terça-feira, 27 de maio de 2014

Futuro da maconha pode ser legalização controlada, diz estudo

A iniciativa de cidadãos pelo Portal e-Cidadania, do Senado, motivou uma audiência pública sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal e a apresentação de uma sugestão de projeto de lei sobre a regulamentação do uso recreativo, medicinal e industrial da maconha. O relator da proposta, Cristovam Buarque, encomendou análise de consultores da Casa
Marcha em Brasília reuniu, na sexta-feira, defensores do porte de maconha para consumo próprio e pais de pessoas com epilepsia Foto: Pedro França
Juliana Steck e Milena Galdino
O caminho que se aponta para o futuro da maconha é o da legalização controlada, com a regulação de todo o processo — da produção e comércio à posse e consumo de drogas —, que ficaria sujeito a controle e fiscalização pelo Estado. Os consultores do Senado Denis Murahovschi e Sebastião Moreira Junior chegaram a essa conclusão em um estudo, elaborado a pedido do senador Cristovam Buarque (PDT-DF), sobre a substância ilícita mais usada no mundo: a maconha é consumida por 180 milhões de pessoas, ou 3,9% da população de 15 a 64 anos, segundo o Relatório Mundial sobre Drogas 2013.
Os consultores também advertiram que é contraditório descriminalizar as drogas sem haver um mecanismo legal que permita o consumo, o que acabaria com o mercado ilícito.
Cristovam é relator da sugestão popular de projeto de lei sobre o uso da planta Cannabis sativa (maconha). A Sugestão 8/2014 foi enviada pelo Portal e-Cidadania, no site do Senado, no dia 30 de janeiro deste ano, e em pouco mais de uma semana atingiu mais de 20 mil apoios, o suficiente para que fosse encaminhada à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e analisada com a possibilidade de se tornar projeto de lei.
A sugestão foi feita por André Kiepper, analista de gestão em saúde da Fundação Oswaldo Cruz e mestrando em saúde pública. O mesmo cidadão propôs audiência pública sobre uma possível inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006 (Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas — Sisnad).
Uso pessoal
A proposta do debate teve, em 11 dias após a publicação no e-Cidadania, apoio de cerca de 10 mil pessoas. O artigo questionado define penalidades para quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
A audiência, interativa, foi realizada há uma semana na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e recebeu mais de 150 perguntas e comentários da sociedade. Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), relator na CCJ de projeto que propõe alterações na legislação sobre drogas (PLC 37/2013), presidiu o debate.
Para justificar a sugestão da audiência, Kiepper argumentou que a Lei 11.343/2006 “criminaliza conduta que não extravasa a vida privada do cidadão”. Segundo ele, o artigo 28 da lei fere o inciso X do artigo 5º da Constituição Federal, que garante como invioláveis a intimidade e a vida privada. “Se o cidadão ofende tão somente bens jurídicos pessoais, não há crime”, afirma.
No debate, Valadares destacou a mudança que propõe no substitutivo dele ao PLC 37/2013. O artigo questionado estabelece que, para determinar se a droga se destina a consumo pessoal, “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
— Essa redação, quando fala em circunstâncias sociais e pessoais, é um tanto quanto discriminatória, preconceituosa, dando margem a subjetivismo — afirmou o senador.
No seu texto, Valadares propõe determinar que, “salvo prova em contrário, presume-se a destinação da droga para uso pessoal, quando a quantidade apreendida for suficiente para o consumo médio individual por cinco dias, conforme limites definidos pelo Poder Executivo da União”.
Já a sugestão do projeto sobre o uso da maconha pede a regulação para usos medicinal e recreativo da Cannabis e o uso industrial do cânhamo (uma variável da mesma espécie da planta). Os signatários da proposta querem a permissão do cultivo caseiro, o registro de clubes de autocultivadores, o licenciamento de estabelecimentos de cultivo e de venda no atacado e no varejo e a regularização do uso medicinal. Kiepper disse acreditar que Cristovam, como relator, “não deixará que o assunto seja boicotado, como sempre foi”.
