Muito tem-se escrito sobre a famigerada PEC 37, mais conhecida como PEC da Impunidade. O foco da questão tem repousado sobre a evidente impunidade que irá causar, sobre a indissociabilidade lógica entre a titularidade da ação penal e a prerrogativa de investigação, bem como da função do Ministério Público como protetor da ordem jurídica, incluída aí claramente a proteção contra as violações aos bens jurídicos tutelados pelas lei penais.
Todos esses argumentos que vem sendo muito bem levantados pelos detratores da PEC 37 levam à conclusão, a meu ver bastante clara, no sentido da inconstitucionalidade e total inconveniência na aprovação da reforma constitucional. Sobre esses argumentos pretendo escrever outro artigo, tentando fazer uma análise mais detalhada sobre o tema.
Hoje, porém, tenho a intenção de lançar, de forma bastante simples, minhas preocupações sobre os profundos reflexos que a PEC 37 causará sobre o direito de defesa, direito esse pelo qual o Ministério Público, como defensor da constituição e das leis, deve sempre velar.
A minha abordagem nesta reflexão repousará em apenas dois dos vários prejuízos que a PEC 37 causará ao direito de defesa (nem é preciso falar sobre a total temeridade da existência de uma polícia com a autonomia que a PEC pretende dar à polícia judiciária. Essa verdadeira supremacia do Poder Executivo tão própria a períodos não-democráticos).
Inicio o raciocínio com duas indagações: (i) havendo a privatividade da investigação pela polícia judiciaria poderá a defesa investigar? (ii) é bom para o exercício legítimo do direito de defesa uma investigação não-sumária, nos moldes do inquérito policial, ainda mais com a figura de um delegado com poderes privativos?
(i) Se a PEC 37 pretende dar exclusividade da atividade de investigação à polícia judiciária, afastando a possibilidade de o Ministério Público investigar, evidentemente que a defesa também não poderá investigar sozinha. Toda investigação deverá passar pela polícia.
Hoje os advogados, os suspeitos e seus parentes investigam, ou seja, vão atrás de indícios sobre os fatos, muito embora muita gente não se dê conta disso.
Eles conversam com parentes, amigos, eventuais álibis, anotam sua qualificação, endereço, tentam encontrar pessoas que tenham visto os fatos. Vão atrás de documentos, fotos, comprovantes de pagamentos, etc, etc. Todas essas providências são típicos atos de investigação. À defesa hoje isso é perfeitamente permitido fazer. Todo os dias advogados, ao apresentarem a suas defesas prévias, trazem esses dados ao processo judicial.
Com a PEC todos toda a apuração extrajudicial deverá, antes, ser submetida à polícia.
Se assim não o for não haverá privatividade nenhuma. Basta que o Ministério Público e a defesa façam diligências informais e, quando da denúncia ou da defesa prévia, arrolem as testemunhas que bem entenderem ou juntem os documentos que acharem conveniente.
Em suma: será condição para o arrolamento de testemunhas, tanto da defesa, quando da acusação, a sua prévia oitiva na fase policial.
Veja-se aí a situação absurda que se pretende criar com a PEC.
Com o sistema proposto pela PEC 37, a polícia judiciaria passa a ser uma espécie de instância validadora de toda a prova pré-processual. A polícia valida a prova do MP e da defesa.
Ou pela PEC se pretende apenas proibir que o fiscal da lei faça investigações? Daí sim, seria a confissão explícita e assinada (daquilo que muita gente já desconfia) de que a PEC 37 tem dois únicos objetivos: gerar mais impunidade e retaliar o Ministério Público. Afinal: ou defesa e MP investigam, como no sistema atual, ou ninguém pode investigar.
Por isso é gritante a restrição ao direito de defesa que a PEC 37 causará, caso aprovada.
