Constatada a ocorrência de um crime, nasce para o Estado o seu direito de punir. O crime, por si só, constitui uma negação ao Direito. O criminoso, ao agir de maneira contrária às regras pré-estabelecidas, se opõe ao Estado e a toda sociedade que, por meio de seus representantes, estabeleceu uma lei que deve ser respeitada. Como conseqüência, o infrator será submetido a uma punição.
Cezar Roberto Bitencourt explica o seguinte: “A pena serve para destacar com seriedade, e de forma ‘cara’ para o infrator, que a sua conduta não impede a manutenção da norma. Assim, enquanto o delito é negativo, na medida em que infringe a norma, fraudando suas expectativas, a pena, por sua vez, é positiva na medida em que afirma a vigência da norma ao negar sua infração.”[1]
A pena, portanto, é a materialização do ius puniendi estatal. Contudo, o exercício desse direito é condicionado a uma prévia comprovação da existência do delito. Esta conclusão, por seu turno, depende de um processo que delimite o crime cometido e legitime a aplicação de uma pena. “Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo senão para determinar o delito e impor uma pena”. [2] Em outras palavras, é por meio do processo que o Estado exerce o seu direito de punir.
Sendo assim, podemos afirmar que o objetivo do processo penal é a reconstituição do fato criminoso. Trata-se, em última análise, de um instrumento que limita o poder punitivo estatal, impedindo que o direito fundamental a liberdade de locomoção seja suprimido de maneira arbitrária. Através do processo o Estado justifica a imposição de uma pena no momento em que o juiz profere sua sentença. Mas não é só isso. Não podemos olvidar que o processo penal é um instrumento neutro, sendo que, muitas vezes, o seu conteúdo serve para demonstrar ou restabelecer o direito de liberdade do acusado.
Por tudo isso, o papel do juiz é de extrema importância dentro do processo penal, haja vista que todo o conjunto probatório é direcionado a sua apreciação, Entretanto, a formação do convencimento do magistrado não se restringirá apenas ao conteúdo do processo, sendo ele influenciado por diversos outros fatores que, de alguma maneira, se relacionam com o seu objeto.
Nessa linha de raciocínio, o intuito desse estudo é demonstrar que a confissão realizada na fase policial pode perfeitamente servir para a formação do convencimento do juiz, pois, conforme destacado, são vários os fatores que influenciam na sua decisão final. Negar o valor probatório da confissão extraprocessual é negar o aspecto humano da figura do juiz, é colocá-lo como uma máquina, como um computador, que não possui sentimentos ou história de vida.
Não é outra a lição de Eduardo Cambi: “Os juízes contemporâneos, ao sentenciarem, não podem ser equiparados às máquinas automáticas, capazes de resolverem mecânica e matematicamente os conflitos de interesses, porque, sem sensibilidade, humanidade e solidariedade, haverá apenas barbárie, não justiça constitucional”. [3]
Valor Probatório do Inquérito Policial
Muito se discute na doutrina sobre o valor probatório do Inquérito Policial, sendo que alguns autores se referem a este procedimento investigativo de Polícia Judiciária como uma “peça meramente informativa”, “dispensável”, sem praticamente nenhum valor probatório. Data vênia, não é essa a nossa opinião.
Primeiramente, vale destacar a diferenciação feita por Lopes Júnior entre atos de prova e atos de investigação. Em estreita síntese, o autor defende que atos de prova são aqueles dirigidos a convencer o juiz da verdade de uma afirmação (servem à sentença), sendo produzidos durante o processo, na presença do magistrado e sob o império dos princípios do contraditório e da ampla defesa.[4]
Por outro lado, atos de investigação seriam aqueles produzidos durante a fase pré-processual, com o objetivo de formar um juízo de probabilidade, e não de certeza, servindo de fundamento para decisões interlocutórias, tais como indiciamento, adoção de medidas cautelares etc.
Em conclusão, Lopes Jr. ensina que: “O valor dos elementos coligidos no curso do inquérito policial somente servem para fundamentar medidas de natureza endoprocedimental (cautelares etc.) e, no momento da administração da acusação, para justificar o processo ou o não processo (arquivamento).” [5]
Deveras, não podemos negar que existe uma diferenciação entre provas e elementos de informação, tanto que o próprio legislador assumiu essa posição no artigo 155 do Código de Processo Penal, deixando claro que as provas são apenas aquelas produzidas em contraditório judicial. Esta é, portanto, a regra dentro da persecução penal. Contudo, ao longo deste estudo nós veremos que há exceções.
