sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Artigo: E existe progresso sem ordem?

Estamos desde algum tempo acompanhando com certa preocupação a série de reformas que o sistema jurídico-penal brasileiro vem sofrendo nos últimos anos, o que à semelhança do Direito Espanhol está sendo denominado pela doutrina de "reforma pontual". Esta "reforma punctual" foi objeto de debates na Espanha em anos passados, e determinou a elaboração de um Projeto de Código Penal que sofreu várias alterações (Projeto de 1980, Reforma de 1983, Anteprojetos de 1990, 1992, e Projeto de 1994) as quais culminaram com a edição de um texto final, aprovado em novembro de 1995 e em vigor desde 25 de maio de 1996. O que de bom restou deste "processo de reformas" foi a certeza (também alcançada pela França através da edição de seu Code Pénal em vigor desde 01 de março de 1994) de que a matéria penal requer um "tratamento uniforme" por parte do legislador, tema que na Alemanha é denominado "unidade penal", e não uma sucessiva intervenção normativa que acaba comprometendo por completo o já complicado sistema jurídico penal das nações modernas, submersas numa constante luta para manter um mínimo de coerência e organização frente a um frenético avanço tecnológico, determinante muitas vezes de um grande número de situações aporéticas. Esta filosofia em termos de reforma penal pode ser encarada como uma tendência moderna e está presente na Exposição de Motivos dos Códigos Espanhol e Francês.

No Brasil, a matéria parece tomar outros rumos. A edição de mais uma norma de natureza penal — Lei 9.426 de 24 de dezembro de 1996 que alterou os arts. 155, 157, 180, 309, 310 e 311 do Código Penal — é um bom exemplo de que deveríamos pensar no assunto. Sem adentrarmos numa crítica aos seus termos, nestas poucas linhas podemos afirmar que ela traz consigo (como outras Leis recentes) o signo da impertinência e do descaso para com este sofrido sistema penal nacional, confirmando que o legislador ignora as mínimas noções de "sistemática jurídica" ou do que seja o preenchimento de lacunas legais. Mais uma vez, o legislador se manifesta com a intenção de resolver o avanço da criminalidade. E edita algo que terá imponderáveis conseqüências, confirmando a idéia de que muitos dos problemas deste mundo surgem exatamente por importar-nos uns com os outros — quer para fazer o mal, quer para fazer o bem.

Mas deixados de lado equívocos e augustas intenções, fato é que resta uma norma em vigor, e seus reflexos são muito mais sérios que nos obrigar a comprar um novo Código Penal (já profundamente retalhado e disforme). Chegamos a um estado de indefinição dos contornos de nossa legislação penal, e quem sabe no fundo vivamos uma verdadeira crise de estética legal... Passamos a acreditar que a ciência jurídica é um peso morto e retórico, que o pragmatismo merece o pagamento de qualquer preço. Inseguros, pensamos existir apenas aquilo que está ao alcance de nossas mãos e de nossos olhos — e não vamos além. Não pensamos que o organismo legal de um país na verdade influi de maneira determinante em seu progresso. Acionamos a máquina legal, mas não a conduzimos bem. Alteramos sua conformação, baseados apenas em idéias utilitaristas, e concluímos — cansados e desacreditados — que necessitamos de mais e mais reparos, remendos e ajustes.

Aonde chegaremos? Conseguiremos piorar ainda mais este sistema legal que já teve um esboço de unidade e dignidade um dia? Ou apelaremos para soluções drásticas, emblemáticas e estigmatizadoras, que levantando o estandarte da norma criminal proclamem um Direito Penal de resultados, que logre resolver os profundos problemas sociais que sofremos?

É preciso não confundir as coisas — o sistema penal cumpre uma função de tutela jurídica (como já dizia Carrara) e não se presta a outra finalidade que não seja a proteção em última escala dos bens da vida. Sua intervenção é derradeira e pautada por critérios mínimos e inarredáveis, que demandam uma elaboração cuidadosa, diríamos... quase estética. O preço que se paga pelo uso de um Direito Penal simbólico, intervencionista e casuísta é demasiado alto para as democracias (quanto mais as emergentes e juvenis como a nossa). Este desiderato de "tutela" habita a alma de algo que se chama "sistema", o qual possui corpo, possui forma (tal concepção, antes de ser uma metafísica legislativa é um artifício que possibilita o exercício de uma sincera autocrítica e a compreensão da essência do problema). E qualquer alteração (ou "mutilação") neste conjunto implica em um sofrimento intrínseco, de conseqüências globais, numa desorganização caótica de seus mecanismos de exteriorização, fazendo com que o Estado incida onde não devia intervir, ou atue em descompasso com a realidade. E nada pior que um Estado não realista.

Não sejamos cínicos diante desta quasímoda figura de Direito Penal que restou no final deste século — tentemos evoluir buscando conscientemente uma alternativa válida. Como afirmava Recaséns Siches, o direito é a arte do bom senso, e portanto devemos buscar soluções jurídicas com um mínimo de sensatez. O crime é um fenômeno social que sempre existirá face às vicissitudes humanas. Devemos, pois, alcançar uma solução razoável para o mesmo, que não será a única, mas que será sempre a mais plausível, adequada e aceitável. Este responsável "pensamento tópico" em relação ao crime (encarando-o como um problema) nos remete à uma inevitável crítica ao momento que estamos vivenciando, mergulhados em um estado instável de reclamos por parte de uns, e respostas irrefletidas por parte de outros. Para progredir necessitamos ao menos de uma política criminal uniforme, e uma reforma ordenada e coerente que produza um sistema harmônico e claro.

Muito distante caminhamos do nosso primordial (e esquecido) ideal positivista, e à certa altura constatamos, consternados e perplexos, que realmente onde não existe ordem não pode haver progresso!


William Terra de Oliveira, Promotor de justiça em São Paulo, doutorando pela Universidade Complutense de Madri, e pesquisador perante a Universidade de Freiburg, Alemanha.

OLIVEIRA, William Terra de. E existe progresso sem ordem?. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.51, p. 02, fev. 1997.

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