Sobre as discussões em torno da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, indispensáveis alguns esclarecimentos. Destaque-se, de início, que no Brasil o Ministério Público jamais teve poderes de investigação criminal, tarefa expressamente atribuída pela Constituição às polícias judiciárias, consoante se extrai da única leitura possível do seu artigo 144. Ao Parquet são reservadas competências específicas (artigo 129), como patrocinar com exclusividade a ação penal pública, promover o inquérito civil, a ação civil pública, exercer o controle externo da atividade policial, requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial, etc.
Acham-se muito bem definidos, como se vê, os poderes e atribuições de cada um dos órgãos da persecução penal na Lei Maior. E, diziam os romanos, in claris cessat interpretatio!
Não obstante, insistem alguns no equivocado argumento de que, se ao MP está cometida a promoção da ação penal pública, poderia ele também (por que não?) promover investigações de natureza criminal. Afinal, “quem pode o mais (oferecer a denúncia em juízo) pode o menos (investigar)”. Sob essa perspectiva, para colocar à calva o rematado sofisma que o raciocínio encerra, caberia indagar se à vítima, nos casos de ação penal privada, também seria dado promover investigações e presidir apuratórios oficiais... Quem pode o mais (promover a queixa-crime, querela não pública) também poderia o menos (privatizar a investigação criminal correlativa)?
Ademais, essa interpretação estrábica da Constituição não se compadece com a vontade do povo brasileiro, manifestada em Assembleia Nacional Constituinte. De fato, ao longo do processo que culminou com a promulgação da Carta de 1988, não foram poucas as iniciativas que almejavam a entrega da direção do inquérito ao MP. Todas foram democraticamente rechaçadas, em maciça votação levada a efeito pelos constituintes, que assim deliberaram, fortes na soberania popular. Haveria como revogar tal opção sem emendar a Constituição? Quem estaria acima do povo? Quais artifícios interpretativos poderiam inverter — ou subverter — a sua vontade, fonte de onde emana todo poder? Se a proposta foi rejeitada no plenário constituinte, com que autoridade ou com que fundamentos pretendem alguns dar interpretação “elástica” ao que ficou soberanamente positivado na Carta da Nação? Quem se poderia lançar a tão temerária empresa?
Argumenta-se também que só no Brasil e em três outros países o MP não presidiria as investigações criminais. Será mesmo verdade? Dando-se de barato que seja isso procedente, fixemos vista à desconversável realidade dos fatos. Assinale-se, nesse diapasão, que o sistema repressivo e a estrutura do MP nos países invocados para comparação são inteiramente diversos dos nossos.
De outro lado, nas democracias consolidadas em que o MP possui estrutura orgânica, não detém ele, nem de longe, os poderes e as superlativas garantias que ostenta no Brasil. Na Alemanha, na Espanha e em Portugal, por exemplo, não há independência funcional, agindo seus membros sob a autoridade dos superiores hierárquicos (na Espanha, aliás, o chefe da instituição nem sequer precisa ser integrante da carreira).
Na citada República Alemã (onde não há inamovibilidade nem vitaliciedade) o tema é alvo de intensa discussão, eis que, detendo o órgão acusatório o monopólio da investigação, seria ele senhor absoluto do que deve e do que não deve ser levado ao crivo do Judiciário, cenário que tem sido apontado como manifestamente inconveniente e pouco republicano... Em França, de outro bordo, além de o membro do MP vincular-se à orientação do chefe da instituição (sem autonomia funcional, pois), não há a garantia da inamovibilidade.
No ordenamento italiano, a despeito de conduzir o MP as primeiras investigações, concluídas as apurações o juízo sopesará a viabilidade da acusação em audiência preliminar, em que são produzidas provas, da qual participam as partes, observado o contraditório. Só então se instaura, se for o caso, o giudizio, a fase de julgamento, que deverá ser conduzida por outro magistrado, a quem não são submetidos os adminículos colhidos pelo MP nas chamadas indagini preliminari. Registre-se, aliás, que no Direito peninsular é dado à defesa igualmente promover investigações, equilibrando-se a par conditio.
Como se percebe, não há medidas isométricas que se prestem a comparar espécies tão diferentes; logo, o incabível cotejo de tão diferentes realidades abriga o risco de se incorrer em equívoco (e para ele arrastar a opinião pública).
Sepultada a PEC 37 se estará gerando um Leviatã, com poder de promover investigação criminal secreta, unilateral, seletiva — inaceitável no Estado Democrático de Direito. Além disso, ela se processará sem nenhum controle jurisdicional e com resultado destinado ao próprio investigador, em violação das mais caras garantias processuais do cidadão.
Emblemático o ocorrido na Itália durante a chamada Operação Mãos Limpas, em que o então procurador Di Pietro teve de renunciar ao cargo, tangido por comprovadas denúncias de escabroso abuso de poder...
Por derradeiro, e sobre impunidade, tome-se de exemplo o caso Banestado, no qual o MP levou quase um ano e meio para dar seu parecer, o que também contribuiu para a prescrição (instituto tão hostilizado pelo Parquet).
Fica-se a imaginar o que viria a acontecer se o Ministério Público, além de suas relevantíssimas atribuições ordinárias, viesse a assumir as afetas à polícia judiciária...
Quem (pelo volume do trabalho) não tem podido o menos conseguirá poder o mais?
Guilherme Octávio Batochio é advogado criminalista, conselheiro federal da OAB e membro da Comissão de Defesa da Constitucionalidade da Investigação Criminal da OAB-SP
Revista Consultor Jurídico, 13 de maio de 2013
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