quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Artigo: A Lei 11.705, de 19/06/2008 e o crime de embriaguez ao volante

A Lei 11.705/08, alcunhada de “Lei Seca”, vem causando grande repercussão na mídia e na sociedade, até porque nos primeiros meses de sua vigência diminuiu o número de acidentes de trânsito e implicou também na diminuição do consumo de bebidas alcoólicas nos bares e restaurantes das cidades brasileiras.

As mudanças produzidas pela “Lei Seca” têm gerado dúvidas por parte dos cidadãos, cabendo distinguir a infração administrativa da infração penal.

A infração administrativa prevista no art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997), passou a vigorar com a seguinte redação: “dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determina dependência: infração- gravíssima; penalidade- multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 meses; medida administrativa- retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação”.

A principal mudança diz respeito à concentração de álcool por litro de sangue. A redação anterior do art. 165 falava em nível superior a seis decigramas por litro de sangue, sendo que a redação atual fala simplesmente em dirigir sub a influência de álcool, estabelecendo o art. 276 do CTB, também com redação alterada pela Lei 11.705/08, que “qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades prevista no art. 165 deste Código”. Estabeleceu-se que, para fins administrativos, o limite é de dois decigramas de álcool por litro de sangue, sujeitando o infrator a uma multa de R$ 955,00 e a suspensão do direito de dirigir por um ano. A apreensão do veículo só deve ocorrer nas situações em que não se apresente outro condutor habilitado.

O crime propriamente dito de embriaguez ao volante, previsto no art. 306 do CTB, tem a sua redação alterada da seguinte forma: “Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:...Parágrafo único. O Pode Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo”. As penas do referido dispositivo continuam as mesmas, ou seja, detenção de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Duas grandes mudanças inseridas no tipo penal do art. 306 do CTB pela Lei 11.705/2008 são: a) o tipo passa a definir qual a concentração de álcool por litro de sangue para caracterizar a embriaguez ao volante (0,6 gramas por litro); b) é retirada a anterior expressão “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”.

As mudanças alteram sensivelmente as interpretações que vinham sendo dadas ao art. 306 do CTB. Passa o delito a ser considerado crime de mera conduta (ou de simples atividade), o qual é definido como aquele em que a lei não exige qualquer resultado naturalístico, contentando-se com a ação ou omissão do agente. Não sendo relevante o resultado material, há uma ofensa (de dano ou de perigo), presumida pela lei diante da prática da conduta[1]. A redação atual do crime de embriaguez ao volante é de maior rigor que a contravenção penal de direção perigosa, que prevê no seu art. 34 a conduta de “dirigir veículos na via pública, ou embarcações em águas públicas pondo em perigo a segurança alheia”. A referida contravenção penal que punia a embriaguez ao volante antes do advento do Código de Trânsito Brasileiro, em muitos casos, era considerada de perigo abstrato. Nesse sentido: “Dirigir embriagado. Constitui contravenção sem a necessidade de perquirir a existência ou não do perigo concreto” (RT, 483:345; 488:378; 492:354; 508:385). Anotava Marcello Jardim Linhares, na sua clássica obra sobre as contravenções penais que “o ato de dirigir embriagado, por si só, deve realmente configurar a contravenção, pois o álcool, ainda que ingerido em pequenas doses, enfraquecendo o controle inibitório e prejudicando de forma sensível a atenção e memorização e capacidade de agir prontamente de improviso, provoca o descontrole absoluto de quem o absorve”[2].

O tipo penal do art. 306 do CTB, com sua atual redação, tutela a incolumidade pública, sendo sujeito passivo a coletividade. A retirada da expressão “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem” indica que o crime passa a ser de perigo abstrato.

Outro dispositivo acrescentado pela Lei 11.705/2008 são os parágrafos 2º e 3º do art. 277 que dispõe. “§ 2º. A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor. §3º. Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo”. Referido dispositivo reforça a possibilidade de utilização do comentado bafômetro.

De se notar que o bafômetro apresenta resultados diferentes do exame de sangue, sendo mencionado que “o limite é de 6 decigramas de álcool por litro de sangue, ou 0,3 miligrama por litro de ar expelido no bafômetro- equivalente a dois chopes. Para punições administrativas, a tolerância é menor: de 2 decigramas por litro de sangue, ou 01, miligrama por litro de ar expelido”[3].

Em que pese falarmos de crime de mera conduta, deverá haver cautela por parte dos operadores do direito quanto à configuração do crime. Estudos demonstram que entre 0,5 a 1,0 grama por litro de sangue, revela consciência controlada do consumidor de bebida, sendo considerado um período subclínico [4]. Tratando-se o direito penal como “ultima ratio”, a persecução penal deverá ocorrer a partir de critérios mais rigorosos com a realização de exames tecnicamente seguros e confiáveis. Pequenas variações acima de 0,6 grama por litro de sangue, desacompanhadas de outros elementos probatórios não justificam a punição criminal, uma vez que a punição administrativa mostra-se suficiente ao caso concreto. Da mesma maneira, a confusão mental do motorista embriagado, sinais exteriores e qualquer concentração de álcool mais expressiva, serão suficientes à configuração do delito.
Importante que o operador do direito faça a distinção entre a infração penal e a infração administrativa, já que a primeira implica na conduta dolosa do agente que atinge a incolumidade pública. Ainda que se trate de crime de perigo abstrato, não é o caso de presumir-se o perigo de maneira absoluta. Os tribunais têm admitido a presunção relativa nos crimes contra os costumes, quando a vítima é menor de 14 anos (discussão a respeito do art. 224, letra “a” do CP). A fim de que haja discernimento e justiça na configuração do crime de embriaguez ao volante, a presunção de que o condutor do veículo está embriagado, estando o procedimento de aferição próximo de 6 decigramas de álcool por litro de sangue, deverá ser relativa. Assim, por considerações de ordem pessoal (compleição física, capacidade plena de diálogo) e coletiva (dirigindo em situação normal, abordagem cotidiana sem qualquer sinal de direção perigosa), se justifica que o condutor apresente prova em contrário, ou seja, que demonstre que, no caso concreto, a sanção penal revela-se inadequada e excessiva, uma vez que não está expondo a coletividade a qualquer risco.

[1] Cf. Julio Fabbrini Mirabete. Manual de Direito Penal. Vol. I. Ed. Atlas, 2003, p. 134.

[2] Marcello Jardim Linhares. Contravenções Penais. Vol. 1. Ed. Saraiva, 1980, p. 296.

[3] Fonte- Estadao.com.br- Entenda os principais pontos da Lei Seca, 28 de junho de 2008.

[4] Dado retirado de tabela publicada na obra Código de Trânsito Brasileiro Interpretado, de Geraldo de Faria Lemos Pinheiro e Dorival Ribeiro, Ed. Juarez de Oliveira, p. 303.


Antonio Celso Faria, Promotor de Justiça/SP, Professor de Direito Penal da UNIP

FARIA, Antonio Celso. A Lei 11.705, de 19/06/2008 e o crime de embriaguez ao volante. Disponível em: www.ibccrim.org.br. Acesso em: 24 nov. 2008.

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