra determinou o retorno dos autos ao primeiro grau para verificação da jurisprudência definida pelo STJ na hipótese.
Clique aqui para ler a decisão
REsp 1.854.289

 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 27 de fevereiro de 2020.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Condenação por improbidade exige prova de prejuízo aos cofres públicos

É inadmissível a aplicação ao réu das penas previstas para a modalidade de improbidade administrativa sem comprovação de lesão ao erário, ou seja, de efetivo prejuízo para os cofres públicos, requisito necessário para configurar o ilícito previsto no artigo 10, inciso VIII da Lei 8.429/92.
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Ex-prefeito foi absolvido pelo TJ-SP por dispensar licitação de adereços de carnaval
Com esse entendimento, a 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu a Prefeitura de Catanduva e o ex-prefeito Geraldo Antonio Vinholi em ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público. Vinholi foi acusado de dispensa indevida de licitação mediante fracionamento de compras de produtos carnavalescos.
Em primeiro grau, a ação foi julgada improcedente. O MP recorreu, mas o TJ-SP manteve a sentença, por unanimidade. Segundo o relator, desembargador Djalma Lofrano Filho, não ficou comprovado que as mercadorias foram compradas por valores acima do mercado, a configurar superfaturamento, enriquecimento ilícito e dano ao erário.
No voto, ele citou os artigos 23 e 24 da Lei 8666/93, que permitem a dispensa de licitação para compras de até R$ 8 mil, valor “não ultrapassado em cada nota de empenho colacionada aos autos”, ou seja, nenhuma das diversas notas apresentadas pela prefeitura referentes à compra dos adereços de carnaval foi superior a R$ 8 mil.
“A finalidade dos produtos adquiridos justifica as compras em diversas lojas da região central da cidade”, disse. “Cada fantasia possui sua própria característica e complexidade, sendo impossível obter do mesmo fornecedor todos os materiais necessários”, completou o desembargador, destacando que todos os produtos adquiridos foram devidamente usados nas festas de carnaval de Catanduva em 2014.
O desembargador afirmou ainda que o Ministério Público não juntou aos autos qualquer orçamento prévio para comprovar que os valores dispendidos pelos servidores nas compras do carnaval encontravam-se acima do mercado: “Sendo assim, o autor não se desincumbiu do ônus de provar o fato alegado, como lhe impõe o artigo 373, I, do Código de Processo Civil”.
Com base no acervo probatório descrito, Djalma Filho afirmou que não há como concluir, “com a segurança necessária à condenação”, que os réus efetivamente praticaram atos que se amoldam à tipificação do artigo 10, inciso VIII da Lei 8.249/92. “Tratando-se de improbidade administrativa prevista no artigo 10 da lei respectiva, exige-se prova escorreita do dano, que não pode ser presumido”, disse.
 é repórter da revista Consultor Jurídico
Revista Consultor Jurídico, 26 de fevereiro de 2020.

Proposta cria política para prevenir fatores que geram violência entre jovens

Ordem do dia para discussão e votação de diversos projetos. Dep. Ivan Valente (PSOL - SP)
Deputado Ivan Valente: “Propomos um novo caminho, onde as bombas e os cassetetes utilizados pelo Estado para atacar os jovens no baile funk são substituídos pelos livros"

Para o autor, as políticas atuais de segurança pública, focadas na repressão, são caras e deixam um saldo de mais violência

O Projeto de Lei 6431/19 cria medidas para enfrentamento da violência através de ações de prevenção à exposição de crianças e jovens a fatores de risco. O texto tramita na Câmara dos Deputados.
De autoria do deputado Ivan Valente (Psol-SP), a proposta altera diversas leis, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei Orgânica da Saúde e a Lei Anticorrupção. Segundo o deputado, o Estado precisa se antecipar e agir antes que os jovens sejam vítimas ou desenvolvam comportamentos violentos.
Valente afirma que as políticas atuais de segurança pública, focadas na repressão, além de caras para os cofres públicos, deixaram um saldo de mais violência. “Propomos um novo caminho, onde as bombas e os cassetetes utilizados pelo Estado para atacar os jovens no baile funk são substituídos pelos livros, pela sala de aula e pela oportunidade”, disse.
Protocolo
Pela proposta, o Estado deverá atuar para combater os fatores de risco que geram violência, que são circunstâncias, eventuais ou recorrentes, que aumentam as chances de uma criança ou adolescente tornar-se vítima ou perpetradora de violência, comparada a outras que não estão expostas às mesmas condições.

Entre os fatores de risco estão exposição a ambientes com altas taxas de violência, convívio com pessoas ou grupos em que a violência é encorajada ou normalizada, e problemas com uso de álcool ou outras drogas.
Os critérios para avaliação dos fatores de risco que geram violência, incluindo as principais modalidades de incidência no País, serão publicados pelo governo em um documento chamado protocolo nacional de avaliação de fatores de risco que geram violência.
Elaborado com base em consenso técnico-científico de especialistas e participação social, o documento trará diretrizes e recomendações para gerenciamento dos fatores relacionados à violência, especialmente, entre crianças e adolescentes. O texto do deputado estabelece que o protocolo será periodicamente atualizado e deverá ser adotado por estados, Distrito Federal e municípios.
Financiamento
O projeto também prevê fontes de financiamento para a nova política de prevenção, como o Fundo Nacional Antidrogas (Funad), o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente (FNCA) e os recursos arrecadados com as multas aplicadas às empresas condenadas com base na Lei Anticorrupção.

