sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Transação penal não impede questionamento sobre persecução criminal

Aceitar acordo de transação penal não impede a impetração de Habeas Corpus para questionar a legitimidade da persecução penal. A decisão é da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal.
Turma seguiu, por unanimidade, o voto do relator, ministro Gilmar Mendes 
Carlos Moura / SCO STF
Para o relator ministro Gilmar Mendes, ainda que o réu se conforme com a acusação e aceite a imposição da pena com o benefício proposto, não se pode aceitar que o poder punitivo estatal seja exercido sem o devido controle judicial. Por isso, em todos os casos, tanto em colaboração premiada, como em transação penal ou suspensão condicional do processo, há a submissão para homologação judicial
O ministro explica que o controle judicial é fundamental para a proteção efetiva dos direitos fundamentais do imputado e para evitar possíveis abusos que comprometam a decisão voluntária de aceitar a transação. Ainda segundo o ministro, não há qualquer disposição em lei que imponha a desistência de recursos ou ações em andamento ou determine a renúncia ao direito de acesso à Justiça.
Segundo o relator, embora o sistema negocial possa trazer aprimoramentos positivos em casos de delitos de menor gravidade, a barganha no processo penal pode levar a riscos consideráveis aos direitos fundamentais do acusado. Ao votar pela concessão do habeas corpus, o ministro salientou que a imposição de uma pena consentida pelo réu não pode ser feita pelo Estado sem qualquer controle fático-probatório pelo julgador.
"Conclui-se, portanto, que, diante dos riscos inerentes à justiça criminal negocial, o consentimento do imputado, ainda que assistido por defensor técnico, não pode ser supervalorizado a ponto de afastar qualquer necessidade de controle judicial. Mesmo com o aceite da defesa, o Judiciário precisa controlar e limitar o exercício do poder punitivo estatal para que, somente assim, a pena eventualmente imposta possa ser considerada legítima", afirmou.
Ao acompanhar o voto do relator, o ministro Edson Fachin salientou que as consequências da transação são essencialmente as estipuladas pelo acordo. E, no caso concreto, o acordo não fez nenhuma referência ao habeas corpus impetrado antes da transação, que estava pendente de julgamento.
O ministro Ricardo Lewandowski também ressaltou a circunstância de que o habeas corpus já havia sido impetrado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal quando houve a proposta de transação penal. “A negociação não retira do imputado o direito de impugnar os pressupostos para a persecução penal”, afirmou. Da mesma forma, a ministra Cármen Lúcia assinalou que as partes não trataram desse ponto no acordo, que não pode gerar uma renúncia genérica.
O caso
Com a decisão, o STF determinou que o TJ-DF julgue o habeas corpus impetrado por um dentista de Brasília denunciado pelo crime de lesão corporal culposa em razão de um cirurgia e que aceitou a proposta de transação penal ofertada pelo Ministério Público.

O dentista foi acusado pela prática do crime, previsto no artigo 129, parágrafo 6º, do Código Penal. Com o recebimento da denúncia, a defesa ajuizou habeas corpus no TJ-DF e, na sequência, o Ministério Público ofereceu a transação penal (espécie de acordo em que o acusado aceita cumprir determinações e condições propostas pelo promotor em troca do arquivamento do processo), que foi aceita.
Diante disso, o TJ-DF rejeitou o exame do habeas corpus. Para a defesa, contudo, o habeas deveria ser julgado para que fossem analisados os argumentos de inépcia da denúncia, atipicidade da conduta e ausência de justa causa para ação penal, mesmo tendo havido a transação penal.
No julgamento, a defesa do dentista argumentou que deveria ser aplicado o mesmo entendimento dado à hipótese de suspensão condicional do processo, cuja implementação não impede a impetração de habeas para discutir existência de justa causa para a ação penal. A defesa foi feita pelos advogados Pedro Machado de Almeida Castro, Octavio Orzari e Vinícius André de Sousa, do escritório Machado de Almeida Castro e Orzari Advogados.
Já a representante da Procuradoria Geral da República sustentou que, se o profissional quisesse discutir os fatos, poderia não ter aceitado a transação penal e buscar a absolvição em juízo. Mas, a partir do momento em que ela foi aceita, o juiz anulou tudo que se fez, inclusive o recebimento da denúncia. Assim, não haveria como discutir a justa causa se não há mais denúncia nem investigação ou persecução penal. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
Clique aqui para ler o voto do ministro Gilmar Mendes
HC 176.785

Revista Consultor Jurídico, 18 de dezembro de 2019.