Audiência na CCJ recebeu mais de 150 perguntas e comentários de cidadãos Foto: Reprodução
— No final do ano passado, comecei a acessar o site do Senado do Uruguai para acompanhar a tramitação do projeto de regulação da maconha daquele país e, ao mesmo tempo, acessar o site do Senado brasileiro, para acompanhar o PLC 37/2013, do deputado Osmar Terra (PMDB-RS), que torna ainda mais rígida a repressão aos usuários e pequenos comerciantes, com tendência totalmente oposta ao que o resto do mundo está legislando sobre drogas. Nessas buscas, conheci o e-Cidadania — diz.
Ao encomendar o estudo sobre a sugestão do cidadão à Consultoria, Cristovam pediu informações sobre a possibilidade de a maconha ser “porta de entrada” para outras drogas e sobre a redução da violência com a legalização. De acordo com Murahovschi e Moreira Junior, países com políticas mais duras em relação ao uso de drogas mantêm níveis mais elevados de consumo de drogas e de problemas a ele relacionados, em comparação a países com políticas mais liberais. Há ainda evidências de que a liberalização das penalidades aplicadas às pessoas que usam maconha não leva necessariamente ao aumento sustentado do consumo.
Eles afirmam que as drogas constumam ser associadas a violência e a atos ilícitos, razão pela qual geram uma sensação de insegurança, especialmente entre pessoas que tiveram pouco ou nenhum contato com drogas: “Muitos políticos tendem a explorar e inflamar esses medos, por referirem-se enfaticamente às drogas como um problema ou por amplificar problemas a elas relacionados, de forma deliberada ou não, ainda que eles efetivamente existam”.
Depois de votado na CDH, o relatório de Cristovam sobre a Sugestão 8/2014 poderá virar projeto de lei e deverá passar pela CCJ e, possivelmente, pela de Comissão de Assuntos Sociais (CAS). Depois, deve ir a Plenário e, se aprovado, seguir para análise da Câmara dos Deputados.
Marcha
Na Câmara, tramita ainda o PL 7.270/2014, do deputado Jean Willys (PSOL-RJ), que regula a produção, industrialização e comercialização da Cannabis sativa, seus derivados e subprodutos, e cria o Conselho Nacional de Assessoria, Pesquisa e Avaliação para as Políticas sobre Drogas. Na sexta-feira, cerca de 2 mil pessoas, segundo a Polícia Legislativa, realizaram uma marcha na Esplanada dos Ministérios para cobrar a aprovação do projeto.
Outro senador que participou do debate na CCJ, Eduardo Suplicy (PT-SP), defendeu a necessidade de analisar “vantagens de uma possível regulamentação à luz da legislação que recentemente foi iniciada em inúmeros países, como o Uruguai”.
Debatedores apontam inconstitucionalidade na lei
Durante a audiência na CCJ, a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei sobre Drogas foi apontada por diversos participantes. Maria Lucia Karam, da Law Enforcement Against Prohibition (Leap), disse que o porte de drogas para consumo pessoal “oferece perigo apenas à saúde do usuário, sem atingir concreta, direta e imediatamente um direito alheio”.
José Henrique Torres, Alexandre Crippa, Analice Gigliotti, Valadares, Beatriz Ramos, Maria Lucia Karam e Renato Malcher Foto: Geraldo Magela
— Em uma democracia, o Estado não pode tolher a intimidade e a liberdade dos indivíduos sob o pretexto de protegê-los.
Ela disse que não se pode considerar prejuízo a terceiros o aumento de gastos com a saúde pública, pois “o tráfico de entorpecentes causa muito mais prejuízos ao país”, como o aumento do crime organizado ligado ao narcotráfico, o controle do mercado e de territórios por grupos criminosos, a ilegalidade e a violência resultantes da própria criminalização e a corrupção causada pela infiltração do crime organizado em instituições democráticas e nas forças policiais.
— É preciso legalizar a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas para dar ao Estado poder de regular, limitar, controlar, fiscalizar e taxar com impostos tais atividades.
A professora de direito Beatriz Vargas Ramos, da Universidade de Brasília (UnB), disse que, no Distrito Federal, 98,7% dos processos que geraram condenação por tráfico referem-se a apreensões de até 10 quilos de maconha, cocaína e crack — ou seja, a pequenos traficantes.
