segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Artigo: Inquérito em andamento constitui antecedente criminal?

Se todo acusado é presumido inocente, até que a sentença definitiva o reconheça culpado (CF, art. 5.º, inc. LVII), jamais o inquérito policial ou a ação penal em andamento pode ser considerado como antecedente criminal. Pensar de forma diferente significa conceber clara violação ao princípio da presunção de inocência.

Neste ano de 2008 (10 de dezembro) a Declaração Universal dos Direitos Humanos está completando 60 anos. Ela já previa a presunção de inocência no seu art. XI, nestes termos: "1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa."

Sessenta anos depois da vigência dessa Declaração Universal é estarrecedor ainda ver o STF discutindo se inquérito ou ação em andamento constitui antecedente criminal. No dia 14/10/2008 a Primeira Turma do STF deliberou afetar ao Pleno precisamente essa questão (HC 94.620-MS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 14/10/2008).

Isso ainda ocorre dentro do STF porque, uma vez ou outra, ele já decidiu que inquérito em andamento constitui antecedente criminal. Vejamos: em 29/11/2005, excepcionando-se o Ministro Gilmar Mendes, voto vencido, e o Min. Celso de Mello, ausente, a Segunda Turma do STF decidiu: "Princípio da Não-Culpabilidade e Maus Antecedentes: Concluído julgamento de habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ que indeferira igual medida ao fundamento de que o paciente, condenado por porte ilegal de arma (Lei 9.437/97, art. 10, §§ 2.º e 4.º) à pena de 3 anos de reclusão e 15 dias-multa, em regime semi-aberto, não preenche os requisitos subjetivos exigidos pelo art. 44, III, do CP, na redação dada pela Lei 9.714/98, para a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, haja vista a sua folha de antecedentes penais - v. Informativo 390. Alegava-se, na espécie, constrangimento ilegal consistente na fixação de regime inicial mais gravoso, bem como na negativa de substituição da pena aplicada. A Turma, por maioria, indeferiu o writ por reconhecer que, no caso, inquéritos e ações penais em curso podem ser considerados maus antecedentes, para todos os efeitos legais. Vencido o Min. Gilmar Mendes, relator, que, tendo em conta que a fixação da pena e do regime do ora paciente se lastreara única e exclusivamente na existência de dois inquéritos policiais e uma ação penal, concedia o habeas corpus. HC 84.088/MS, rel. orig. Min. Gilmar Mendes, rel. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, 29/11/2005".

Em virtude de decisões totalmente equivocadas como essa é que, agora, a Primeira Turma do STF deliberou afetar ao Pleno a questão. É evidente que inquérito policial ou ação penal em andamento não constitui antecedente criminal, por força do princípio da presunção de inocência.

O correto, aliás, é mesmo falar em princípio da presunção de inocência (tal como descrito na CADH) não em princípio da não-culpabilidade (esta última locução tem origem no fascismo italiano, que não se conformava com a idéia de que o acusado fosse, em princípio, inocente).

Trata-se de princípio consagrado não só no art. 8.2. da CADH senão também (em parte) no art. 5.º, LVII, da Constituição Federal, segundo o qual toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarada culpada por sentença transitada em julgado. Tem previsão normativa desde 1789, posto que já constava da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Faz parte também da Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. XI).

Do princípio da presunção de inocência ("todo acusado é presumido inocente até que se comprove sua culpabilidade") emanam duas regras: (a) regra de tratamento e (b) regra probatória.

Regra de tratamento: o acusado não pode ser tratado como condenado antes do trânsito em julgado final da sentença condenatória (CF, art. 5.º, LVII).

O acusado, por força da regra que estamos analisando, tem o direito de receber a devida consideração bem como o direito de ser tratado como não participante do fato imputado. Como "regra de tratamento" a presunção de inocência impede qualquer antecipação de juízo condenatório ou de reconhecimento da culpabilidade do imputado, seja por situações, práticas, palavras, gestos etc., podendo-se exemplificar: a impropriedade de se manter o acusado em exposição humilhante no banco dos réus, o uso de algemas quando desnecessário, a divulgação abusiva de fatos e nomes de pessoas pelos meios de comunicação, a decretação ou manutenção de prisão cautelar desnecessária, a exigência de se recolher à prisão para apelar em razão da existência de condenação em primeira instância etc. É contrária à presunção de inocência a exibição de uma pessoa aos meios de comunicação vestido com traje infamante (Corte Interamericana, Caso Cantoral Benavides, Sentença de 18/8/00, parágrafo 119).

Com a presunção de inocência são incompatíveis, de outro lado, as prisões automáticas ou prisões "por força de lei" assim como o reconhecimento de maus antecedentes criminais na simples existência de inquérito ou de processo em andamento etc.

Apesar dos muitos avanços alcançados, sobretudo depois da sua nova composição, o STF, em alguns momentos, em matéria de solidificação dos direitos e garantias fundamentais do acusado, parece um Tribunal da Idade Média. Que prepondere, no Pleno, a razoabilidade (assim como a força normativa do princípio da presunção de inocência).

Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito penal pela Universidade de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).

O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 02/11/2008.

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