CNJ aprova política judiciária de atenção a egressos do sistema prisional

O Plenário do Conselho Nacional de Justiça aprovou nesta terça-feira (17/12) resolução que institui a Política de Atenção a Pessoas Egressas do Sistema Prisional no âmbito do Poder Judiciário. Os Escritórios Sociais, estruturas impulsionadas pelo CNJ desde 2016 que apostam na articulação entre Judiciário e Executivo, passam a centralizar as ações do Judiciário na atenção às pessoas egressas e seus familiares. A resolução entra em vigor após 90 dias de sua publicação.
Escritórios Sociais passam a centralizar as ações do Judiciário na atenção às pessoas egressas e seus familiares 
Marcello Casal Jr./Agenciabrasil
Além de incentivar o trabalho conjunto entre Judiciário e Executivo em escala local, a resolução também prevê que os Escritórios Sociais poderão fazer parcerias e outras formas de cooperação entre entes públicos, privados e sociedade civil para potencializar os atendimentos e garantir um retorno mais qualificado à liberdade. Lançado pelo CNJ em 2009 com o objetivo de fazer a ponte entre egressos e empregadores, o programa Começar de Novo ganhará novo impulso com os Escritórios Sociais, o que inclui a atualização de diretrizes e fluxos para otimizar o serviço.
A política judiciária de atenção a egressos pretende suprir a ausência de ações de Estado articuladas nacionalmente voltadas a esse público com base em boas práticas e evidências. Além da coordenação compartilhada entre poderes, os Escritores Sociais têm como princípios a singularização do atendimento para facilitar o acesso a serviços públicos de assistência, saúde, educação, renda, trabalho, habitação, lazer e cultura, a adesão voluntária, a privacidade e sigilo no atendimento, a promoção da igualdade racial e de gênero e o acolhimento por equipes multidisciplinares, responsáveis também pela articulação de redes de atendimento.
Os Escritórios Sociais irão trabalhar pela inclusão das pessoas egressas em políticas que incluem a emissão de documentação civil e oferta de insumos para a volta à liberdade, como vale-transporte, alimentação e água, assim como roupas que não exponham a condição de pessoa egressa. Em 90 dias a partir da publicação da resolução, o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ publicará manual com informações sobre estratégias de implantação e fluxos de funcionamento dos Escritórios Sociais em consonância com as realidades locais.
Os Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) dos Tribunais de Justiça ficarão responsáveis pelo fomento e apoio à sustentabilidade dos Escritórios Sociais, garantindo, entre outros pontos, o primeiro atendimento à pessoa egressa no fórum e encaminhamento aos serviços. Os GMFs também ficarão responsáveis por estimular a inserção da política de atenção a egressos em Planos Plurianuais, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei Orçamentária Anual, além de prever sua institucionalização na estrutura do órgão gestor da administração penitenciária.
A resolução ainda prevê a implantação de sistemas de informações para fluxos contínuos de dados entre Judiciário e Executivo, racionalizando a execução penal e permitindo mais qualidade na produção de dados. O Judiciário, por exemplo, ficará responsável por informar aos gestores prisionais a relação de pessoas privadas de liberdade que estiverem próximas de serem soltas — o alerta será feito por meio do Sistema Eletrônico de Execução Unificado, ferramenta de controle da gestão penal que já está em 28 tribunais e possui 1 milhão de processos em tramitação.
Ações afirmativas
Buscando garantir a efetividade das políticas de atenção à pessoa egressa, a resolução prevê que contratações feitas pelo Poder Judiciário deverão observar o emprego de mão de obra formada por pessoas egressas do sistema prisional pela empresa prestadora de serviços, em quantidade que vão de 4% a 6% das vagas. Também estão previstos projetos junto à sociedade civil relativas a políticas de equidade racial e de gênero, bem como para erradicar violências, processos de marginalização e de criminalização das pessoas egressas, difundindo práticas democráticas de prevenção e de administração de conflitos.

Os Escritórios Sociais também deverão identificar e acolher demandas específicas em temáticas relacionadas às mulheres egressas, população LGBTQ, situações de discriminação racial, de gênero ou orientação sexual, estrangeiros e indígenas, pessoas com deficiências ou com transtornos mentais e pessoas que fazem uso abusivo de álcool ou outras substâncias psicoativas.
Justiça Presente
O fortalecimento de uma política judiciária de atenção a egressos é prioridade na gestão do ministro Dias Toffoli no CNJ. As ações estão sendo executadas por meio do programa Justiça Presente, parceria iniciada em janeiro de 2019 com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública para enfrentamento de problemas estruturais no sistema prisional e socioeducativo.

Principal política do CNJ de atenção ao egresso, o Escritório Social funciona no Espírito Santo desde 2016 e foi expandido para seis unidades da federação na gestão do ministro Dias Toffoli: Roraima, Paraíba, Alagoas, Piauí, Rio de Janeiro (Maricá e Niterói) e Bahia. Há previsão de funcionamento de 15 unidades do Escritório Social até março de 2020.
Para o presidente do CNJ, a definição de práticas a esta população visa à inclusão social e à minimização da estigmatização que decorre do cárcere. “É, ao mesmo tempo, medida que protege e assegura direitos individuais e promove, em última análise, a melhoria na segurança pública. De fato, se obtivermos sucesso na inclusão social dessas pessoas, estaremos contribuindo para a quebra do ciclo de violência, evitando-lhes, possivelmente, a reincidência”, afirmou Dias Toffoli durante lançamento do Escritório Social na Bahia. Com informações da assessoria de imprensa do Conselho Nacional de Justiça.
Revista Consultor Jurídico, 19 de dezembro de 2019.

Criação do juiz de garantias não aumenta despesas nem carga de trabalho



1. Introdução

O ano de 2019 ultima-se com grandes debates democráticos travados na Câmara dos Deputados acerca da busca de modernização da legislação penal e processual penal brasileira.

Em destaque, o incansável trabalho desenvolvido pelo Grupo de Trabalho sobre a Legislação Penal e Processual Penal (GT Penal), cuja coordenação coube à deputada Margarete Coelho, e que contou, entre tantos parlamentares de reconhecido mérito, com a atuação diferencial do deputado Fábio Trad, o qual, advindo da docência jurídica, tem sido aguerrido soldado na defesa dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal e que, doravante, figura como relator de outro relevantíssimo projeto que interessa a toda nação, qual seja a PEC 199/19, a cuidar da prisão após o julgamento em segunda instância.
No último 4 de dezembro, a Câmara aprovou o Projeto de Lei 10.372/2018-A[1], relator deputado Lafayette de Andrada, decorrente de Comissão de Juristas sob a presidência do ministro Alexandre de Moraes, e que agora segue para o Senado Federal, após emendas e destaques. Vários foram os progressos advindos desse projeto. Por outro lado, louvável o afastamento da censurável plea bargainaing, cujo instituto sequer é prestigiado nos Estados Unidos (excessos acusatórios — overcharging —, ausência de controle judicial, entre inúmeros problemas), país do qual se colimava importá-la.
Digna de aplausos, por sua vez, a aprovação da figura do “juiz de garantias”, avanço civilizatório ao processo penal constitucional brasileiro, a evitar a “contaminação” do juiz que atua na fase de investigação preliminar ao continuar a exercer jurisdição em eventual ação penal que se segue, mas, também, a prevenir eventuais “conúbios” entre grupos de investigação da Polícia Judiciária e do Ministério Público com magistrados que acumulam competências para fase investigativa e fase julgadora. Para todas essas vicissitudes, o juiz de garantias tem sido uma tendência mundial, razão pela qual este artigo concentra-se neste tema.
2. A contaminação do juiz da fase investigativa

À luz da matriz acusatória, a vigorar no atual processo penal constitucional, é imperiosa a separação das funções estatais dos agentes investigador e/ou acusador com o agente julgador. O juiz com atuação direta em investigações criminais preliminares — sobretudo em megainvestigações, alocutário de excessivos elementos informativos —, torna-se receptor geral do acervo apurado, o que faz convolá-lo, antes mesmo da delimitação acusatória formulada pelo dominus litis (hipótese acusatória), em agente estatal parcial acusador, a ofuscar o imprescindível princípio da congruência entre denúncia e sentença, e, em última instância, a prestigiar o direito penal do autor. Torna-se, inadvertidamente, parte em sentido informal, como diria Werner Goldschmidt, porque agiria com “parcialidade”[2].