— Os recursos e o tempo investidos no combate às drogas chegam apenas aos “varejistas”, enquanto cresce o tráfico praticado por grandes distribuidores.
Segundo Ubiratan Angelo, da ONG Viva Rio, o artigo 28 não serve para nada mais que colocar na ilegalidade quem consome drogas. Para o juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo José Henrique Torres, o artigo analisado fere ao menos seis princípios legais: o da lesividade (pune a autolesão), o da idoneidade (“é inútil e ineficaz”), o da racionalidade (produz mais danos do que benefícios), o da igualdade (há drogas lícitas, como tabaco e álcool, e outras ilícitas), o da intimidade da vida privada (o Estado não pode impor condutas morais aos cidadãos) e o do respeito à diferença e à dignidade humanas (exclusão social de usuários de certas drogas).
Torres destacou que a política de descriminalização (ainda que parcial) das drogas do Uruguai baseia-se em tratados internacionais que determinam a superioridade dos acordos na área de direitos humanos sobre os demais, como o da guerra às drogas. Em 2013, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) endossou — na Declaração de Antigua (Guatemala), subscrita pelo Brasil — essa posição.
O juiz de direito citou decisões das cortes da Argentina e da Colômbia declarando inconstitucional a criminalização do porte de drogas para consumo pessoal.
— Há alternativas fora do âmbito da criminalização: regulamentação, controle, acolhimento, assistência — defendeu.
Pesquisas divergem sobre efeitos à saúde
A médica Analice de Paula Gigliotti, da Associação Brasileira de Psiquiatria, concordou que o tráfico ilegal de drogas e o estigma social dos usuários trazem altos custos ao país, mas ponderou que a descriminalização das drogas também pode gerar prejuízos.
— Se a droga deixa de ser ilegal, há redução na percepção dos riscos que ela causa e, consequentemente, aumento do consumo, principalmente pelos adolescentes, com danos à saúde — afirmou.
A psiquiatra fez uma comparação com o tabaco. Segundo ela, em 1998, 35% dos brasileiros eram fumantes, enquanto hoje apenas 13% consomem cigarros, devido à adoção de medidas restritivas (como a proibição da propaganda comercial e de fumar em locais públicos) e de campanhas antitabagismo.
O médico e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) José Alexandre de Souza Crippa citou uma pesquisa sueca feita com 50 mil pessoas por 35 anos  que concluiu que o uso de maconha pode aumentar em 370 vezes as chances de manifestações de esquizofrenia. Outro estudo, chamado metanálise, mostrou que a prevalência da doença nas pessoas que usam maconha é de 1,4%, mas de apenas 0,6% entre as que não usam.
— Em termos de saúde pública, para um país com 200 milhões de habitantes como o Brasil, isso é gigantesco — disse.
Crippa destacou ainda pesquisas mostrando que a maconha pode provocar atrofia em áreas cerebrais de usuários e perturbações no funcionamento do cérebro, mais evidentes nos jovens, em quem o órgão está em desenvolvimento.
Já o neurocientista Renato Malcher Lopes, professor de ciências fisiológicas da UnB, discordou de Crippa.
— O aumento de casos de esquizofrenia em usuários de maconha não se deve à causalidade, e sim à correlação entre os sintomas da doença e o alívio que a droga provoca nesses sintomas, como a ansiedade. As pessoas com tendência à esquizofrenia estão entre as que mais procuram a maconha, mas a droga não causa a doença, elas acabariam desenvolvendo esquizofrenia com o tempo, mesmo sem usar maconha. No máximo, a droga antecipa os surtos — ponderou.
Disse ainda que os efeitos negativos sobre o cérebro também não são comprovadamente provocados pela maconha, já que a droga é muito usada por quem tem problemas como depressão e paranoia, que afetam o órgão. Ele é favorável à descriminalização, mas com proibição do uso por crianças e adolescentes, exceto em casos médicos. Crippa rebateu Malcher garantindo que, nos estudos de metanálise por ele citados, houve controle que excluiu quem já apresentava sintomas prévios de psicose.