Outra fonte proposta pelo deputado é o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), que foi criado para financiar a universalização dos serviços de telecomunicações.
Tramitação
A proposta será analisada em 
caráter conclusivo pelas comissões de Seguridade Social e Família; Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado; Finanças e Tributação; e Constituição e Justiça e de Cidadania.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Cinco anos de audiência de custódia: mitos e verdades


As audiências de custódia, mecanismo pelo qual uma pessoa é levada a um juiz após ser presa, completam cinco anos nesta segunda-feira (24/2).

Iniciadas na gestão do ministro Ricardo Lewandowski a partir de tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, e posteriormente confirmadas pelo Judiciário (ADPF 347) e pelo Legislativo (pacote anticrime), é inegável que o instituto se consolidou nas 27 unidades da federação.
Já são pelo menos 700 mil audiências que resultaram na concessão de 280 mil liberdades provisórias. No entanto, a desinformação sobre seus objetivos e funcionamento alimentam polarizações prejudiciais à noção de segurança pública eficiente.
Primeiramente, é preciso desarmar o batido chavão “polícia prende, Justiça solta”. É papel da polícia recolher pessoas que cometeram infração. Porém, é dever do Judiciário analisar o contexto em que se deu a prisão, avaliando, segundo as leis, se a pessoa responderá ao processo presa ou em liberdade, ou ainda se a prisão foi executada corretamente. Não é o juiz, e sim nossa Constituição, que determina a liberdade como regra enquanto corre o processo — o que está longe de significar impunidade, pois, se condenada, a pessoa cumprirá a pena devida.
Também exige mais reflexão a afirmação de que as audiências de custódia soltam presos perigosos. Prisões em flagrante raramente alcançam os crimes mais graves, como homicídio e estupro, que em geral demandam tempo e atividade de investigação policial. No Rio de Janeiro, por exemplo, estudo da Defensoria Pública indica que a maioria dos flagrantes envolvem crimes sem violência. Se homicidas e estupradores pouco chegam às audiências de custódia, é fato que não serão colocados em liberdade quando esses crimes venham a acontecer, pois o Judiciário é rigoroso nessas situações, assim como nos casos de reincidência.
Outro tema polêmico, a reincidência pós-audiência de custódia também demanda evidências à luz dos casos que vez ou outra repercutem na imprensa e nas redes sociais. Dados recentes de tribunais do Distrito Federal, de Mato Grosso e do Maranhão, por exemplo, indicam que menos de 15% dos presos em flagrante liberados em audiência de custódia voltam a ser presos. A ideia de que as audiências de custódia incentivam mais crime, igualmente, não se sustenta diante do quadro nacional. Enquanto a redução nas taxas de crimes vem sendo celebrada nos últimos anos, nunca se realizaram tantas audiências de custódia no país, com um aumento de 56% de audiências entre 2017 e 2019.
Para os críticos da audiência de custódia como controle da superlotação carcerária, sugiro uma dose de pragmatismo. Entre 2009 e 2019, 300 mil pessoas ingressaram em nossas prisões, mas apenas 182 mil vagas foram criadas, descompasso que não deve se resolver em um futuro próximo dada a crise fiscal no país. Vale lembrar que a superlotação e as péssimas condições de cumprimento de pena no Brasil foram o gatilho para o surgimento das facções criminosas, e que ao enviarmos pessoas envolvidas em crimes não violentos ao encontro desses grupos, estamos fornecendo mão de obra barata para o crime organizado.
As audiências de custódia, ademais, promovem racionalização do gasto público ao evitarem prisões ilegais ou desnecessárias, uma vez que o custo de manutenção de um preso é, segundo estimativas, de cerca de R$ 3.000 por mês, enquanto a criação de cada nova vaga custaria cerca de R$ 50 mil. Essa afirmação se reforça na evidência de que pelo menos 37% dos presos provisórios acabam soltos após decisão judicial, como já divulgado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Nos Estados Unidos, onde vários estados já adotam o desencarceramento como estratégia de segurança pública, a ideia do “tough on crime” vem sendo substituída pelo conceito “smart on crime”, que preconiza políticas mais eficientes para o controle da criminalidade. Longe de representarem um risco, as audiências de custódia são um importante passo nesse sentido e, sobretudo, a convicção de uma Justiça presente no país.
José Antônio Dias Toffoli é presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