Bernd Shünemann escreveu artigo científico[3]”, resultado de apurada pesquisa realizada com a participação de 58 juízes e promotores, escolhidos aleatoriamente por todo o território alemão, com a finalidade de realizar uma análise comportamental, durante audiências simuladas de instrução e julgamento, especialmente na forma de decidir a causa. O ponto de partida foi avaliar a diferença entre juízes que se envolvem com o material produzido na investigação preliminar e têm participação ativa durante a instrução criminal e de juízes que atuam de forma mais equidistante como destinatários dos elementos trazidos pelas partes.
Shünemann traz à tona a Teoria da Dissonância Cognitiva de Festinger, na versão reformulada de Irle. De acordo com a referida teoria, cada pessoa ambiciona obter harmonia em seu sistema cognitivo, a assegurar-lhe relações estáveis entre seus conhecimentos e suas opiniões. Quando opiniões antagônicas lhe são contrastadas, o resultado dessa motivação cognitiva é a redução mental de fatores dissonantes com a preponderância de fatores de consonância. Significa dizer que, para alcançar-se o equilíbrio do sistema cognitivo, é mister solucionar a contradição existente entre o conhecimento e as opiniões contrárias, de tal arte a mitigar o referido nível de contradição entre o conhecimento que possui e a opinião contraditória que se lhe é proposta. Haveria o stress pela tentativa de eliminar as contradições cognitivas. Desse quadro passageiro exsurgem (i) o efeito perseverança e (ii) o princípio da busca seletiva de informações.O efeito perseverança consiste no mecanismo de autoafirmação da hipótese preestabelecida, que acaba por ser sistematicamente superestimada, enquanto que as informações dissonantes são subavaliadas. A busca seletiva de informações tende a ratificar a hipótese originária que tenha sido aceita pelo menos uma vez, o que normalmente ocorre quando se obtém informações que confirmem uma preconcepção.
A pesquisa realizada na Alemanha, foi possível extrair o seguinte padrão comportamental do juiz criminal: todos que tiveram contato maior com a investigação preliminar e, depois, atuação mais ativa na instrução criminal, acabaram por condenar, enquanto que aqueles que não foram equipados comas peças de informações preliminares tiveram maior nível de ambivalência, ou seja, houve equilíbrio entre o número de condenações e de absolvições. Há, no mínimo, uma tendência, um envergamento, a apegar-se àquela opinião pré-concebida da investigação preliminar que tentará corroborá-la ao longo do processo. Para Shünemann, o juiz tenta superestimar as informações consoantes e subestimar as informações dissonantes.
3. Estética da imparcialidade como apanágio do juiz

O alinhamento de pools de atuação estatal, ou seja, grupos de atuação específica na persecução criminal, se, por um lado, permite a especialização de seus agentes, por outro lado, não deve contar com a participação direta e exclusiva de um único juiz, sob pena de sério e inevitável comprometimento do sistema acusatório, a causar impressão à sociedade, e aos próprios investigados, que o juiz é um agente que se associa aos órgãos de persecução no combate às organizações criminosas.

O Poder Judiciário, por seus membros, representa a função jurisdicional, a garantia de respeito à Constituição Federal, aos direitos e garantias fundamentais e às leis vigentes. O juiz, em última razão, não é um ativista no combate ao crime, mas garantidor da legalidade da persecução e detentor de parcela da jurisdição para julgar a pretensão acusatória do Estado-Administração. Não é debalde que a Constituição prevê a existência de Polícia Judiciária e Ministério Público.
A estética de imparcialidade é conduta que deve estar patente no Poder Judiciário. Teoriza-se, hodiernamente, questões de imparcialidade judicial objetiva e subjetiva, como se viu, em âmbito internacional, em julgamentos pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos nos Casos Piersack versus Bélgica e Hauschildt versus Dinamarca, quando foi invocada a Teoria da Aparência de Justiça, no sentido de que o juiz deve abster-se de atuar nas causas em que haja razões legítimas para duvidar de sua imparcialidade.
4. Portugal

De acordo com o artigo 17 do Código de Processo Penal português de 1987, compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até a remessa do processo a julgamento ao juízo da causa. Paulo de Sousa Mendes assinala que o juiz de instrução termina a instrução com um despacho de pronúncia ou com um despacho de não pronúncia. E complementa: “Quanto à competência funcional, o ponto a destacar é que têm de intervir no processo pelo menos dois juízes, um para fase de investigação e outro para a fase de julgamento, só assim se podendo garantir o princípio da independência judicial”. Aliás, trata-se de previsão expressa do artigo 40 do CPP lusitano. No sistema português, Paulo de Sousa Mendes ressalta que “a imparcialidade do juiz deve ser garantida a todo o custo[4]”.

5. Espanha

A Ley de Enjuiciamento Criminal da Espanha prevê a existência de um juiz a atuar na fase investigativa (juez de instrucción), conforme o artigo 259, e, com a conclusão (artigo 324.6), o encaminhamento dos autos ao tribunal competente. Conforme o artigo 622: "Practicadas las diligencias decretadas de oficio o a instancia de parte por el Juez instructor, si éste considerase terminado el sumario, lo declarará así, mandando remitir los autos y las piezas de convicción al Tribunal competente para conocer del delito.”