(ii) Os estudos mais aprofundados sobre investigação criminal demonstram claramente que não há nada pior ao princípio do contraditório e da ampla defesa do que uma investigação que mimetiza a fase judicial, com supostos ares de imparcialidade [supostos pois desde do início da década de 80, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já vem proclamando que não há imparcialidade quando a autoridade na fase pré-processual tem a iniciativa de buscar elementos probatórios, seja ela juiz, seja ela do Ministério Público, seja ela autoridade policial – ver casos Piersack vs. Bélgica (1982) e Cubber vs. Bélgica (1984). É a chamada ausência objetiva de imparcialidade, que decorre diretamente da função de investigar. O que não afasta o dever de objetividade das investigações, ou seja, a investigação deve buscar esclarecer os fatos].
A investigação judicialiforme, como ocorre no vetusto inquérito policial, é terrível para o contraditório, pois causa uma hipertrofia da fase investigativa. O valor probatório da prova produzida na fase policial fica muito grande. E isso atenta contra o princípio do contraditório, contra o princípio de que a prova penal deve ser produzida perante o Juiz e não perante a polícia.
A investigação criminal deve ser sumária, deve ser acessória, deve servir tão somente para que o Ministério Público formule sua opinio delicti de forma mais madura.
Para o oferecimento da denúncia o Ministério Público utiliza os elementos produzidos em atos de investigação (praticados na fase pré-processual não judicializada). Para a decisão de condenação o Juiz somente pode utilizar de elementos produzidos em atos de prova (produzidos em juízo sob o contraditório).
Nesse sentido, inclusive, é o artigo 155 do CPP, que reforça a ideia de que a função preponderante do inquérito policial é a de tão somente subsidiar a acusação, não podendo servir, em regra, como elemento probatório para a sentença, salvo quando se tratar de ato irrepetível.
A hipertrofia dos atos de investigação (produzida cartorialmente, na presença de autoridade da polícia judiciária dita imparcial, ainda mais com poderes exclusivos, em evidente mimetismo da fase judicial) sobrevalora esses atos de investigação que não deveriam servir para a sentença condenatória.
Em uma investigação assim, como alerta Schünemann, “o juízo oral (audiência de instrução e julgamento) não é mais o centro decisivo do procedimento penal, mas sim, em geral, acaba sendo uma mera consagração trabalhosamente encenada dos resultados já obtidos no processo de investigação. Nas palavras de Wolter, o procedimento de investigação é, por tanto, ‘núcleo e ponto culminante do processo penal’.” (Schünemann, Bernd. Obras. — Buenos Aires, Rubinzal-Culzoni, 2009, vol. 2, pp. 470-471).
Esse processo de investigação “não-sumário” acaba gerando o perverso efeito da prevalência probante dos atos investigatórios, em que a “verdade” da investigação passa a ser a “verdade” da fase judicial, fazendo com que a conclusão da apuração extrajudicial se transforme numa verdadeira self-fulfilling prophecy quando da conclusão do julgamento (Schünemann, Bernd. Op cit. p. 475).
Isso usurpa as funções do Poder Judiciário, enfraquece seriamente os direitos de defesa e do contraditório, o que é ruim para a defesa técnica e para o Ministério Público que deve velar sempre por um processo justo. Com a PEC 37 esses problemas são elevados à máxima potencia.
Assim, me parece, fica bastante claro que a PEC 37 não atinge só o Ministério Público, não gera “só” impunidade, mas gera também punições duvidosas e inconstitucionais, pois feitas sob um contraditório anêmico.
A PEC 37 também usurpa de modo ainda mais forte a força do Poder Judiciário, que deveria ser o protagonista e não mero coadjuvante no processo penal.
A PEC 37 atinge fortemente o direito de defesa, atinge em cheio a classe dos advogados criminalistas, pois também os proíbe de investigar e impõe-lhes que façam a defesa em um processo penal com uma investigação inquisitória hipertrofiada.
Preocupa muito a OAB nacional manifestar-se favoravelmente à PEC 37. Contraria sua tradição de luta pelo aperfeiçoamento de nossa democracia, luta essa que foi imprescindível para nosso país, em especial nos períodos mais obscuros de nossa recente história.
Rodrigo Leite Ferreira Cabral é promotor de Justiça no estado do Paraná, especialista em Direito Constitucional, mestre em Criminologia e Ciências Forenses pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha) e doutorando em Ciências Jurídicas e Políticas pela mesma Universidade.
Revista Consultor Jurídico, 21 de maio de 2013
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