A inconstitucional falta de análise de impacto político-criminal

Na prolação da decisão liminar que suspendeu, cautelar e indefinidamente, diversos dispositivos da Lei 13.964/2019 — incluídos aqueles atinentes ao juiz das garantias —, o ministro Luiz Fux apontou a possível violação a diversos dispositivos constitucionais, a gerar conjecturadas inconstitucionalidades formais e materiais. Entre os vícios de ordem material, particularmente no que toca aos recém introduzidos artigos 3º-A a 3º-F do Código de Processo Penal, Fux indicou a violação ao artigo 113 do ADCT, com a redação dada pela EC 95/2016 (que instituiu o Novo Regime Fiscal da União), segundo o qual “a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”, bem como aos artigos 99 (por conta de violação à autonomia financeira do Poder Judiciário) e 169 (em razão da ausência de prévia dotação orçamentária para a instituição de gastos por parte da União) da Constituição Federal.
Para o ministro, há dois grupos de argumentos que demonstram a inconstitucionalidade material dos arts. 3º-B a 3º-F do CPP: (i) a ausência de dotação orçamentária e estudos de impacto prévios para implementação da medida e (ii) o impacto da medida na eficiência dos mecanismos brasileiros de combate à criminalidade.
Quanto ao primeiro gênero de argumentos, Fux considera que, como é “inegável que a implementação do juízo das garantias causa impacto orçamentário de grande monta ao Poder Judiciário”, há violação à exigência constitucional de prévia dotação orçamentária para a realização de despesas por parte dos entes federativos, bem como à autonomia do Poder Judiciário. Ainda quanto ao aspecto orçamentário, aponta que “não há notícia de que a discussão legislativa dessa nova política processual criminal que tanto impacta a estrutura do Poder Judiciário tenha observado” o requisito constitucional indicado no artigo 113 do ADCT; indica, assim, a inexistência de estimativa de impacto orçamentário e financeiro. Fux conclui que, embora não caiba ao Poder Judiciário definir as prioridades na alocação de recursos públicos, incumbe-lhe assegurar a observância àquele dispositivo constitucional.
Sem ingressar no mérito quanto à constitucionalidade dos dispositivos que disciplinaram o juiz das garantias, a premissa que norteia esta análise é a de que, no limite, extrapolados os fundamentos acima descritos, o reconhecimento da inconstitucionalidade dos artigos 3º-B a 3º-F do CPP em razão da ausência de estimativa do seu impacto orçamentário conduziria à declaração da incompatibilidade constitucional de parte considerável dos dispositivos introduzidos pela Lei 13.964/2019. Em uma perspectiva mais geral, esse vício atingiria, ademais, parcela significativa das normas penais editadas pelo parlamento brasileiro.
O silogismo é simples: se (i) “a ausência de dotação orçamentária e estudos de impacto prévios para implementação da medida” conduz à inconstitucionalidade dos dispositivos legais e (ii) a Lei 13.964/2019 não foi antecedida por qualquer análise de impacto orçamentário e político-criminal, (iii) todos os dispositivos que causam impacto orçamentário são inconstitucionais.
Arrojada, uma conclusão nesses termos demandaria uma reformulação de praticamente toda a legislação penal e processual penal brasileira, dado que a análise de impacto orçamentário é uma ilustre desconhecida do legislador quando se trata de normas criminais.
A própria Lei Anticrime notabiliza-se, desde a sua proposição, pelo trato pouco cuidadoso em relação a impactos orçamentários eventualmente decorrentes dos dispositivos propostos. Na exposição de motivos do projeto encaminhado à Câmara dos Deputados, constou apenas que, entre as vinte medidas propostas, apenas a criação dos Bancos Nacionais de Perfis Balísticos, de Impressões Digitais e Multibiométrico demandaria recursos adicionais, para o que haveria “adequação orçamentária e financeira que suportem tais iniciativas”.
A afirmação, logicamente, é equivocada. Para constatá-lo, basta a consulta a alguns dispositivos presentes na redação original do Pacote Anticrime e agora introduzidos na legislação penal e processual penal. Os dispositivos responsáveis pela instituição do whistleblowing (Lei 13.608/2018), por exemplo, preveem que a administração pública deverá manter ouvidorias vocacionadas ao recebimento de denúncias formuladas pelos “informantes do bem” — o que, é evidente, demanda o dispêndio de recursos públicos. Da mesma forma, o aumento de penas e de prazos para progressão de regimes prisionais também reclama gastos adicionais.
No grupo de trabalho instituído na Câmara dos Deputados com o objetivo de aperfeiçoar a legislação penal brasileira, o cenário não foi distinto: em momento algum o aspecto orçamentário ocupou papel relevante nas discussões, ressalvado requerimento em que o deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ) solicitou ao Ministério da Justiça e Segurança Pública a estimativa do impacto orçamentário e financeiro decorrente dos projetos apreciados por aquele colegiado[1].
A pouca relevância atribuída aos impactos orçamentários e político-criminais é apenas mais uma manifestação da irracionalidade que caracteriza o processo legislativo brasileiro em matéria penal. Como observa Chiavelli Falavigno, “estudos de impacto prévios ou posteriores também não fazem parte do processo legiferante, o que é até compreensível diante da total ausência de uma finalidade clara a ser alcançada por meio dos projetos de lei”[2]. Com efeito, as leis penais brasileiras carecem, em geral, da racionalidade pragmática mencionada por José Luis Díez Ripollés[3], em alusão ao ajuste dos objetivos ideais da legislação às possibilidades reais de intervenção franqueadas à sociedade — inclusive em termos econômico —financeiros[4]. Em um país que edita 42 leis penais por década[5], essa constatação é alarmante.
Nesse cenário, caberá ao Plenário do Supremo Tribunal Federal responder a uma indagação fundamental: são constitucionais as leis penais editadas à revelia de qualquer estudo de impacto orçamentário e político-criminal? A resposta a essa questão, embora imediatamente voltada aos dispositivos que instituíram a figura do juiz das garantias, pode afetar, de forma mediata, boa parte da legislação penal brasileira.
[1] Pelo menos no âmbito do Poder Executivo, o cenário, em uma análise de lege lata, não deveria ser esse, porque o Decreto 9.191/2017 — que estabelece normas para a redação de proposições legislativas por aquele Poder —, em seu artigo 27, II, dispõe que, “na hipótese de a proposta de ato normativo gerar despesas, diretas ou indiretas, ou gerar diminuição de receita para o ente público, a exposição de motivos das proposições [deverá] demonstrar o atendimento ao disposto nos art. 14, art. 16 e art. 17” da Lei de Responsabilidade Fiscal e no art. 107 do ADCT. No inciso I do mesmo artigo, demanda-se a “síntese do problema cuja proposição do ato normativo visa a solucionar”; “a justificativa para a edição do ato normativo na forma proposta; e “a identificação dos atingidos pela norma”.
[2] Ausência de racionalidade na política criminal no Brasil. Consultor Jurídico. 28. jan. Disponível em: bit.ly/2uOrGAU.
[3] La racionalidad de las leyes penales. Madrid: Editorial Trotta, 2003.
[4] Uma solução – ainda que parcial – para este problema é proposta por Carolina Costa Ferreira (O Estudo de Impacto Legislativo como possível estratégia de contenção do encarceramento em massa no Brasil. Rev. Bras. de Ciências Criminais, v. 129, p. 137-180, mar. 2017): a realização de estudos de impacto legislativo pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária em alguma fase da análise de proposições legislativas.
[5] FERREIRA, Carolina Costa. O estudo de impacto legislativo como estratégia de enfrentamento a discursos punitivos na execução penal. Tese (Doutorado) – Curso de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
 é advogado no escritório Guedes Pinto Advogados, doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UFSC e especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Univali e pela ABDConst).
Revista Consultor Jurídico, 23 de fevereiro de 2020.