6. Itália

No Código de Processo Penal de 1989 (Codice di Procedura Penale), há previsão de separação entre os elementos informativos coletados para investigar (elementos investigativos) e as provas que se destinam ao julgamento da causa (elementos de prova). O primeiro constitui-se o fascicolo del pubblico ministero, previsto no artigo 433 do Codice di Procedure Penale (CPPi), enquanto o segundo é designado fascicolo per il dibattimento (artigo 431).

Ferrajoli destaca que a “principal inovação estrutural introduzida com as reformas foi a separação do juiz da acusação, mediante a eliminação da velha figura do juiz instrutor, substituída por um juiz para as investigações preliminares em princípio estranho ao seu desenvolvimento (artigo 328), e do pretor, que agora possui função apenas judicante”[5]. O CPP italiano tem previsão expressa de incompatibilidade do juiz que atua na fase investigativa e decide medidas interventivas (incompatbilita, astensione e ricusazione del giudice), conforme o artigo 34.2 bis.
7. Chile

Tem sido quase inquestionável, em âmbito doutrinário, que o Chile possui, na atualidade, o sistema processual penal acusatório mais moderno da América do Sul. O Código de Processo Penal chileno de 2000 (Código Procesal Penal), com suas atualizações, traz expressa alusão ao juiz de garantias em seu artigo 70.

8. Estados Unidos

Nos Estados Unidos, realizada a investigação preliminar, em vários estados, segue-se uma audiência preliminar (preliminar hearing), que pode ter a finalidade de decidir acerca da submissão do caso a julgamento (petrial screening mechanism), bem como encaminhamento ao grande júri (grand jury). Portanto, independente da legislação aplicável (leis federais, Federal Rules of Criminal Procedure, Model Penal Code, leis estaduais, atos normativos federais e estaduais etc.) e da competência local (The US District Courts), pode-se dizer que o juiz da audiência de apresentação não será aquele que irá valorar as provas da causa, sobretudo porque, no sistema norte-americano, vigora a 5ª Emenda (Fifth Amendment), pela qual ninguém pode ser responsabilizado por crime capital ou infame, a menos que apresentado ou indiciado por um grande júri. Portanto, é o júri que deliberará sobre as provas trazidas pela promotoria e pela defesa.

Deve-se lembrar que o juiz americano segue rígido Código de Conduta desde o ano de 1973 (Code of Judicial Conduct for United States Judges), que lhe impõe deveres de honestidade, integridade, imparcialidade, temperamento e capacidade para julgamento, conforme Canon 3 (A judge should perform the duties of the office fairly, impartially and diligently). Nesse sentido, impõe-lhe evitar toda impropriedade de aparência, de forma a preservar o decoro. Por isso, não deve considerar comunicações ex parte ou que sejam feitas fora da presença das partes ou advogados. Se o fizer, deve notificar imediatamente a parte contrária. São as chamadas responsabilidades adjudicativas[6]. Conclui-se que o juiz americano não deve ter qualquer tipo de relação mais próxima com agentes investigadores e com membros da promotoria, com vistas a manter o dever legal de isenção.
9. Adaptação do sistema judicial brasileiro

Ao contrário do que alguns detratores poderiam objetar à não implementação do juiz de garantias no Brasil, hodiernamente, o processo em meio eletrônico é regra na Justiça brasileira, haja vista que processos judiciais devem ser digitalizados para que magistrados possam acessá-los de forma remota em qualquer instância (Lei 11.419/2016 e Resolução 185/2013/CNJ.

Em adição, a implantação do juiz de garantias no Brasil não causaria aumento de despesa ou impacto orçamentário ao Poder Judiciário, tampouco acrescentaria carga de trabalho aos magistrados, mas, apenas, reordenação de competências entre unidades judiciárias, a cargo da organização judiciária de cada estado ou seção judiciária. Mesmo em comarcas com a existência de um juízo, basta a organização judiciária disciplinar a ordem de competência entre comarcas circunvizinhas por meio de acessos remotos e videoconferências, cujas tecnológicas estão presentes em todo território brasileiro.
Enfim, os exemplos dos países acima estão a chancelar que o juiz de garantias é uma tendência global, e não será o Brasil que marchará na contramão, sob pretexto de eventual inexequibilidade de implementação prática, o que pode ser solucionado facilmente com um pouco de boa vontade dos gestores do Poder Judiciário.
[1] Também estão incluídos os PL 10.373/2018 (ação civil pública de perdimento de bens) e 882/2019 (que altera o CP, o CPP, a LEP, dentre outras legislações, e estabelece medidas contra a corrupção, crime organizado e grave ameaça à pessoa).
[2] GOLDSCHMIDT, Werner. La Imparcialidad como Principio Básico del Proceso (La Partialidad y la Parcialidad). Disponível em:http://www.academiadederecho.org/upload/biblio/contenidos/la_imparcialidad.pdf/> Acesso em: 25 de mai. 2016.
[3] SHÜNEMANN, Bernd. O Juiz como um Terceiro Manipulado no Processo Penal. Disponível: http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=140/> Acesso em: 29 de mai. 2016.
[4] MENDES, Paulo de Sousa. Lições de Direito Processual Penal. Coimbra: Almedina. p. 113.
[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. 4. ed. São Paulo: RT, 2014. p. 679.
[6] GARCETE, Carlos Alberto. Desde 1973, Estados Unidos têm um código de conduta para seus juízes. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-10/carlos-garcete-eua-codigo-conduta-juizes-1973 Acesso em 6-12-2019.
 é juiz do 1º Tribunal do Júri de Campo Grande (MS), professor de Direito Processual Penal e Criminologia, pós-doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, doutor em Direito Processual Penal pela PUC-SP e mestre em Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado pela PUC-Rio.
Revista Consultor Jurídico, 17 de dezembro de 2019.

