quinta-feira, 27 de novembro de 2008
Diogo Malan fala do livro que organizou - Obra mostra a relação complexa entre democracia e Processo Penal
No começo de novembro, foi lançado o livro Processo Penal e Democracia: Estudos em Homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. A obra teve a participação de mais de 30 colaboradores e contou com a organização de Diogo Malan e Geraldo Prado.
Em entrevista exclusiva para o PORTAL IBCCRIM, o professor Malan fala como foi coordenar um time tão eclético de articulistas.
A idéia de reunir trabalhos oriundos de diferentes e importantes escolas do processo penal foi o ponto de partida do livro. Como surgiu essa inspiração?
Essa idéia de reunir artigos doutrinários de representantes de todas as "Escolas" de Processo Penal do Brasil nasceu a partir de duas constatações. A primeira é a de que algumas dessas "Escolas" permaneciam razoavelmente fechadas, dialogando com freqüência de forma endógena, em nichos segmentados do mercado editorial jurídico ou em institutos específicos. A segunda, talvez mais importante, é a de que todas essas "Escolas", malgrado tenham seus próprios referenciais teóricos, político-criminais e metodologias de análise, têm diversas e significativas características em comum, notadamente uma perspectiva constitucional no estudo do Direito Processual Penal.
Quais os critérios usados para a seleção e organização dos textos?
O critério utilizado na seleção dos colaboradores foi pessoal/acadêmico, ou seja, convidamos para participar da obra aqueles processualistas penais em relação aos quais nutrimos grande respeito e admiração pessoal e, além disso, cuja produção acadêmica consideramos original, fecunda e importante para a evolução do Processo Penal brasileiro. Quanto à organização, optou-se pela metodologia de escolher de antemão quais são os grandes temas processuais penais plasmados na Constituição da República de maior relevância na atualidade, e oferecê-los aos respectivos colaboradores
Como foi o desafio de foi reunir colaborações dos mais renomados processualistas penais do País?
Foi um desafio hercúleo, porque foram mais de trinta colaboradores ao final, os quais são todos pessoas com diversas atividades profissionais e acadêmicas, portanto extremamente ocupadas, e uma obra coletiva reunindo colaborações de todos eles nunca havia sido publicada no Brasil. Além disso, o próprio tema central do livro exigia que ele fosse publicado em outubro deste ano, durante o aniversário de quatro lustros da Constituição da República, prazo que impôs dificuldades em termos editoriais. De qualquer forma, é bom ressalvar que alguns convidados (por exemplo, o Dr. Alberto Silva Franco, atual Presidente do IBCCRIM), pelos quais nutrimos grande respeito e admiração, infelizmente não puderam colaborar, devido a outros compromissos assumidos.
Como foi a experiência de trabalhar a quatro mãos, na coordenação do livro?
A experiência foi agradável e produtiva, pois houve consenso em praticamente todas as questões mais importantes relativas à obra, como a seleção dos colaboradores e a escolha dos temas respectivos.
Há uma relação entre o Processo Penal e a Democracia num estado de direito. Como essa relação aparece na obra?
De fato, há íntima relação entre democracia e Processo Penal. Embora se trate de questão a demandar longa digressão teórica, em linhas muito gerais se pode afirmar que tal relação umbilical aparece na obra, por exemplo, durante a análise de temas tais como os princípios da publicidade e oralidade do procedimento; a repartição de poderes, ônus e direitos entre os diversos participantes processuais penais etc. Essas questões envolvem conceitos caros à democracia, tais como a transparência e o controle popular dos poderes, atos e procedimentos estatais; a participação efetiva nessas atividades dos cidadãos interessados etc.
A homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988 foi pensada anteriormente ou surgiu em decorrência da comemoração realizada neste ano? Qual o balanço que se faz desse momento histórico?
A homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988 foi justamente a idéia que deu origem ao livro. Entendemos que não se poderia deixar a data passar em branco, na medida em que se trata da mais longeva Carta democrática da história do País, de inegável importância no processo de consolidação dos direitos fundamentais do cidadão brasileiro. O João Luiz da Silva Almeida, editor da Lumen Juris, teve participação fundamental, na medida em que não só adotou com entusiasmo esse projeto, como deu sugestões valiosas. O balanço que se faz deste momento, novamente de forma muito sintética, é que a Carta de Outubro ainda deve ser considerada uma obra inacabada, no sentido de que ela convive com um caldo cultural e práticas diuturnas de natureza autoritária, decisionista e inquisitiva (inclusive no âmbito do sistema penal brasileiro), portanto inspiradas por valores e idéias que são diametralmente opostos àqueles encampados pelo legislador constituinte.