Justiça Presente contribui para a melhoria no quadro prisional

Justiça Presente contribui para a melhoria no quadro prisional

O programa incentiva novas e mais adequadas formas de responsabilização, partindo da premissa de que o encarceramento não é a única e eficiente alternativa, tampouco sustentável, para resolver as complexas questões que concernem à segurança pública

A divulgação de dados atualizados sobre o encarceramento no país, indicando a queda da população prisional e do número de presos provisórios, reforça os resultados do programa Justiça Presente. Com ações em campo iniciadas entre março e junho de 2019, o programa incentiva novas e mais adequadas formas de responsabilização, partindo da premissa de que o encarceramento não é a única e eficiente alternativa, tampouco sustentável, para resolver as complexas questões que concernem à segurança pública. Parceria inédita entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com o apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Justiça Presente vem colhendo resultados a partir das parcerias estabelecidas com os tribunais e outros atores locais, investindo em tecnologia e inovação em gestão para soluções ao cenário desfavorável no sistema prisional.

A partir de dados levantados com os Executivos locais, o comparativo entre o Levantamento de Informações Penitenciárias (Infopen) do Ministério da Justiça e Segurança Pública e o projeto Monitor da Violência – parceria entre o site G1, o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública -, indicam uma queda de 21 mil pessoas em privação de liberdade entre junho de 2019 e o início de 2020. Também foi registrada redução no percentual de presos provisórios, de 254 mil no Infopen para 212,8 mil (este último sem os dados de Goiás, que em junho de 2019 eram 10,8 mil).

De acordo com o supervisor do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Prisional e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, conselheiro Mário Guerreiro, os números mostram o acerto da abordagem do Justiça Presente. “O programa parte de conceitos estratégicos tanto por incidir sobre os números maiúsculos do nosso sistema prisional, superando o discurso equivocado e ineficaz de que (apenas) mais vagas resolverão todos os problemas, quanto por apostar na expansão do SEEU, qualificação das audiências de custódia, ampliação de políticas de alternativas penais e monitoração eletrônica e ações de atenção a egressos via Escritórios Sociais”.