Moradores de rua podem dormir em calçadas, decide Suprema Corte dos EUA

A Justiça dos Estados Unidos decidiu que moradores de rua têm o direito de dormir — ou mesmo acampar — em calçadas e praças e parques públicos se as cidades não disponibilizam abrigos suficientes para acolhê-los. E que as leis municipais e estaduais que criminalizam morar na rua são inconstitucionais.
Svyatoslav Lypynskyy
Essa decisão se sacramentou na segunda-feira (16/12), quando a Suprema Corte decidiu não julgar um recurso movido por Boise, Idaho, com apoio de várias cidades e, então, prevaleceu a decisão do Tribunal de Recursos da 9ª Região a favor dos moradores de rua.
O tribunal decidiu que as leis municipais violam a Oitava Emenda da Constituição, que bane punições cruéis e incomuns. A pergunta apresentada aos tribunais era se os moradores de rua podem ser multados e processados com base em leis municipais e estaduais que proíbem dormir ou acampar em espaços públicos.
Em sua decisão, o tribunal citou jurisprudência estabelecida em 1962, segundo a qual o estado não pode criminalizar o vício a narcóticos — isto é, processar cidadãos pelo simples fato de serem usuários de substâncias entorpecentes.
No processo atual, a juíza Marsha Berzon escreveu que esse princípio se estende aos moradores de rua: “O governo não pode criminalizar o estado de ser morador de rua. E, da mesma forma, o governo não pode criminalizar a conduta que é uma consequência inevitável de ser morador de rua — isto é, se deitar ou dormir nas ruas”.
As cidades, por sua vez, esperavam mais da Suprema Corte do que discutir a constitucionalidade das leis municipais, porque se consideram em um beco sem saída. Elas têm a obrigação de oferecer aos moradores um lugar saudável, limpo e livre de tráfico e o uso de drogas, que afeta principalmente os cidadãos mais vulneráveis.
As cidades queriam que a corte esclarecesse como a lei pode ajudar. Em outras palavras, como balancear as necessidades dos moradores de rua com as necessidades de todos os demais habitantes da cidade que também usam áreas públicas.
Alegaram ainda: “nada na Constituição requer que as cidades entreguem suas ruas, calçadas, parques, margens de rios (sob pontes) e outras áreas públicas a vastos acampamentos”.
Mas prevalece o entendimento de que a criminalização não é uma estratégia para resolver o problema de se ter moradores de rua na cidade. É a consequência de não se ter uma estratégia.
Pode ser. Mas as únicas ideias de estratégia que as cidades americanas têm, no momento, é a de criar mais abrigos e de descobrir uma maneira de construir prédios de apartamentos destinados a quem não pode comprar ou alugar um imóvel. Mas essa última ideia não é bem recebida pelos republicanos.
Uma solução para reduzir significativamente o número de moradores de rua, que as cidades não sabem como encontrar, seria oferecer a eles oportunidades de emprego.
"Sem teto" nos EUA
Um relatório da organização The Council of Economic Advisers, divulgado em setembro de 2019, afirma que, em janeiro de 2018, foi concluído um levantamento da população homeless (sem teto) dos EUA. Foram contados 552.830, dos quais 194.467 (35%) eram moradores de rua e 358.363 (65%) viviam em abrigos.

A população de cidadãos “sem teto”, em uma noite, equivale a 0,2% da população do país — ou 17 pessoas em cada 10 mil habitantes. Outro levantamento da Fundação Cosac afirma que um terço dos “sem teto” é constituído por veteranos de guerra.
Segundo o relatório de 2019, o Distrito de Colúmbia, que abriga a capital do país, Washington, tem uma população de “sem teto” 3,5 vezes maior do que a média nacional. Entre os estados do país, com população de “sem teto” maior que a média nacional, estão Nova York (2,8 vezes), Havaí (2,7 vezes), Oregon (2 vezes) e Califórnia (1,9 vez). Esses quatro estados e D.C. têm 45% da população homeless do país, embora tenham apenas 20% da população geral.
Entre as cidades, as que têm uma proporção maior de “sem teto” por número de habitantes estão: Washington, D.C. (103 por 10 mil habitantes), Boston (102 por 10 mil) e Cidade de Nova York (101 por 10 mil).
As cidades com maior número de moradores de rua são Los Angeles, Santa Rosa, São Francisco, San Jose (todas na Califórnia) e Seattle (no estado de Washington). Entre as cidades com maior número de “sem teto” em abrigos estão a Cidade de Nova York, Washington D.C. e Boston.
 é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 17 de dezembro de 2019.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Réu não pode ficar preso por não ter condições de pagar fiança, diz STJ

O ministro Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça, deu provimento a pedido de Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo e determinou a soltura de um réu que não tinha condições de pagar fiança.
Acusado de tentativa de furto de uma loja, estava preso desde abril por não ter conseguir pagar R$ 500.  
Detido em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, o homem não tinha registro criminal e foi mantido em prisão provisória, tendo o Juízo de primeira instância indeferido os pedidos formulados pela Defensoria Pública no sentido do afastamento da fiança, ou, ao menos, da concessão de prazo para o recolhimento em liberdade.
O defensor público Felipe de Castro Bustenllo, por sua vez, decidiu impetrar pedido de Habeas Corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, que indeferiu o pedido. A partir daí Busnello decidiu levar o caso ao STJ.
“Não me parece ser razoável manter o paciente custodiado apenas em razão do não pagamento da fiança, especialmente quando se alega a impossibilidade de fazê-lo. Além disso, o tempo decorrido de prisão concretamente demonstra a sua incapacidade financeira para o referido pagamento, não podendo tal circunstância se constituir obstáculo à sua liberdade”, considerou o ministro do STJ.
“Sob essa moldura, deve-se reconhecer a ilegalidade, haja vista a impossibilidade de manter alguém preso em razão da incapacidade de pagar a fiança”, escreveu na decisão.
547.385.2019.0350940
 é repórter da revista Consultor JurídicoRevista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2019.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Plenário começa a julgar ação em que se discute a amplitude das audiências de custódia