Antes de nos aprofundarmos neste tema, lembramos que o processo penal tem por objetivo a reconstituição de um fato criminoso. O juiz, na sentença, constrói a sua história do crime, nos termos do seu convencimento. Em outras palavras, o processo deve buscar chegar o mais próximo possível da verdade dos fatos.
Em um passado não muito distante, a doutrina, de um modo geral, defendia a ideia de que o processo penal objetivava, sempre, uma verdade real ou material. Hodiernamente, todavia, admiti-se que é impossível atingir uma verdade absoluta. Nesse diapasão, Renato Brasileiro defende que: “A prova produzida em juízo, por mais robusta e contundente que seja, é incapaz de dar ao magistrado um juízo de certeza absoluta. O que vai haver é uma aproximação, maior ou menor, da certeza dos fatos.”[6]
Como se percebe, a persecução penal tem por desiderato reunir elementos que possam fornecer ao Estado-Juiz a melhor visão possível acerca do fato delituoso, subsidiando, assim, uma sentença final justa, bem fundamentada e que se aproxime da realidade dos fatos. Afinal, a verdade absoluta, coincidente com os fatos ocorridos, é um ideal, porém, impossível de ser atingido.[7]
Ainda nessa mesma linha de raciocínio, é interessante analisar as situações envolvendo as prisões em flagrante delito que se enquadram nos incisos I e II, do artigo 302 do CPP. Como é cediço, essas hipóteses flagranciais se caracterizam no momento em que o agente esta cometendo o crime ou acaba de cometê-lo (flagrante próprio).
Sendo assim, pergunta-se: diante de uma situação como esta, em que o sujeito é surpreendido cometendo o crime, qual seria a necessidade de um processo? Será que nos casos flagranciais há espaço para dúvidas? Seria o processo indispensável diante de uma situação de tamanha certeza sobre a autoria?
Dentro de uma visão constitucional e garantista da persecução penal, a resposta só pode ser pela necessidade, não só do processo, como da investigação preliminar. É através do Inquérito Policial que o Estado formaliza a prisão em flagrante e reúne os elementos que justificam o início da fase processual. Da mesma forma, é por meio do processo que o Estado comprova o seu direito de punir. Isto, pois, mesmo em situações de flagrante delito, é necessário que o Estado delineie todo o contorno jurídico dos fatos, uma vez que o sujeito pode, por exemplo, ter praticado o crime movido por um motivo de relevante valor social que, se caracterizado, pode atenuar sua pena. Mais do que isso, o agente pode ter praticado a infração amparado por uma causa excludente de ilicitude. Por tudo isso, uma pena só pode ser aplicada por meio de um processo.
Percebam, caros leitores, que todas essas colocações foram feitas com o intuito de reforçar a importância do Inquérito Policial na reconstituição do fato criminoso. Afirmar que este procedimento investigativo não serve à sentença final é manietar em absoluto a sua verdadeira função, haja vista que em muitos casos o juiz forma o seu convencimento com base neste instrumento, o que é permitido, inclusive, pelo próprio Código de Processo Penal (artigo 155).
Não é outra a lição de Renato Brasileiro: “Destarte, pode-se dizer que, isoladamente considerados, elementos informativos não são idôneos para fundamentar uma condenação. Todavia, não devem ser completamente desprezados, podendo se somar à prova produzida em juízo e, assim, servir como mais um elemento na formação da convicção do órgão julgador”. [8]
Sem embargo, consignamos que, de acordo com o nosso entendimento, também podem ser produzidas provas dentro do Inquérito Policial. Como exemplo, citamos as provas não-repetíveis e as provas cautelares.
De acordo com a doutrina [9], prova cautelar é aquela que não precisa necessariamente ser produzida em juízo, sob o império do princípio do contraditório. Um exemplo é a busca e apreensão não domiciliar de coisa, na fase de investigações, para preservá-la, possibilitando, assim, futuros exames ou perícias.