Para o conselheiro, os resultados até aqui alcançados são perceptíveis e já se fazem visíveis pela forma inovadora como o programa aborda o ciclo penal, tanto que pela primeira vez e de modo inédito discutiu um plano nacional adaptável à realidade de cada unidade da federação, investindo em estreitas parcerias com os atores locais. “Estamos promovendo uma ampla movimentação nos estados, reunindo atores que pouco se falavam, pautando temas e provendo em suporte ao poder público local no que é necessário. Inclusive, enviamos técnicos do programa para atuarem em parceria junto aos tribunais. Estamos convencidos que não há política penal factível sem envolver a todos.”
Para a coordenadora da área de Paz e Governança do PNUD Brasil, Moema Freire, o Justiça Presente inova ao trabalhar eixos estruturantes para o fortalecimento da gestão dos sistemas penal e socioeducativo, assim como das alternativas penais. “Os resultados do primeiro ciclo de implementação do programa já começam a ser registrados e espera-se que este deixe um importante legado para o país, a partir da atuação do Poder Judiciário nessas temáticas.”
Justiça Presente
Segundo o coordenador do DMF/CNJ, juiz Luís Lanfredi, os números divulgados não surpreendem e denotam o esforço que o CNJ vem empreendendo na gestão do ministro Dias Toffoli, a partir das ações do Justiça Presente, para atenuar o desarranjo estrutural do sistema prisional. “Estamos investindo em instrumentos e estratégias concretas que são discutidas à raiz das realidades locais com o escopo de ressignificar a prisão, desmistificando fórmulas que se prestam, apenas, para banalizar o encarceramento. “Prender é necessário. Mas devemos entender melhor o que significa a prisão enquanto exceção e não regra. Isto quer dizer que nem todos a merecem. E nem por isso se está difundindo impunidade quando se deseja qualificar as intervenções judiciais nesse sentido. Os números já não deixam esconder e evidenciam, por exemplo, o manejo adequado das estratégias de intervenção em audiências de custodia, como opção e forma de se melhorar a performance do juiz penal”, avalia. Ele lembra que entre as iniciativas inovadoras do Justiça Presente está a alocação de 27 consultores, um para cada unidade da federação, cuja missão é, justamente, oferecer apoio técnico a juízes que realizam as audiências de custódia. “Os juízes estão podendo perceber melhor o seu trabalho, o seu papel, já que passam a entender as dinâmicas institucionais e interrelacionais com outros órgãos, aperfeiçoando a forma de intervir sobre o conflito penal, que tem muito de social também.”
Ainda segundo Lanfredi, os dados também expressam os avanços do Justiça Presente sobre aqueles que cumprem pena, diante da expansão e consolidação do Sistema Eletrônico de Execução Unificada. “Definitivamente, é inédita a proposta de uma única plataforma de controle, em tempo real, de todas as execuções penais no país. Estamos buscando maior eficiência na fiscalização, no controle dos expedientes e assegurando uma melhor qualidade na intervenção do juiz durante o processo, garantindo que as pessoas tenham seus direitos reconhecidos no tempo certo”. Ele ainda aponta a combinação dessas ações com outras iniciativas promovidas pelo programa, como o incentivo ao monitoramento responsável e a políticas de alternativas penais. “Os números são sintomáticos e podemos associá-los, também, ao Justiça Presente, já que as ações nas quais investimos tendem a impactar ‘o como’ e ‘o porquê’ se deve prender, igualmente despertando meios e opções concretas para que egressos não voltem a delinquir.”
Justiça Presente
O programa Justiça Presente foi criado em janeiro de 2019 como resposta do Judiciário ao estado de coisas inconstitucional nas prisões brasileiras reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal em 2015 (ADPF 347). O programa também está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, a Agenda 2030, em especial com os objetivos 16 (Paz, justiça e instituições eficazes) e 17 (Parcerias e Meios de Implementação).
Desde então, o Justiça Presente vem trabalhando um programa ambicioso em escala nacional com incidência em todas as fases do ciclo penal a partir de boas práticas e evidências, atuando desde o recolhimento após o cometimento de infração até a saída do sistema prisional. O programa também trabalha ações voltadas ao sistema socioeducativo em intervenções relacionadas a adolescentes em conflito com a lei.
Em poucos meses de funcionamento, o Justiça Presente expandiu o Sistema Eletrônico de Execução Unificada (SEEU) para 30 tribunais, com mais de 1 milhão de processos cadastrados e evoluções constantes para atender às realidades de cada unidade da federação. O sistema é fundamental para centralizar e unificar a tramitação de processos de execução penal, pois além de totalmente automatizado, emite alertas sobre prazos e vencimentos.
O Justiça Presente também trabalha na melhoria de fluxos, dados e interiorização das audiências de custódia. Consultores em todas as unidades da federação dão apoio técnico a magistrados e fortalecem redes de atendimento e proteção social, além de conectarem o instituto com políticas de alternativas penais e monitoração eletrônica. Com o apoio de parceiros, o programa também desenvolve ações de inserção laboral e de aprendizado, assim como políticas de apoio a egressos por meio do Escritório Social, estrutura permanente de atendimento a egressos e familiares. Nos últimos meses, o Justiça Presente articulou junto aos tribunais e Executivos locais a criação de oito novos escritórios em sete unidades da federação – Roraima, Paraíba, Alagoas, Rio de Janeiro, Piauí, Bahia e Tocantins.
O programa também trabalha para a qualificação de preenchimento e saneamento de sistemas do CNJ, como o Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei e o Sistema Audiências de Custódia, novas metodologias de mutirão carcerários, ações com polícias e iniciativas de justiça restaurativa.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Vem aí: Nilo Batista, Patrícia Glioche, Thiago Fabres e Vera Malaguti

 

Crime de desobediência: ato atentatório à dignidade da Justiça e tipicidade

A Primeira Turma iniciou julgamento de habeas corpus deduzido em favor de condenado à pena de 1 mês e 10 dias de detenção, em regime semiaberto, e ao pagamento de 20 dias-multa, pela prática do crime de desobediência [Código Penal (CP), art. 330 (1)].

