segunda-feira, 26 de maio de 2014

A vida de um homem após 40 anos no hospício: ‘Não quero mais ser louco. Nunca mais!’

  • Pernambucano, Moisés conta como foi passar 40 anos de sua vida dentro de um hospício. Hiperativo, foi abandonado pela família e tratado como esquizofrênico.

  • Tomou remédios pesados e até eletrochoque. Hoje, aos 66 anos, participa da luta antimanicomial, ministra palestras e faz planos para um dia escrever a história de sua vida.


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Moisés da Silva: depois de 40 anos internado num hospício, ele fundou uma associação e participa da luta antimanicomial
Foto: Leo Martins / Agência O Globo



    Moisés da Silva: depois de 40 anos internado num hospício, ele fundou uma associação e participa da luta antimanicomial Leo Martins / Agência O Globo


    RIO - Com passos curtos e lentos, ombros curvados, Moisés Ferreira da Silva entrou, tímido e com um leve sorriso, na sala da Associação de Saúde Mental Juliano Moreira (Apacojum), que fundou e onde hoje é diretor consultivo. As marcas de expressão e as mãos calejadas não são de uma vida de trabalhador do campo. Durante quatro décadas, ele ficou internado no Hospital Psiquiátrico da antiga Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, com o diagnóstico de esquizofrenia e epilepsia. Mesmo com um pouco de dificuldade para falar — devido aos tratamentos pesados a que foi submetido —, Moisés relembra.
    — Passei 40 anos tomando prometazina (um composto orgânico existente em várias drogas antipsicóticas e anti-histamínicas). Foi o pior remédio. Ele ficou em mim, impregnado — diz ele, que, na Apacojum, luta pelos direitos dos pacientes psiquiátricos e por um tratamento mais humano para esse tipo de doente.
    Moisés, que nasceu em Pernambuco, já estava no Rio quando, em 1961, aos 12 anos, foi levado pela própria família para o Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro. Segundo ele, “era muito agitado e não parava quieto”. Nos dias de hoje, nas palavras de Moisés, seria considerado hiperativo. Mas, naquela época, os pais não sabiam como lidar com algo que desconheciam e o internaram como “louco”. Abandonado no local, foi transferido, quatro anos depois, para a Colônia Juliano Moreira.
    — Já fui um corpo morto e hoje não sou mais. Não quero mais ser louco. Louco, para mim, nunca mais! — diz Moisés, com um olhar triste.

    Espancamentos e eletrochoques

    Na época de interno, os dias eram longos. Quando não era obrigado a tomar calmantes para dormir, tentava ajudar outros pacientes, que ele classifica em dois tipos: “os alterados” (internos com problemas mentais mais graves) e “os melhorados” (pacientes em estado menos grave). Água ou café, só tomava em latas vazias de óleo, a maioria com ferrugem. E a comida só vinha em pratos de alumínio.
    — Era uma covardia. Existiam funcionários que não gostavam da gente e, muitas vezes, nos batiam com cassetete. Não podíamos fazer nada, pois éramos levados, como castigo, para o quarto-forte (uma cela escura, sem comida) ou o eletrochoque. Aquilo era uma colônia de presos — diz Moisés, com lágrimas nos olhos.
    Um dos piores períodos de sua vida foi quando ficou um mês “impregnado” (anestesiado) de tantos remédios:
    — Fiquei paralisado. Os músculos estavam retorcidos, e eu não conseguia comer. Achei que morreria ali.
    Na memória, ele guarda imagens de pessoas agonizando e o som dos gemidos. Para fugir da tristeza dos dias, tentava se ocupar. Conseguiu, já na década de 90, ser o carteiro oficial da colônia. Percorria as casas (as residências eram ocupadas por parentes dos internos), visitava as pessoas e ajudava na limpeza.
    Depois de tanto tempo passado numa instituição psiquiátrica, Moisés hoje tem seu próprio conceito de loucura.
    — Louco é a pessoa que mata, que agride e violenta o próximo. Esse é o verdadeiro louco. A loucura é real, e eu deixo essa derrota (esse passado) para trás — diz ele, emocionado ao lembrar as noites no quarto-forte.
    Para o fundador da Apacojum, o melhor tratamento para quem sofre de problemas mentais é o carinho da família. Apesar de ter sido abandonado por seus pais e de ter ficado anos sem contato com parentes, Moisés conseguiu recentemente rever sua irmã e uma sobrinha.
    — Passei grande parte da minha vida enjaulado. Já carreguei a minha cruz, e hoje estou curado pelo sangue de Jesus — diz Moisés, que frequenta semanalmente cultos evangélicos.
    Se por um lado guarda lembranças ruins do hospício, por outro foi lá que ele fez grandes amizades. Por Moisés ser prestativo, funcionários e moradores da colônia tinham carinho especial por ele. O mesmo sentiam outros pacientes, que Moisés tentava ajudar sempre que podia. O ex-interno Oswaldo Fernandes de Moraes, de 65 anos, por exemplo, lembra o tempo em que os dois conviveram no mesmo pavilhão.
    — Moisés sempre foi uma pessoa normal. Não tinha doença nenhuma, só problema com a sua família. Passamos muitas coisas juntos. Na época, éramos jovens e sofremos. Logo que entrei, fiquei nervoso, alterado, e fui tratado com eletrochoque — lembra Oswaldo, que mora hoje numa das casas do programa de ressocialização da própria colônia e é casado com uma ex-interna.
    Outra grande amiga de Moisés é Cleusoni Soares, funcionária do hospital há 32 anos. Segundo ela, alguns pacientes andavam pela colônia, principalmente os que tinham famílias residindo no local.
    — Moisés, por não ter problemas graves, era um desses que andavam por tudo que é lugar. Foi assim que ele passou a entregar as cartas, pois todos confiavam nele. Sempre foi muito bonzinho. Até com os meus filhos ele brincava.

    O sonho de lançar um cd e um livro

    Em 1991, Moisés passou a residir numa das casas do núcleo do hospital. Ele foi um dos primeiros moradores do programa de residência terapêutica. No início de 2001, teve alta. Fora do internato, começou uma nova vida. Aprendeu a discutir política pública e decidiu lutar pelos direitos dos pacientes.
    Independente, Moisés alugou seu próprio imóvel na Taquara e gosta de passear pelo Rio. Aposentado, mas ainda trabalhando em serviços gerais (limpeza), uma de suas paixões é ver televisão e assistir a todos os filmes que pode. Atualmente, acalenta dois sonhos: escrever um livro sobre a sua história e lançar um CD (ele também compõe músicas).
    — Só não fiz isso ainda porque não tenho patrocínio. Mas não vou desistir — diz ele.
    Após a ditadura militar, na década de 80, tudo começou a melhorar para Moisés. Foi quando surgiram, com a reforma psiquiátrica, as primeiras leis beneficiando os pacientes. E foi lutando pela causa dos doentes mentais que Moisés conheceu Iracema Polidoro, outra militante. Em 30 de maio de 1992, eles fundaram a Apacojum.
    Por causa de sua tia, na década de 70, Iracema se envolveu com a causa antimanicomial.
    — Minha avó recebeu uma carta da colônia dizendo que minha tia estava internada. Nossa família havia recebido a notícia, pelo marido da minha tia, de que ela havia morrido. Vinte anos depois, foi surpreendente ver o estado dela e o dos demais pacientes: todos sofriam maus-tratos. Foi aí que comecei minha luta.
    O diretor do Instituto Juliano Moreira, Marcos Martins, já conhecia a história de Moisés, antes de ingressar na unidade:
    — Ele é simpático e prestativo. Tem uma história de superação.

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