O senhor lançou também neste mês o livro "Direito ao Confronto no Processo Penal". Ele foi basedo na sua Tese de Doutorado em Processo Penal, aprovada com louvor na USP. Como foi essa conversão da tese em livro? O senhor manteve a linguagem acadêmica ou fez adaptações editoriais?
Quanto à minha tese doutoral, foi mantida a linguagem acadêmica. Sempre tive preocupação em escrever de forma clara e objetiva, talvez devido à advocacia, e a tese não é somente de natureza teórico-conceitual, abordando uma série de preocupações práticas, relacionadas ao funcionamento do sistema processual penal brasileiro. Assim, creio que a linguagem utilizada será facilmente acessível a todos, estudantes e profissionais do Direito, professores etc. A única mudança significativa foi do título original da tese ("Processo penal de partes: Right of confrontation na produção da prova oral"), que achei muito longo e talvez um pouco pernóstico para o livro, optando por algo mais curto e comercial, em português mesmo ("Direito ao confronto no processo penal").
O combate ao terrorismo e à criminalidade organizada tem inspirado severas restrições aos direitos fundamentais do acusado. O senhor acha que essa tendência contemporânea pode ser revertida em curto ou médio prazo?
De fato, cada vez mais vem sendo sedimentada orientação político-criminal que preconiza a supressão de garantias do acusado como o principal - senão o único - meio de se solucionar o problema da criminalidade grave, incluindo delitos econômicos, de terrorismo, praticados por organizações criminosas etc. No plano internacional, vêm frutificando legislações que adotam tipos penais escancarados, incriminando atos preparatórios de crimes, a simples associação de pessoas, a conspiração para a prática futura de delitos etc. No campo do processo, as garantias mínimas que integram qualquer noção civilizada de devido processo penal vêm sendo cada vez mais espezinhadas por institutos tais como a incomunicabilidade do preso, a delação premiada e regimes que tratam o apenado como mero objeto da execução da pena. Eloqüente exemplo disso é a Ordem Militar Presidencial estadunidense de 13 de novembro de 2001, a qual versa sobre a Detenção, Tratamento e Julgamento de Alguns Não-cidadãos na Guerra Contra o Terrorismo (Detention, Treatment, and Trial of Certain Non-citizens in the War Against Terrorism). Trata-se de ato legislativo promulgado em resposta ao Onze de Setembro, tratando os suspeitos da prática de terrorismo hoje encarcerados em Guantánamo, Cuba, como verdadeiros não-cidadãos. Esses suspeitos são tratados como meros objetos de uma estrutura inquisitiva (integrada por Comissões Militares) toda subordinada ao Secretário de Defesa norte-americano. Ele reúne poderes extraordinários, sendo, ao mesmo tempo, a última instância revisora das decisões proferidas pelas Comissões, autoridade penitenciária, responsável pela nomeação de todos os integrantes (juízes, acusadores e defensores) das Comissões Militares e pela edição de normas procedimentais a serem observadas por tais órgãos julgadores.
Entre nós, essa política criminal se faz sentir desde o ano de 1990, com a edição da Lei dos Crimes Hediondos, e atinge seu ápice em 1995, com a promulgação da chamada Lei do Crime Organizado (Lei 9.034/95), que chegou a instituir em seu artigo 3º o "juiz Nicolas Marshall", que detinha poderes para realizar de forma direta e pessoal diligências de investigação durante a investigação policial, à semelhança do protagonista do seriado Justiça Final, além de prever diversos outros institutos de constitucionalidade no mínimo duvidosa. Mais recentemente, em 2003, foi instituído o chamado Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) que permite o isolamento celular do preso por até trezentos e sessenta dias, caso ele apresente "alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade" ou haja fundada suspeita de participação dele em organização criminosa ou quadrilha. Trata-se de regime de fere de morte o princípio da humanidade da pena.