Na espécie, a denúncia narra que o paciente não atendeu a ordem dada pelo oficial de justiça por ocasião do cumprimento de mandado de entrega de veículo, expedido no juízo cível. Recusou-se, na qualidade de depositário do bem, a entregar o veículo ou a indicar sua localização.

A impetração aponta, como autoridade coatora, relator do Superior Tribunal de Justiça que indeferiu monocraticamente pedido de liminar lá formulado em writ de mesma natureza. Requer, no campo precário e efêmero, a absolvição do paciente, haja vista a atipicidade da conduta, e, sucessivamente, a substituição da sanção privativa de liberdade por restritiva de direitos ou a imposição de regime aberto. No mérito, busca a confirmação da providência.

O ministro Marco Aurélio (relator) deferiu a ordem para, considerada a atipicidade da conduta, tornar insubsistente o título condenatório.

Preliminarmente, quanto à adequação do habeas corpus, afirmou que, sem fato, não há julgamento. Noutro ponto, compreendeu que a circunstância de a condenação desafiar revisão criminal não obstaculiza a impetração. Tampouco há de se falar em supressão de instância. Ato contínuo, reportou-se ao que consignado no deferimento da medida acauteladora.

Asseverou que o delito previsto no art. 330 do CP constitui tipo penal subsidiário, cuja caracterização típica pressupõe, além do descumprimento de ordem emitida por funcionário público, que o ato de desobediência não se mostre suscetível de, considerada previsão legal, sofrer sanção administrativa, civil ou penal.

Esclareceu que o comportamento imputado ao paciente consubstancia ato atentatório à dignidade da Justiça, sujeitando-se à imposição de multa de até 20% do valor do débito executado, a teor dos arts. 14, V e parágrafo único; 600, III, e 601 do Código de Processo de Civil de 1973 (CPC/1973) (2), correspondentes aos arts. 77, §§ 1º e 2º; e 774, IV, do CPC de 2015 (CPC/2015) (3).

Dessa forma, a existência de sanção específica na legislação de regência, ausente qualquer ressalva expressa acerca da possibilidade de aplicação cumulativa do crime versado no art. 330 do CP, torna a conduta desprovida de tipicidade penal e inviabiliza a condenação pelo delito de desobediência.

Em seguida, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista dos autos.

(1) CP: “Art. 330 – Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena – detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.”
(2) CPC/1973: “Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: (...) V – cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado. (...) Art. 600. Considera-se atentatório à dignidade da Justiça o ato do executado que: (...) III – resiste injustificadamente às ordens judiciais; (...) Art. 601. Nos casos previstos no artigo anterior, o devedor incidirá em multa fixada pelo juiz, em montante não superior a 20% (vinte por cento) do valor atualizado do débito em execução, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material, multa essa que reverterá em proveito do credor, exigível na própria execução. Parágrafo único. O juiz relevará a pena, se o devedor se comprometer a não mais praticar qualquer dos atos definidos no artigo antecedente e der fiador idôneo, que responda ao credor pela dívida principal, juros, despesas e honorários advocatícios.”
(3) CPC/2015: “Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo: (...) IV – cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação; (...) § 1º Nas hipóteses dos incisos IV e VI, o juiz advertirá qualquer das pessoas mencionadas no caput de que sua conduta poderá ser punida como ato atentatório à dignidade da justiça. § 2º A violação ao disposto nos incisos IV e VI constitui ato atentatório à dignidade da justiça, devendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa de até vinte por cento do valor da causa, de acordo com a gravidade da conduta. (...) Art. 774. Considera-se atentatória à dignidade da justiça a conduta comissiva ou omissiva do executado que: (...) IV – resiste injustificadamente às ordens judiciais;”

HC 169417/SP, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 11.2.2020. (HC-169417)

Informativo STF. Brasília, 10 a 14 de fevereiro de 2020 - Nº 966.

Defensoria vai ao STF por benefícios a familiares de vítimas de crime doloso

A Defensoria Pública do Distrito Federal ajuizou nesta quarta-feira (19/2) mandado de injunção coletivo buscando que o legislativo regulamente benefício assistencial aos familiares de vítimas de crimes dolosos. A garantia é prevista no artigo 245 da Constituição Federal.
Ação foi protocolada no STJ
A ação, protocolada no Supremo Tribunal Federal, pede que a corte estipule prazo de até 180 dias para que o Congresso legisle a respeito do tema. Ultrapassado o limite, a Defensoria pede que o próprio STF “supere a situação de mora inconstitucional para instituir o benefício”.
Segundo o artigo citado pela Defensoria, “a lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o poder público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo de responsabilidade civil do autor do ilícito”. A norma, no entanto, nunca foi instituída. 
“Nesse caso, trata-se, sem dúvidas, de uma omissão legislativa em relação a uma norma programática constitucional, que por si só deveria ser entendida como uma obrigação indeclinável ao Poder Público. Porém, por precaução, vale ressaltar que se trata de uma omissão que impede a concretude de direitos e garantias individuais básicas”, diz a ação.
Ainda segundo a defensoria, “sequer o argumento de insuficiência orçamentária justifica tal omissão da União [...] os valores destinados nos últimos anos ao orçamento da União para a assistência social suportariam suficientemente tais benefícios. 
O texto é assinado pelos defensores Jonas Junio Linhares Costa MonteiroFrancisca Gabrielle da Silva Rodrigues e BezerraDaniel de Oliveira Costa, e Gabriel Nicolini Queiroz Nunes. O último, participou na condição de colaborador jurídico.
Clique aqui para ler a ação
MI 7.209