O objeto da discussão é decisão do TJ-RJ que limita a medida aos casos de prisão em flagrante. A Defensoria Pública sustenta que ela deve se aplicar também às prisões cautelares.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou, nesta quinta-feira (12), o julgamento de agravo regimental na Reclamação (RCL) 29303, em que se discute se a realização de audiência de custódia é obrigatória em todas as modalidades de prisão ou apenas nos casos de flagrante. Após a manifestações das partes e dos interessadas, o julgamento foi suspenso e deve ser retomado na próxima quarta-feira (18).
agravo, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, ao questionar decisão do Tribunal de Justiça estadual (TJ-RJ) que limita a medida aos casos de prisão em flagrante, sustenta que a interpretação é equivocada em relação ao que decidiu o STF no julgamento de liminar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Da tribuna, o defensor Eduardo Newton argumentou que o núcleo decisório da medida cautelar na ADPF 347 compreendeu os pontos mais mencionados pelos presos no Brasil: a repressão à tortura e o exame da legalidade e da necessidade da prisão. “Com essa limitação da audiência de custódia realizada pelo TJ-RJ, não há como falar que o direito a não ser torturado se encontra legitimamente tutelado naquele estado da federação”, disse.
Em nome do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o advogado Hugo Leonardo ressaltou que nem a Convenção Americana de Direitos Humanos nem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos limitam a audiência de custodia à prisão em flagrante. A norma do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também não impõe restrições a presos ou a títulos de prisão cautelar. O IDDD defende que o STF determine ao Estado do Rio de Janeiro que apresente “todas as pessoas presas, detidas ou retidas a qualquer título de prisão, cautelar ou definitiva, para que lhe seja garantida a integridade física e possa ser verificada o mínimo de racionalidade na manutenção dessas prisões”.
Último a se manifestar, José Santiago, representante do Instituto de Ciências Penais (ICP), afirmou que todo ato de poder deve ser controlado por autoridade externa à que o realizou. “A polícia que prende não pode controlar a legalidade do ato de prisão”, disse.
SP/CR//CF
STF.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Prefeito é condenado por assédio sexual contra quatro mulheres e uma criança

O assédio sexual perpetrado por agente público no exercício da função pública é passível de caracterização como ato de improbidade administrativa. Com base nesse entendimento, a 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou o prefeito de Pirassununga, Ademir Alves Lindo, por atos de improbidade administrativa por ter assediado e beijado à força quatro mulheres e uma criança.          
Prefeitura de Pirassununga
Ademir Alves Lindo foi condenado pelo TJ-SP por assédio sexual contra quatro mulheres e uma criança
“Não resta dúvida de que os atos ímprobos atentatórios aos princípios da administração pública imputados ao réu foram devidamente comprovados, tendo em vista as condutas impróprias do réu, então prefeito de Pirassununga (...) Em se tratando de violação à dignidade ou liberdade sexual, a palavra da vítima tem especial importância e deve ser considerada se harmônica com os demais elementos de convicção, como ocorre no caso em apreço”, disse o relator, desembargador Carlos Von Adamek.
As denúncias de assédio foram feitas entre 2005 e 2010 e levaram o Ministério Público a ajuizar a ação civil pública. O prefeito negou as acusações e afirmou ser vítima de perseguição política. Ele está no terceiro mandato à frente da prefeitura de Pirassununga. O relator, porém, afastou as teses da defesa e classificou os fatos como “gravíssimos”, além de dar peso aos depoimentos das vítimas: “O magistrado pode atribuir aos depoimentos o valor que entender apropriado, conforme a análise global do conjunto fático-probatório.”
Comprovados os atos ímprobos, Von Adamek concluiu que o dolo do prefeito é evidente, “visto que, valendo-se da autoridade conferida pelo cargo que ocupava, o réu molestou sexualmente mulheres que lhe procuraram em busca de colocação profissional ou de manutenção desta ou ainda para procedimento hospitalar, além de uma menor, pedidos esses que foram respondidos com condutas indecorosas em patente violação aos princípios da administração pública, ensejando as penalidades aplicadas”.
O TJ-SP reformou em parte a sentença de primeiro grau somente para reduzir a multa civil aplicada a Lindo. O valor passou de 100 para 20 vezes o valor da remuneração do réu à época dos fatos, considerando o número de vítimas (que foram cinco, entre as quais uma criança) e a “evidente violação do princípio da moralidade administrativa pela mais alta autoridade municipal”. Lindo também foi condenado à suspensão dos direitos políticos por cinco anos.
0008771-37.2012.8.26.0457
 é repórter da revista Consultor Jurídico
Revista Consultor Jurídico, 10 de dezembro de 2019.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Vitimização policial será tema de debate na Câmara

Deputada diz que, proporcionalmente, morreram mais PM no Rio nos últimos 25 anos do que soldados na 2ª Guerra
A Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado discutirá nesta quarta-feira (11), em audiência pública, a vitimização policial.
A deputada Major Fabiana (PSL-RJ), que pediu a realização do evento, afirma que dados apresentados à Frente Parlamentar em Defesa dos Agentes da Segurança Pública da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), mostram que, em 25 anos, 3.508 policiais militares morreram de causas não naturais e outros 15.881 ficaram feridos em confrontos naquele estado.
Segundo ela, “em decorrência dessa condição abjeta, de três a quatro policiais militares se afastam diariamente por conta de problemas psiquiátricos, fatores estes que contribuem com os altos índices de suicídios policiais.”
Convidados
O objetivo da audiência, explica Major Fabiana, é o de pensar em como o Poder Legislativo pode contribuir para diminuir ou até neutralizar esses números em âmbito nacional. Para tanto, ela solicitou que fossem convidados:
- o juiz da comarca do Rio de Janeiro Alexandre Abrahão Teixeira;
- o presidente da Comissão de Análise da Vitimização Policial, coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro Fábio da Rocha Bastos Cajueiro;
- o roteirista do filme “Intervenção, é proibido morrer”, Rodrigo Pimentel; e
-  a secretária de Vitimados do Governo do Rio de Janeiro, tenente-coronel da PM do Rio de Janeiro Priscilla Azevedo.