Sinceramente, não creio que essa tendência possa ser revertida a curto ou médio prazo. Há uma série de óbices de cariz político, sociológico e cultural, dentre os quais posso mencionar: a relação de voyeurismo com o poder punitivo estatal dos meios de comunicação de massa; a cultura retribucionista que impera no País; a formação monodisciplinar, conservadora e perpetuadora do "senso comum manualístico" (portanto acrítica) dos nossos operadores jurídicos etc. Embora esteja pessimista, também vejo algumas luzes no final do túnel. O Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucionais a proibição de progressão de regime contida na Lei dos Crimes Hediondos e o juiz policialesco do artigo 3º da Lei do Crime Organizado. A Suprema Corte estadunidense reconheceu o direito dos presos em Guantánamo a impetrar habeas corpus perante as Cortes Distritais Federais norte-americanas (caso Rasul v. Bush). Esse papel exercido pela cúpula dos Poderes Judiciários é importantíssimo, pois tem uma função pedagógica no que tange aos demais magistrados. Recentemente, o Presidente eleito Barak Obama declarou publicamente que desativará a prisão de Guantánamo. De resto, a articulação pela reversão dessa tendência parece limitada a segmentos do meio acadêmico e a entidades precursoras como o próprio IBCCRIM, infelizmente.
O senhor aponta em seu artigo que "a fetichização do poder punitivo estatal constitui a principal, senão a única, referência do discurso midiático de massa nos dias de hoje". O avanço do chamado "Estado de Polícia", pautado pelos critérios seletivos da mídia, significa para sociedade uma ilusão de segurança? Por que o senso comum e muitos operadores do ambiente jurídico têm adotado essa visão?
O Professor Nilo Batista escreveu um excelente artigo intitulado A criminalização da advocacia, no qual ele traça um diagnóstico perfeito: o poder punitivo do Estado se tornou uma referência hegemônica dos meios de comunicação de massa. Hoje em dia, ao se assistir a qualquer edição de telejornal, se percebe haver uma verdadeira fetichização das exibições de poder em estado bruto por parte do Estado, principalmente nos atos de cumprimento de mandados de prisão, de busca e apreensão domiciliar, no uso de algemas, no oferecimento de denúncias, na formalização de indiciamentos etc. De preferência, a prática de vários desses atos ao mesmo tempo, com acompanhamento em tempo real pela mass media, como ocorre, por exemplo, nas espetaculosas e pirotécnicas operações da Polícia Federal.
Outro desdobramento desse fenômeno é a completa banalização do sigilo telefônico no País. Na prática, ocorre com freqüência divulgação ilegal dessa medida, que é usada indevidamente para fins simbólicos, notadamente o de fazer propaganda institucional de órgãos públicos. De fato, aparenta prevalecer no caldo cultural da sociedade brasileira de hoje a concepção de que os direitos fundamentais, tais como o sigilo de comunicações telefônicas, são subterfúgios cujo propósito é acobertar atos criminosos, a exigir pronto sacrifício no altar da defesa social contra a criminalidade. Tal deformação cultural impede a percepção da importância desses direitos como instrumentos de proteção da cidadania contra o arbítrio, a onipotência e o exercício abusivo do poder estatal. A comprovação que chegamos a um verdadeiro Estado de Polícia é a recente notícia de que até mesmo autoridades integrantes das cúpulas dos três Poderes da República foram grampeadas ilegalmente. Trata-se de um Estado "Grande Irmão" que espiona tudo e todos de forma descontrolada, tal qual profetizado por George Orwell.
Hoje há uma ilusão de segurança que decorre do uso simbólico do Direito Penal, vendendo-se para a sociedade a falsa idéia de que o Direito Penal é a panacéia para todas as inquidades da sociedade brasileira. O legislador promulga leis penais que ele, no fundo, bem sabe que não têm a menor utilidade prática, mas quer passar ao eleitor a impressão de uma atuação parlamentar zelosa e decidida, para granjear dividendos político-eleitorais. Por exemplo: houve uma denúncia, com grande repercussão na mídia, de que determinada empresa estava comercializando pílulas anticoncepcionais com farinha. Resultado: hoje temos o artigo 273, § 1º-A do Código Penal, que incrimina a venda de produto cosmético de forma irregular, com uma pena que vai de dez a quinze anos de prisão! Essa pena é maior do que as penas do homicídio simples, do estupro e da tortura. Costumo brincar com os meus alunos que no Brasil é mais vantajoso para o criminoso matar, estuprar ou torturar alguém do que vender um batom com prazo de validade vencido. O uso simbólico do Direito Penal gera esse tipo de absurdo jurídico. O senso comum adota essa visão devido à enorme influência que têm os meios de comunicação de massa, e muitos operadores do direito acabam adotando-a também, devido à sua já referida formação monodisciplinar, conservadora e perpetuadora do "senso comum manualístico" (portanto acrítica).