Revista Consultor Jurídico, 20 de fevereiro de 2020.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Veja como o STJ tem admitido e julgado a prova emprestada

A prova que será usada pelas partes e pelo juiz é produzida no próprio processo. No entanto, a admissão de uma prova emprestada — produzida em outro processo — pode ser justificada pela necessidade de otimização, racionalidade e eficiência da prestação jurisdicional.
O Código de Processo Civil trata, em seu artigo 372, da possibilidade de o magistrado validar o empréstimo, dispondo que "o juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório".
Para a ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, "é inegável que a grande valia da prova emprestada reside na economia processual que proporciona, tendo em vista que se evita a repetição desnecessária da produção de prova de idêntico conteúdo, a qual tende a ser demasiado lenta e dispendiosa, notadamente em se tratando de provas periciais na realidade do Poder Judiciário brasileiro".
Admissão de uma prova emprestada pode ser justificada pela necessidade de otimização, racionalidade e eficiência da prestação jurisdicional.
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Em 2014, no julgamento do EREsp 617.428, por unanimidade, a Corte Especial do STJ estabeleceu que a prova emprestada não pode se restringir a processos em que figurem partes idênticas, sob pena de se reduzir excessivamente sua aplicabilidade, sem justificativa razoável para tanto.
"Independentemente de haver identidade de partes, o contraditório é o requisito primordial para o aproveitamento da prova emprestada. Portanto, assegurado às partes o contraditório sobre a prova, isto é, o direito de se insurgir contra a prova e de refutá-la adequadamente, afigura-se válido o empréstimo", afirmou a relatora, ministra Nancy Andrighi.
Os recorrentes pediam que a prova pericial emprestada não fosse admitida, por não figurarem as mesmas partes no processo em que ela foi produzida. O pedido foi negado pelo colegiado.
Valoração da prova
A 6ª Turma empregou o mesmo entendimento ao negar provimento a o REsp 1.561.021, no qual se discutia a legitimidade de prova emprestada. Ali, o recorrente alegou que as declarações de uma testemunha não foram produzidas em ação entre as mesmas partes nem obtidas com respeito ao contraditório e ao devido processo legal.

Prevaleceu o entendimento do ministro Nefi Cordeiro, que lembrou que as provas no processo penal só exigem forma quando a lei o prevê; caso contrário, devem apenas ser submetidas às garantias do contraditório e da ampla defesa.
Ao considerar legítimo o empréstimo no caso, o ministro disse que até seria possível discutir os critérios de valoração da prova: se o depoimento teria o valor de um testemunho colhido no mesmo processo, sob o contraditório das mesmas partes; se teria o valor de um informante, ou de um documento, ou, ainda, se a prova emprestada valeria como um mero indício. "Mas válida essa prova é, não violando nenhuma norma legal, e não violando tampouco o princípio constitucional do contraditório", afirmou.
Dados fiscais
Em novembro de 2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 1.055.941, decidiu que é legítimo o compartilhamento de informações fiscais com o Ministério Público e outros órgãos para investigação criminal, sem autorização prévia do Poder Judiciário.

Antes, a 1ª Turma do STF já havia entendido que era possível usar as informações obtidas pelo fisco, por meio de regular procedimento administrativo fiscal, para fins de instrução processual penal.
A turma se baseou no julgamento do RE 601.314 – também com repercussão geral –, no qual o plenário do STF declarou a constitucionalidade do artigo 6º da Lei Complementar 105/2001, considerando dispensável a autorização judicial para que a Receita coletasse informações bancárias de contribuintes.
Seguindo a orientação, em março de 2018, a 6ª Turma do STJ alinhou a jurisprudência com a da 1ª Turma do STF e negou Habeas Corpus. No caso, o homem alegava a ilicitude de prova que ensejou a deflagração da ação penal, pois esta se originou do compartilhamento com o MP de dados bancários obtidos diretamente pela Receita Federal, sem autorização judicial.
Ministro Sebastião Reis Jr aplicou entendimento já firmado no STF sobre compartilhamento de dados fiscais sem sem autorização judicial
José Alberto SCO/STJ
O relator do habeas corpus no STJ, ministro Sebastião Reis Júnior, aplicou o entendimento do Supremo e considerou que não houve ilicitude das provas que embasaram a denúncia.
"Assim como o sigilo é transferido, sem autorização judicial, da instituição financeira ao fisco e deste à Advocacia-Geral da União, para cobrança do crédito tributário, também o é ao Ministério Público, sempre que, no curso de ação fiscal de que resulte lavratura de auto de infração de exigência de crédito de tributos, se constate fato que configure, em tese, crime contra a ordem tributária", disse.
Processo administrativo
Outra posição importante da jurisprudência do STJ é a possibilidade de usar provas emprestadas de inquérito policial e de processo criminal na instrução de Processo Administrativo Disciplinar, desde que assegurados o contraditório e a ampla defesa. O entendimento está previsto na Súmula 591, aprovada em 2017 pela 1ª Seção.