Na abertura do evento, programado para as 13 horas, no plenário 6, será exibido o filme “Intervenção, é proibido morrer!” que, segundo a deputada Major Fabiana, retrata de forma muito próxima, a realidade dos policiais militares lotados nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do Rio de Janeiro.
Da Redação - ND

Defesa de Direitos Humanos: bandidos e "humanos direitos"

Não é de hoje que o conceito de direitos humanos é mal interpretado e sua defesa percebida como apoio aos “bandidos” e à impunidade. O debate é recorrente a cada crime bárbaro noticiado e a cada decisão judicial garantista proferida em casos que chamam atenção da opinião pública.
Soube que uma mulher teve mais de 50% do corpo queimado, por um vizinho, porque, segundo outros vizinhos, resistiu a seus encantos. Grande “ironia”: o marido da vítima, ao receber a notícia da violência, tentou matar o agressor e foi preso.
A síntese, quando tomei conhecimento: a vítima das queimaduras no hospital, desfigurada, apta a prestar algum tipo de depoimento, lá mesmo, sem previsão de alta e com grande risco de morte. Os dois homens presos.
Merece defesa o incendiário? E o marido? Quem você defenderia (ou não)? Por quê?
Se ganhei sua atenção até aqui, gostaria que fizesse um esforço para ler o texto até o fim. Vou fazer uma pequena digressão sobre uma característica dos direitos humanos para que possamos tentar chegar a um denominador comum.
Quando comecei a estudar o tema, chamaram minha atenção duas de suas principais características: interdependência[1] e universalidade. De formação moral e religiosa Cristã, nunca tive dificuldade em entender a linguagem dos direitos humanos, parece-me, em muitos aspectos, com o Novo Testamento e as pregações do Cristo, permeadas pelo amor a todas as pessoas (universal).
Dizer que um direito é universal é reconhecer que pertence a TODOS os seres humanos, pela sua condição humana apenas, sem qualquer distinção ou exceção. Na construção histórica para alcançar o que hoje chamamos direitos humanos, observou-se que a universalidade é sua essência.
Nesse processo, não se estava pensando no vizinho que tocou fogo na mulher; em alguém que mata outrem para roubar; em quem mata criança a caminho da escola; menos ainda em algum político corrupto; e, jamais, na construção de mecanismos de impunidade deles todos.
O desenvolvimento teórico do tema teve por objetivo, inclusive, a proteção dos inocentes e a promoção da Justiça, através da construção da garantia de um julgamento justo, por terceiro desinteressado (juiz) que ouça os argumentos de defesa e de acusação (com o mesmo cuidado e atenção) e, só então, formando sua convicção, julgue.[2]
Motivando-se pela sensação de impunidade que toma conta do país, todos os dias surgem movimentos e propostas que manipulam informações sobre o que seria a defesa de direitos humanos, tentam retirar desses direitos o seu âmago, a universalidade, e até mesmo pretendem atribuir sua titularidade aos que denominam “humanos direitos”.
Outras vezes, sob o pretexto de defesa dos “humanos direitos”, invertendo a lógica da própria existência do Estado, defendem a necessidade de o Estado ser mais enérgico e duro, mesmo que para tanto, viole direitos de “humanos NÃO direitos”.
Um problema que decorre desta proposta é definir, a priori, se aquele indivíduo é ou não “humano direito” e se deve ou não ter seus direitos humanos respeitados. Outro é identificar a quem seria atribuída essa missão: À sociedade? Ao Estado, através da polícia? À mídia refletida na opinião pública (ou vice-versa)?
Em uma reação passional comum em casos como o relatado, o vizinho piromaníaco estaria condenado à desumanidade. Não se haveria de discutir, em nenhum processo, sua responsabilidade e aplicar-lhe a consequência jurídica que o ordenamento prevê para condutas como a sua[3]. Na verdade, seria eliminado da face da terra, de preferência com bala paga por sua família, ou com outros requintes de crueldade que a mente humana é bem capaz de idealizar.
Para entender um pouco melhor a importância da universalidade dos direitos humanos, lembro que, a depender de quem esteja com o poder de dizer quem é o “humano direito”, o nobre leitor pode vir a não se encaixar no perfil imaginado, seja por ser uma mulher e não se entender adequado um “não” como resposta a uma “cantada”; seja por ser proprietário de algo; seja por ser uma criança negra e pobre a caminho da escola; seja por protestar contra a corrupção.
Se ainda persiste comigo, continuaremos a fundamentar a universalidade mudando um pouco o foco do ser humano a ser protegido, partindo do pressuposto de que, em pleno século XXI, não há quem defenda a escravidão e vamos todos falar a mesma língua, neste aspecto.
No berço da democracia, onde se votava em praça pública o destino da Grécia Antiga e se refletia sobre humanidade, política, cidadania e outros tantos conceitos filosóficos e científicos complexos, havia escravos.
Historicamente, habituados a nos dividirmos em categorias, adotamos estratégias para “desalmar” outros seres humanos, que passam a ser considerados inferiores, e justificar sua dominação, seu desprezo, e, até mesmo, seu extermínio. Foi assim com as colonizações, com a escravidão, com os negros libertos, com os índios, com as mulheres, com as crianças, com os deficientes, com os homossexuais...
Na velha linha do “manda quem pode, obedece quem tem juízo” o “bandido desalmado” de determinado momento histórico pode ser desde o judeu, o negro e o homossexual, como na Alemanha Nazista, ou o estudante que decide ter em casa livros censurados, na última ditadura brasileira. Esse formato de subjugação de “categorias inferiores” de seres humanos é comum em ditaduras[4] de qualquer matiz ideológica.
Após o horror provocado pelo Estado Nazista, decidiu-se que não era admissível à humanidade submeter-se àquilo novamente. Não era humano. Alguns povos do mundo começaram a se reunir para estabelecer um número mínimo de direitos invioláveis pertencentes a TODOS[5].
A ninguém mais seria dada a capacidade de dizer quem tem ou não direito à vida, à integridade física e psíquica, à liberdade, à dignidade humana, ao devido processo legal, à alimentação adequada, à água, à saúde, à educação, ao meio ambiente equilibrado, entre outros. Definiu-se que TODOS têm direito a esse núcleo mínimo de direitos a que chamou “direitos humanos”.
Merece destaque, no cenário americano, atual a situação da Bolívia. Em uma espécie de “autorização para matar”, a autoproclamada presidente Jeanine Añez baixou um decreto que retira dos integrantes das Forças Armadas a responsabilidade penal “no cumprimento de suas funções Constitucionais”, podendo usar “todos os recursos disponíveis” para tanto.[6] Em 17.11.2019, já haviam sido contabilizados, entre cidadãos que se manifestavam, 23 mortos e 715 feridos.[7] A “presidente” deu aos militares bolivianos o poder de decidir que cidadãos merecem ter seu direito humano à vida respeitado, em evidente violação à Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O Estado brasileiro, através da subscrição dos Tratados Internacionais e da própria Constituição Federal de 1988, estabelece a prevalência dos direitos humanos. É papel do Estado brasileiro, então, defendê-los, respeitá-los, protegê-los, promovê-los e, nunca violá-los. Entre os direitos humanos está a liberdade de expressão, a qual garante até mesmo a defesa pública e acalorada da ideia de que os direitos humanos devem deixar de ser universais, em um discurso de retrocesso e perigoso.
Não pode haver exceções e seletividade na proteção dos direitos humanos e é papel do Estado, garantida a liberdade de expressão, defender a universalidade dos direitos humanos. Não podem os representantes do Estado brasileiro agir de modo diferente. E é por isso que, quando o desrespeito a tais direitos parte de representante do Estado, temos que gritar mais alto e a responsabilização dos agentes públicos tem que ser exemplar![8]
Sem poder deixar de mencionar rapidamente a interdependência intrínseca aos direitos humanos, é indispensável registrar que não é possível a um tê-los reconhecidos e seguros quando outrem tiver os seus lesados. Mais: omitir-se diante dessa violação é admitir que uma guilhotina seja colocada sobre a própria cabeça.
“Um dia, vieram e levaram meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram. Já não havia mais ninguém para reclamar”[9]
Defender direitos humanos é defender a humanidade. É defender a si mesmo.