Prova não-repetível, por outro lado, é aquela que não tem como ser novamente coletada ou produzida, seja por desaparecimento, destruição ou perecimento da fonte probatória. Como exemplo, podemos citar o exame de embriaguez (que deve ser realizado enquanto durar o estado etílico); o exame de corpo de delito para constatar lesões corporais, que, mais tarde, irão desaparecer; o reconhecimento feito por uma testemunha durante a fase de Inquérito Policial, mas que depois veio a falecer etc.
Desse modo, tendo em vista que todas essas provas poderão exercer um papel de fundamental importância no convencimento do juiz, é imprescindível que a autoridade de polícia judiciária zele pela observância de todas as garantias legais e constitucionais durante a fase de investigação, fortalecendo, assim, o Estado Democrático de Direito e o princípio da dignidade da pessoa humana.
Frente ao exposto, defendemos o entendimento de que no Inquérito Policial poderão ser produzidos não só elementos de informação, mas também algumas provas, especialmente quando se tratar de exames periciais. Nesse sentido, é salutar que o delegado de Polícia dê ao investigado a possibilidade de se manifestar sobre o resultado do laudo pericial, inclusive solicitando exame complementar, o que, ao que nos parece, é uma clara manifestação do princípio do contraditório.
Agindo dessa forma a autoridade policial não prejudica em nada as investigações e apenas fortalece todo o material colhido durante esta fase da persecução penal.
Confissão Extraprocessual e seu valor probatório
A verdade que se busca no processo é aquela capaz que convencer o julgador, sendo que esta convicção é, invariavelmente, íntima, ainda que fundamentada. O que se exige dos magistrados é a imparcialidade. A neutralidade, contudo, é impossível de ser alcançada, pois o juiz será sempre influenciado por alguma circunstância (social, pessoal, factual, filosófica etc.). Assim, é incontestável o fato de que o inquérito policial pode, sim, influenciar a decisão do julgador, sendo muito difícil mensurar o grau de influência que os seus elementos tiveram na formação do seu convencimento.
Demais disso, as próprias percepções do delegado de Polícia, primeiro agente estatal a ter contato com o crime, podem ser levadas em consideração pelo juiz no momento da sentença. Não podemos olvidar que, na condição de funcionário público, as conclusões da autoridade policial gozam de relativa presunção de veracidade e legitimidade, não podendo, isto, ser desprezado pelo julgador.
Muitas vezes, no calor dos fatos, logo após a constatação de um crime, o delegado de Polícia pode ouvir ou presenciar alguma coisa que, ainda que não formalizada nos autos do inquérito, possa servir ao processo. Por ter contato direto com as partes no momento subsequente à infração, a autoridade policial pode perceber algumas situações que, muitas vezes, fogem da esfera procedimental, podendo o seu próprio depoimento ser valorado em uma sentença final.
É preciso que se acabe com esse ranço por parte de alguns doutrinadores que insistem em afirmar que a fase pré-processual é composta de abusos e desrespeitos às garantias individuais. Não vivemos mais na época da ditadura, mas, sim, em um Estado Democrático, Social e Humanitário de Direito, sendo dever da polícia judiciária se enquadrar nesse padrão. É justamente nesse ponto que levantamos a discussão sobre o valor probatório da confissão obtida na fase de investigação.
Não podemos mais admitir suposições no sentido de que uma eventual confissão no bojo do inquérito tenha sido obtida por meio de tortura. Muito pelo contrário, ressaltamos que os atos praticados pela polícia judiciária gozam de relativa presunção de veracidade e legitimidade. Portanto, se um investigado confessa a prática delituosa, a única suposição que podemos fazer é no sentido de que tal fato se deu de maneira legítima e nos termos legais, sem qualquer tipo coação. Nesse sentido, entendemos que tal confissão pode, perfeitamente, ser valorada pelo juiz no momento da sentença, ainda que o acusado volte atrás na fase processual. Para que esta prova seja desconstituída, deve ficar comprovado que ela foi obtida de maneira ilegal, caso contrário, poderá ser livremente apreciada pelo julgador. [10]
Ora, a confissão colhida na fase de investigação é um elemento de informação produzido sob o comando do delegado de Polícia, que é um agente do Estado com formação jurídica e que deve zelar sempre pela observância dos valores legais e constitucionais no desempenho de seu mister, o que apenas reforça as nossas conclusões.