De acordo com a jurisprudência, é possível usar interceptação telefônica emprestada de processo penal no PAD, desde que autorizada pelo juízo criminal – responsável pela preservação do sigilo de tal prova –, além de observadas as diretrizes da Lei 9.296/1996.
No MS 17.534, um dos precedentes que embasaram a súmula, o ministro Humberto Martins reconheceu a possibilidade de uso de interceptações telefônicas na forma de provas emprestadas. Ele relatou recurso de um policial rodoviário federal que teve a demissão decretada com base em provas de ação penal.
O ministro destacou que, no caso, foram observados os critérios necessários para a utilização desse tipo de prova: a devida autorização judicial e a oportunidade de o servidor contraditar o seu teor ao longo da instrução.
Cooperação internacional
O compartilhamento de provas também pode extrapolar os limites do território nacional. Ao analisar o uso de prova produzida na Suíça em processo penal no Brasil, na APn 856, a ministra Nancy Andrighi explicou que a cooperação jurídica internacional é o instrumento por meio do qual um Estado – com base em acordos bilaterais – pede ou recebe de outro Estado subsídios para instruir procedimento jurisdicional de sua competência.

Na ação penal no STJ, o acusado sustentou a ilegalidade de todas as provas produzidas contra ele, pois seriam derivadas de provas declaradas ilícitas pela Suíça, e disse que o envio delas ao Brasil só foi autorizado porque a legislação daquele país – ao contrário da brasileira – permite o uso de provas ilícitas, após um juízo de ponderação.
Divulgação
Ministra Nancy Andrighi destacou importância da cooperação jurídica internacional como instrumento para pedir ou receber subsídios em processo
A relatora afirmou que o encaminhamento das provas ao Brasil somente foi admitido em razão de as provas serem legítimas, conforme o parâmetro de legalidade da Suíça. "Como a prova foi considerada admissível segundo o padrão legal suíço, não há de ser questionada a validade de seu envio aos órgãos responsáveis pela persecução penal no Brasil", afirmou.
Cartas rogatórias
Em 2017, o Brasil aderiu à Convenção de Haia sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial. Promulgado pelo Decreto 9.039/2017, o acordo facilita a colheita de provas entre o Brasil e dezenas de outros países. A convenção destaca alguns temas nos quais cada país pode apresentar reservas e declarações para adaptá-la aos termos da sua própria legislação.

Entre elas, no artigo 23, o Brasil declara que não cumprirá as cartas rogatórias que tenham sido emitidas com o propósito de obter o que é conhecido nos países do Common Law (sistema jurídico diverso do brasileiro) pela designação de pre-trial discovery of documents. Esse procedimento prévio de produção de provas é conduzido diretamente pelas partes, com nenhuma – ou quase nenhuma – intervenção judicial.
Responsável por avaliar e conceder às cartas rogatórias, compete ao STJ interpretar a aplicação do artigo 23 e estabelecer um posicionamento quanto à sua abrangência, às limitações, declarações e reservas.
Relevância da prova
Ao analisar a CR 13.559, o presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha, concedeu exequatur e determinou o compartilhamento de provas em poder da Procuradoria da República no Distrito Federal para instrução de ação na Justiça americana.

Em recurso, a parte investigada sustentou que a decisão afrontava o artigo 23 da Convenção de Haia, pois o pre-trial discovery of documents seria incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro.
O presidente do STJ afirmou que a ressalva feita pelo artigo 23 não configura impedimento à realização da diligência solicitada pela Justiça estrangeira. Em suas razões de decidir, o ministro destacou o parecer do Ministério Público Federal, segundo o qual essa reserva "não deve ser entendida como vedação absoluta à produção de provas no estrangeiro".
"Isso significaria negar o direito fundamental de obter a devida prestação jurisdicional. O que deve ser entendido é que a autorização para a produção da prova no estrangeiro exige maior cuidado para que, em cada caso, seja examinada a relevância e a pertinência da prova rogada, afastando assim o pedido abusivo ou meramente exploratório", afirmou o MPF.
O objetivo do artigo 23 – afirmou o parecer – não é bloquear a busca de provas no estrangeiro, mas evitar a coleta abusiva da prova, especialmente quando dirigida contra particulares.
No caso em análise, o presidente do STJ observou que "o objeto da presente carta rogatória não atenta contra a soberania nacional, a dignidade da pessoa humana ou a ordem pública". Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
EREsp 617.428
REsp 1.561.021
HC 422.473
MS 17.534
APn 856

Revista Consultor Jurídico, 16 de fevereiro de 2020.

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