[1]Que vai merecer atenção em outro texto.
[2]Ao contrário dos inúmeros exemplos de processos inquisitórios cheios de superstições, manipulações e tantas outras características nocivas que a história do direito penal mostra, buscava-se o que hoje conhecemos como “devido processo legal”.
[3]Se a pena prevista em lei é suficiente, se penas mais severas, prisões perpétuas ou pena de morte asseguram redução da criminalidade; se os presídios recuperam; e qual deve ser o modelo de encarceramento são temas importantes, porém não os abordarei neste contexto.
[4]A garantia de direitos humanos é intimamente relacionada com a democracia.
[5]Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.
[6]https://internacional.estadão.com.br/noticias/geral,governo-da-bolivia-isenta-militares-de-responsabilidade-penal,70003092087 (acesso em 20.11.2019).
[8]Há diferença clara entre um cidadão comum e um policial que matam; entre um vizinho e um Promotor de Justiça que perseguem; entre um popular e um Magistrado que decidem com base em interesses pessoais; entre o menino de rua que furta e o político corrupto que lesa o erário. Todos estão errados e devem ser punidos, mas os danos gerados pelos erros dos representantes do Estado são infinitamente maiores, por isso a necessidade de um esforço coletivo para que não volte a ocorrer. Isso não significa, de forma alguma, errar novamente, violando os direitos desses “criminosos desalmados”.
[9]Martin Niemoller, teólogo protestante alemão.
Alexandra Beurlen é promotora de Justiça do MP-AL e associada do Movimento do Ministério Público Democrático.
Revista Consultor Jurídico, 9 de dezembro de 2019.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Boletim de Jurisprudência Internacional reúne decisões sobre revista íntima em presídios

7º volume do Boletim de Jurisprudência Internacional, elaborado pela Secretaria de Documentação do Supremo Tribunal Federal (STF), traz como tema a revista íntima no contexto de estabelecimentos prisionais. O objetivo principal da publicação é levantar e sistematizar decisões de altas cortes e, eventualmente, de órgãos internacionais, a respeito de temas complexos que desafiam os tribunais pelo mundo. Nesta edição, o boletim está disponível também nas versões em inglês e espanhol.
Este volume procurou dar suporte jurisdicional ao Tema 998 da repercussão geral, que trata da licitude da prova obtida a partir de revistas íntimas em presídios, tendo em vista o princípio da dignidade da pessoa humana e a proteção ao direito à intimidade, à honra e à imagem. A matéria é objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 959620, de relatoria do ministro Edson Fachin, interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MP-RS) contra decisão do Tribunal de Justiça local (TJ-RS) que absolveu da acusação de tráfico de drogas uma moça que levava 96g de maconha no corpo para entregar ao irmão, preso no Presídio Central de Porto Alegre (RS). Leia mais aqui.
O boletim destaca casos emblemáticos, como a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que considerou ato de violência contra a mulher a realização, no âmbito prisional, de revista íntima em visitantes do sexo feminino, quando praticada sem regulamentação, como uma primeira medida, e não como último recurso, por policiais em vez de profissionais da saúde. Traz, ainda, jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no sentido de que a condenação perpétua de prisioneiro por crimes violentos não justifica, por si só, a realização de revistas íntimas rotineiras.
As pesquisas recuperaram casos julgados por cortes internacionais relativos a revistas no ambiente escolar. Nessa temática, a Suprema Corte do Canadá, ao julgar o histórico caso R. v. M (1998), entendeu que a expectativa de privacidade dos estudantes é reduzida, sendo possível eventualmente submetê-los a revistas. Por outro lado, a Suprema Corte dos Estados Unidos, em um contexto semelhante, avaliou que uma suspeita autoriza a revista dos pertences dos alunos, mas não é suficiente para justificar a realização de revistas íntimas.
Os volumes anteriores do boletim trataram de aborto, trabalho escravo e ensino domiciliar. Todos estão disponíveis no portal do Supremo, no menu "Jurisprudência", no link "Jurisprudência internacional".
SP//CF

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