O que significaram as emendas constitucionais da Constituição de 1998 para o progresso do Processo Penal no Brasil? Elas conseguiram sanar ou atenuar as principais deficiências da Carta, nessa área?
Poucas das mais de cinquenta emendas à nossa Constituição da República versaram sobre o Processo Penal, talvez porque a maior parte da matéria processual penal esteja concentrada no artigo 5º do texto constitucional, que é cláusula pétrea, não podendo ser modificada por disposição expressa da própria Lei Maior. A alteração mais significativa foi feita pela Emenda nº. 45, que acrescentou ao referido artigo 5º um inciso LXXVIII, que assegura ao acusado o direito à "razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". Esse direito é de suma importância, embora tenha tido seu conteúdo esvaziado pela chamada teoria do não-prazo, segundo a qual essa razoável duração do processo não é definível aprioristicamente por meio da fixação de um prazo legal certo, devendo ser determinada à luz das circunstâncias de cada caso concreto, conforme uma série de variáveis. Mesmo assim, a única conseqüência jurídica da violação a essa razoabilidade do prazo seria o dever de se indenizar o acusado. Essa teoria foi criada pela Corte Européia de Direitos Humanos, que presta jurisdição em circunstâncias muito específicas: ela abrange diversos países, cada qual com seu respectivo prazo de duração do processo, e só pode ser provocada após o exaurimento de todas as instâncias jurídicas internas do país do recorrente. Não tem a Corte Européia, portanto, como fixar um prazo rígido de duração do processo válido para diversos países indistintamente e tampouco cominar sanções processuais penais, porque quando ela examina um caso a condenação já transitou em julgado; a única sanção possível é reconhecer o direito do recorrente à indenização pelo Estado. Conforme ensina o processualista argentino Daniel Pastor, essa teoria do não-prazo não pode ser transplantada de forma acrítica para os ordenamentos jurídicos internos, que prestam jurisdição em circunstâncias muito distintas da Corte Européia de Direitos Humanos. No caso do Brasil, por exemplo, a violação ao direito fundamental em exame pode ser examinada antes do trânsito em julgado da condenação, e é perfeitamente possível se estabelecer um prazo rígido para a conclusão de cada etapa do procedimento criminal. Ensina esse autor que a expressão prazo, na acepção legal do termo, consiste em um lapso temporal bem delimitado pela lei (em termos de meses, dias etc.) durante o qual determinado poder ou direito devem ser exercidos, sob pena de preclusão. Dizer que o acusado tem direito a uma razoável duração do processo, sem contudo definir exatamente qual é essa duração, nem fixar uma sanção de natureza processual para o seu desrespeito, é uma óbvia fraude ao direito fundamental em digressão, que termina por esvaziá-lo completamente.
Outra alteração da Emenda nº. 45 foi inserir as causas relativas a Direitos Humanos no âmbito da competência material da Justiça Comum Federal (artigo 109, V-A), além de prever a possibilidade de o Procurador-Geral da República, nos casos de "grave violação de direitos humanos", suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito policial ou do processo criminal, um incidente de deslocamento de competência para a Justiça Comum Federal (artigo 109, § 5º). Nesse aspecto, a alteração foi extremamente infeliz, porque fez verdadeira tábula rasa da garantia do juiz pré-constituído por lei (artigo 5º, incisos XXXVII e LIII da Carta Política), ao prever o deslocamento da competência inclusive em processos que já estejam em curso perante o Juiz Natural da causa, por iniciativa de órgão persecutório estatal (portanto parcial), por força de decisão baseada em pressupostos jurídicos um tanto vagos e imprecisos. Me parece que o direito fundamental ao Juiz Natural é de todos os cidadãos, inclusive aqueles acusados da prática de graves violações de direitos humanos. Assim, a constitucionalidade desse § 5º me parece questionável.
IBCCRIM.
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