Dados levantados pela Consultoria do Senado mostram que a inalação da fumaça da maconha produz alterações psíquicas significativas e muito complexas, relacionadas a vários fatores, entre eles, características individuais e a dose absorvida. “Entre os efeitos da maconha estão déficits cognitivo e psicomotor, semelhantes aos observados com o uso de álcool e de ansiolíticos. São afetados negativamente o aprendizado, a memória e a capacidade de julgamento, de abstração, de concentração e de resolver problemas”, diz o estudo.
Remédios controlam convulsão e aliviam dor da quimioterapia
Alexandre Crippa defendeu a legalização do uso medicinal de substâncias existentes na Cannabis sativa, como o canabidiol, que não provoca efeitos psicoativos e reúne propriedades anti-inflamatórias, analgésicas, antináusea, antipsicóticas, neuroprotetoras, ansiolíticas e anticonvulsivantes.
Katiele e suas filhas: síndrome causava em Anny convulsões a cada duas horas Foto: Divulgação
O pesquisador disse que a 3ª Vara Federal de Brasília liberou, em 3 de maio, para uso de uma menina de 5 anos, a importação de medicamento à base de canabidiol proibido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A mãe da menina Anny, Katiele Fischer, o importava irregularmente dos Estados Unidos para controlar as convulsões da filha, que não reagia a medicamentos legais para epilepsia grave.
— Na nona semana usando o canabidiol, Anny foi de 80 crises convulsivas por dia para zero.
Renato Malcher acrescentou que, em 1843, já eram descritos os usos medicinais da maconha, na forma de tintura de Cannabis indica, para controle da epilepsia.
— A proibição impediu o desenvolvimento da ciência desde 1843. Tantas vidas poderiam ter sido salvas, tanto sofrimento evitado.
O estudo da Consultoria cita também medicamentos à base de outra substância, o D9-THC, testados contra dor aguda pós-operatória, esclerose múltipla, fibromialgia, HIV/Aids, glaucoma e transtornos digestivos. No caso dos pacientes com câncer, é verificada uma tolerância maior à quimioterapia. Por outro lado, o consumo desses remédios pode levar a efeitos adversos digestivos, odontológicos, pulmonares, cardiovasculares e psiquiátricos, advertem os consultores.
E-Cidadania tem outras sugestões
Outras duas sugestões de projetos de lei apresentadas por meio do e-Cidadania estão em análise na CDH. A Sugestão 12/2014 propõe  que cidadãos devidamente habilitados sejam autorizados a portar armas (a matéria sobre a proposta publicada pela Agência Senado já teve mais de 53 mil visualizações, tornando-se a mais lida do ano). Já a Sugestão 7/2014 prevê a regulamentação do marketing multinível.
A audiência pública sobre o porte de drogas para uso pessoal foi a segunda solicitada diretamente pela sociedade por meio do Portal e-Cidadania. A primeira foi realizada em novembro do ano passado, pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS), para discutir a inclusão dos fisioterapeutas na Norma Regulamentadora 4, que trata de serviços especializados de segurança em medicina do trabalho, nas empresas públicas e privadas.
Saiba mais
Para participar pelo e-Cidadania, o cidadão deve fazer um cadastro, que o habilitará a qualquer participação futura. O endereço do portal é http://www.senado.leg.br/ecidadania
Para sugerir projetos de lei, deve entrar em e-Legislação. A ideia é analisada e, se for adequada, é publicada no portal. Caso receba mais de 20 mil apoios em até quatro meses, é transformada em sugestão legislativa e encaminhada formalmente à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). Também pelo e-Legislação é possível apoiar propostas já existentes.
Para sugerir audiências públicas, o cidadão precisa entrar em e-Representação. A sugestão de debate nas comissões deve receber pelo menos 10 mil apoios.
Pelo e-Cidadania também é possível participar de diversas outras formas da atividade legislativa, como fiscalizar o Orçamento, responder a enquetes, acompanhar o trabalho dos senadores, opinar sobre propostas em tramitação, entre outras. O e-Cidadania está também nas redes sociais: facebook.com/eCidadaniaSF e twitter.com/e_cidadania.
Veja esta e outras edições do Especial Cidadania em www.senado.leg.br/especialcidadania
Jornal do Senado

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