Os mais velhos, por certo, vão se lembrar dos faquires. Tive contato com eles uma única vez, na realidade duas. Fui fazer uma consulta médica no centro de São Paulo e lá estava ele, sozinho, dentro da jaula, vigiado por aquilo que modernamente chamaríamos de "auditor independente". Largo do Paissandu, ao lado de um ponto de ônibus. Cerca de 15 dias depois eu passava novamente pelo mesmo lugar; ia pegar os óculos e levar ao médico para ver se estava de acordo com sua prescrição. Novamente o faquir, alguns quilos mais magro, pálido, forçando sorrisos esquálidos e ensaiando acenos. Estava no mesmo canto da jaula, tirara a túnica que envolvia seu tronco, deixando entrever suas costelas salientes... foi a primeira vez que me impressionei com a fome.
Nos dias que correm não há mais "artistas da fome", como previra Kafka. Os jejuadores de hoje já não podem dizer que desdenham alimento por não encontrarem aquele que lhes apeteça, nem se pode afirmar que constituam atrativo ao público. Ao contrário. Aumentaram em número e "ganharam" sua liberdade. Ao fazerem parte — mesmo a contragosto — de nossa rotina, a fome, para todos, vulgarizou-se. Já não nos impressiona mais. É pena. As pessoas deveriam continuar a indignar-se com ela.
Não só.
Também com os problemas dos presos. Mas muitos acreditam, ainda, que em um país em que chefes de família catam lixo para viver, morando sem mínimas condições em favelas, onde crianças ficam expostas ao sol, frio e chuva, vendendo quinquilharias para sobreviver, não se deveria dar a presos aquilo que homens livres não conseguem com o trabalho honesto. Dessa forma, em nome dos direitos dos "livres" — que não são atendidos — muitos acreditam que o preso tem até mais do que deveria. E, assim, não se resolvem os problemas de uns nem de outros. E vamos dormir em paz, pois não somos miseráveis, muito menos presidiários.
Como são as prisões no Brasil? Segundo o censo penitenciário de 1994, há 124.403 homens e 4.766 mulheres presos, ocupando 54.954 vagas, o que significa 2,15 presos por vaga. No Estado de São Paulo, onde se encontra mais de um terço da população carcerária do País, em novembro de 1995, cada preso ocupava o correspondente a menos de um metro quadrado. Nessa época, em Barueri, município da Grande São Paulo, para 24 vagas havia 130 presos. Em alguns lugares, há tantos presos que se se espalharem pelo chão das celas não podem ficar lado a lado. Muitos deles chegam a se amarrar às grades para dormir à noite. São os chamados presos "morcegos". Com esse quadro, agravado por um atendimento médico inadequado (80% dos presos têm o bacilo de tuberculose e 1/6 são HIV soropositivos), pela falta de perspectiva de trabalho e de atendimento social, e por um péssimo atendimento jurídico (o governo de São Paulo, por exemplo, não só não fez concurso para novos defensores e procuradores do Estado, como demitiu mais de 70 advogados que prestavam serviços em presídios através da Funap), a situação nos presídios brasileiros pode ser considerada crítica. Homens e mulheres são tratados como animais e não é de se surpreender que alguns reajam como tal.
Todos esses problemas precisam ser enfrentados. E quem dá o maior passo nesse sentido é a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros — CNBB — ao estabelecer que em 1997 a Campanha da Fraternidade terá o tema "Cristo liberta de todas as prisões". As campanhas que no passado mencionaram a fome, a falta de trabalho, a injustiça, a ausência de saúde, hoje voltam seus olhos para aqueles que concentram todas essas mazelas: os presos. O livro básico da CNBB foi lançado em ato público na OAB/SP. O IBCCRIM fez-se representar por seu ex-presidente, Alberto Zacharias Toron, que salientou ser impossível dissociar os problemas dos presos dos fatores sociais que ensejaram uma sociedade violenta, que descuida de suas crianças, que desatende a educação e a saúde, potencializando os excluídos.
O IBCCRIM pretende indignar-se, mais que isso, buscar soluções, pois a indiferença é uma prisão que nos condena a todos.
Sérgio Salomão Shecaira, Presidente do IBCCRIM.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Faquir. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.50, p. 02, jan. 1997.
Nenhum comentário:
Postar um comentário