sábado, 29 de novembro de 2008

Olhar além das grades

Eles são jovens, mas trazem no corpo e no olhar as marcas de uma infância perdida no passado. Todos estão ali por crimes que cometeram, sendo vítimas e algozes de suas escolhas. Dentro do Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas (Degase), eles são reconhecidos através de números de identificação, mas, pela primeira vez, tiveram a oportunidade de expressar o dia-a-dia no sistema através de imagens fotográficas.

A experiência de criar uma oficina de fotografia com jovens de duas unidades surgiu através da parceria da ONG Ação Comunitária com o próprio Degase. Durante os quatro meses de aula foram produzidas dezenas de fotos que fazem parte da exposição “Sonhos Velados”, primeira mostra produzida pelos internos e ex-internos, inaugurada no dia 17 de novembro no Centro Cultural Laura Alvim, em Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro. Um dos professores, o fotógrafo Fábio Caffé, explica como foi o processo de sensibilização dos alunos, já que muitos nunca tiveram contato com uma câmera digital.

“A nossa idéia era que a fotografia gerasse uma outra percepção do mundo e das pessoas através de um olhar mais humanizado. Ficamos surpreendidos que, em pouco tempo, eles já tenham produzido um material de qualidade. Muitos mostraram um talento natural para a fotografia, apesar de ainda não dominarem a técnica”, afirma Caffé.

O curador da exposição, Dante Gastaldoni, falou sobre o processo de seleção das imagens e a preocupação de preservar a identidade dos jovens, já que muitos ainda estão cumprindo medidas sócio-educativas. “O cuidado dos jovens em não identificar os outros internos não atrapalhou e serviu como um desafio na hora de compor as imagens", afirma.

"O olhar desses meninos procura coisas que talvez passem despercebidas por um fotógrafo profissional. Muitas vezes, a nossa realidade impede de ver através do olhar de pessoas que vivem no fio da navalha. Por isso essa exposição tem tanta força, porque mais do que a técnica, esses jovens se entregaram para a experiência e fizeram algo com amor", completa.

A exposição "Sonhos Velados" reúne 70 fotos individuais além de um grande painel onde várias imagens estarão reunidas. Para 2009, eles já receberam um convite para apresentar um novo trabalho na casa França-Brasil, no Centro do Rio.

Segundo o coordenador do projeto dentro do Degase, Eduardo Caom, a idéia da criação de uma oficina veio a partir da constatação de que os jovens ali tinham dificuldades de reconhecer a própria imagem. “Aqui dentro não temos espelhos por motivos de segurança. Toda vez que a gente ia fazer uma visita nas unidades levando uma câmera digital, os meninos e meninas pediam para tirar uma foto deles e mostrar no visor”.

'Aqui dentro não vemos tantas cores vivas'

Durante visita à unidade João Luis Alves, a equipe do Viva Favela conversou com três internos que participaram da oficina. No encontro, eles viram pela primeira vez algumas das fotografias que iriam fazer parte da exposição. A cada foto exibida no computador, as imagens voltavam na memória dos internos. “Aqui dentro não vemos tantas cores vivas. Por isso eu quis mostrar a planta que a gente cuida no alojamento. Achei que ficaria bonito”, afirma W.V.

À medida que falavam sobre as fotos, narravam aos poucos fragmentos de uma vida interrompida por crimes graves como latrocínio e homicídio. Sentimentos de abandono, arrependimento e o desejo de liberdade eram temas recorrentes. Para A.C., a fotografia ajudou a olhar o mundo de uma outra forma. “Eu nunca tinha fotografado antes, mas queria mostrar como são as coisas aqui dentro. É muito bom aprender algo novo, gostaria de continuar quando sair”.

Para o professor Davi Marcos, o desafio das oficinas era despertar e estimular uma visão crítica, no que ele chamou de “exercício do olhar”. “Não estamos ali para salvar ninguém, mas acredito que todo mundo possa ter possibilidades. Se conseguirmos que alguém saia com o mínimo de visão crítica do mundo, teremos atingido o nosso objetivo”.

A imagem dos excluídos

O registro fotográfico em casas de detenção remete ao tempo do Império, quando foi inaugurada a primeira Casa de Correção no país, atual presídio Frei Caneca, em 1850. Nessa casa de correção os internos aprendiam diferentes oficinas, onde se destacava a de fotografia. Essas imagens foram catalogadas em dois álbuns de fotografia que ficaram conhecidos como a “Galeria dos Condenados” e expostos em feiras internacionais na época.

O material ainda existe na documentação de obras raras da Biblioteca Nacional e pode ser pesquisado. Segundo a historiadora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Marilene Rosa, esse material é um dos poucos registros dos excluídos do convívio com a sociedade naquela época.

O valor histórico das imagens também está associado ao fato dessas fotografias serem produzidas por detentos. Na época, a fotografia era o auge da tecnologia e ter uma oficina dentro de uma casa de correção simbolizava uma tentativa de recuperar as pessoas através de um ofício, mas que não se sustentou por diversos motivos, como a falta de recursos para o prosseguimento das atividades”, explica.


Comunidade Segura.

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