Quantas condenações já foram efetuadas com base nos depoimentos de policiais militares ou até nas declarações da própria vítima? Nunca se questionou o valor desses elementos. Agora, a confissão obtida pelo delegado de Polícia é constantemente questionada! Os advogados de defesa sempre alegam coações na fase policial, torturas etc. Voltamos a ressaltar, se não restar comprovada a ilegalidade da obtenção da confissão na fase de investigação, ela pode e deve ser apreciada pelo juiz no momento da sentença.
Não podemos ser hipócritas a ponto de afirmar a neutralidade do magistrado na análise do conteúdo do processo. O juiz, muitas vezes, forma seu convencimento baseado em circunstâncias alheias ao fato discutido. O histórico de vida do acusado, a empatia ou antipatia que ele cause no julgador, sua postura nas audiências, os posicionamentos do advogado de defesa ou do promotor de justiça, a repercussão social do fato, as experiências pregressas do magistrado e até sua empatia por uma testemunha, tudo isso pode influenciar na decisão final.
Na verdade, uma decisão judicial sempre irá refletir ou demonstrar um pouco das características pessoais do julgador, suas experiências pessoais, suas frustrações, seu temperamento etc. Nas lições de Eduardo Cambi, “Ao se evidenciar o caráter subjetivo das decisões, não se está pregando a possibilidade de os juízes serem super ou sobre-humanos. Quer-se apenas salientar que, no exercício do poder jurisdicional, há de se ter a maior consciência possível de como a sua personalidade, a sua forma de percepção ou de raciocínio podem influenciar na decisão judicial e, na medida do razoável, evitar que estes fatores causem efeitos deletérios”. [11]
Conforme se depreende do exposto, os fatores subjetivos inevitavelmente ligados às decisões judiciais demonstram que é impossível defender a neutralidade dos magistrados. O que se espera do julgador é a sua imparcialidade, sendo a neutralidade um objetivo impossível de ser alcançado.
Em conclusão, defendemos o entendimento de que a confissão obtida na fase de investigação, não só pode, como deve ser apreciada pelo julgador no momento da sentença. Esta afirmação é sustentada legal e juridicamente, uma vez que, conforme salientado, tal confissão decorre de uma atividade dirigida por um agente estatal (delegado de Polícia) e que, portanto, goza de relativa presunção de veracidade e legitimidade. Ademais, o próprio Código de Processo Penal admite que os elementos produzidos no inquérito policial possam ser utilizados para fundamentar a decisão final. Lembramos, ainda, que toda essa discussão ganha maior relevo no procedimento do Tribunal do Júri, onde os jurados nem sequer precisam fundamentar suas conclusões. Por fim, não podemos olvidar que aspectos estranhos ao conteúdo do processo também têm o condão de influenciar a decisão do julgador, sendo a confissão policial um fator relevante na solução da causa, podendo ser valorada, ainda que de maneira indireta ou subliminar. Negar o valor probatório da confissão extraprocessual é fechar os olhos para a realidade dos fatos. É afirmar que o Direito é uma ciência exata, absolutamente despida de interpretações subjetivas e humanizadas.
Referências
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. ed.19ª. São Paulo: Saraiva, 2013.
FEITOZA, Denílson. Direito Processual Penal – Teoria, Crítica e Práxis.ed.6ª. Niterói: Impetus, 2009.
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. 2ª ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer, “et al.”. 3ª ed. São Paulo: RT, 2010.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 2ª ed. Niterói: Impetus, 2013.
LOPES JÚNIOR., Aury, Investigação Preliminar no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2013.
[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. p. 150.
[2] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. p. 76.
[3] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. p.124.
[4] LOPES JÚNIOR, Aury. Investigação Preliminar no Processo Penal.p.322.
[5] LOPES JÚNIOR. Aury. Investigação Preliminar no Processo Penal.p.323.
[6] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Pena . p.48.
[7] IDEM.
[8] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal.p.115.
[9] FEITOZA, Denílson. Direito Processual Penal – Teoria, Crítica e Práxis. p.690.
[10] Nesse ponto, vale lembrar que, em tese, o acusado ou seu defensor ainda poderão responder pelo crime de denunciação caluniosa.
[11] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. p.126.
Francisco Sannini Neto é delegado de Polícia Civil de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 10 de maio de 2013
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