quinta-feira, 22 de maio de 2014

Reforma da legislação processual penal está entre os temas da V Conferência Estadual


O jurista paranaense Jacinto Nelson de Miranda Coutinho defende a reforma urgente da legislação processual penal. Na avaliação do advogado, um dos maiores processualistas brasileiros na área penal, há um abismo entre o sistema organizado pelo Código de Processo Penal e aquele previsto na Constituição da República. “As reformas parciais que o CPP veio sofrendo nestas últimas décadas (quase todas bem intencionadas) serviram muito mais para retirar a estrutura de conjunto que o código tinha do que, propriamente, para melhorar os fins pretendidos com ele”, sustenta.

O tema será discutido em um painel específico na V Conferência Estadual dos Advogados, que reúne de 13 a 15 de agosto alguns dos principais nomes do Direito brasileiro. Jacinto Coutinho é presença confirmada no debate, que também terá a participação do juiz federal substituto da 2ª Vara Federal de Curitiba, Flávio Antônio da Cruz.

Em entrevista à OAB Paraná, Jacinto Coutinho explicou que uma reforma da legislação processual penal que vá ao encontro da Constituição da República só pode ser global e adiantou que durante o encontro da advocacia paranaense pretende fomentar a discussão sobre o sentido que se quer dar à reforma. 

Coutinho participou da Comissão de Juristas nomeada no âmbito do Senado Federal para a elaboração do anteprojeto do novo CPP. É professor titular de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Paraná, membro consultor da Comissão da Advocacia Criminal da Seccional e ex-conselheiro federal da OAB.

Leia a entrevista:

- Qual a importância das conferências estaduais da OAB em sua visão?

Antes de tudo, a Conferência Estadual é a oportunidade primeira dos advogados de uma Seção discutirem os problemas que os afligem e a partir daí retirar posições que possam guiar a condução da direção que se deve dar à OAB. No Estatuto de 1994 elas (Conferência Nacional e Conferências Estaduais) ganharam lugar no art. 80 e, além de obrigatórias, são consideradas órgãos das OAB de caráter consultivo, ou seja, as conclusões que nelas se tomam são transformadas em Recomendações e podem ser adotadas pelos respectivos Conselhos. As Conferências Estaduais, por seu turno, ganharam importância maior porque, no referido estatuto, ocuparam o lugar das antigas Assembleias Gerais e, assim, tornaram-se fundamentais em face de serem a única possibilidade de manifestação coletiva dos advogados e, portanto, imprescindíveis para dar vazão àquilo que pensam em determinado momento histórico e para além dos órgãos de representação.

No caso específico desta V Conferência Estadual, os advogados do Paraná vão discutir “As reformas de que o Brasil precisa” e, assim, deixa-se claro duas questões: primeira, que o Brasil precisa de reformas e que aquelas que foram feitas, inclusive com base na Constituição, nem foram suficientes e nem esgotaram a demanda; segunda, que os advogados do Paraná, ao discutirem o tema, pretendem analisar, opinar e participar das referidas reformas, tudo de modo a cumprir sua missão estatutária de defender a cidadania. Desde este ponto de vista tende a ser, então, uma Conferência Estadual histórica porque, por evidente, todos têm a dizer sobre o sentido que se deve dar quando de reformas se trata e, portanto, é uma oportunidade ímpar de todos se fazerem ouvir.

- O senhor integra a programação do Painel I - As reformas que o Brasil precisa no Direito Processual Penal. Que debate o senhor propõe fomentar acerca dos modelos de Processo Penal?

O Direito Processual Penal trata de uma matéria que em termos de legislação sempre foi considerada uma das mais atrasadas do ordenamento jurídico. Até gente como Faustin Hélie, talvez o maior comentador do Código de Napoleão, de 1808 (fundamento para quase todos os códigos europeus continentais e os influenciados por ele, dentre os quais os da América Latina), mas grande reacionário, dizia ser “la loi de procédure criminelle la moins imperfaite”. Não é diferente com o CPP brasileiro, de 1941, cópia do italiano (1930) Codice Rocco, por sua vez cópia do Code Napoléon.

Com a Constituição da República de 1988 a situação se agravou. Afinal, há um abismo entre o sistema organizado pelo CPP e aquele previsto na CR. O do CPP é fundamentalmente inquisitório; o da CR é fundamentalmente acusatório; e a diferença entre eles, por evidente, não é só no nome. Naquele, o juiz exerce um papel central, quase plenipotenciário, mormente no que diz respeito à busca e produção do conhecimento (sobre o caso penal imputado na denúncia ou queixa), pilar de sustentação da própria finalidade do processo, a qual diz com o acertamento do referido caso penal. Ele sempre serviu – e serve – aos regimes de força, sendo eficaz para o combate aos inimigos de quem está no poder. Por outro lado, no sistema da CR, pelas regras e princípios que a regem, o lugar demarcado ao juiz diz respeito, prioritariamente, ao acertamento do caso penal (eis o dicere jus ou juris dictio), mas fora fica – e deve ficar – a iniciativa da busca e produção do conhecimento referente ao caso penal. Isso é função das partes, também em face das regras e princípios da CR, em que pese poder o juiz complementar, se assim entender, aquilo que está proposto pelas partes.

Como diziam os mais antigos, separam-se, para os fins do processo penal, objeto e método. Com as luzes vertidas sobre as partes, realça-se a cidadania porque se não pode fazer diferença, para começar, entre pobres e ricos, razão por que uma Defensoria Pública eficaz é imprescindível e deve ser prioridade nacional no que toca com a Justiça. Evita-se, o máximo possível, com o sistema da CR, a possibilidade sempre presente de um juiz decidir antes e, depois, sair à cata dos fundamentos para justificar a decisão que anteriormente tomou, por evidente que seguindo suas próprias verdades, ou seja, aquilo que Franco Cordero chamou de “primato dell’ipotesi sui fatti”.

Diante deste quadro é possível compreender por que a OAB propõe uma discussão acerca dos modelos de Processo Penal (presunção de inocência ou presunção de culpa). Ora, pode-se ver nitidamente qual sistema abriga a presunção de inocência e qual sistema abriga a presunção de culpa. Difícil, sem dúvida, é negar que se precisa de reforma – urgente – da legislação processual penal para se tentar chegar na Constituição Cidadã, coisa que se não fez nos últimos 25 anos, por mais que isso possa ser vergonhoso. Mas se assim não se fez, resta perguntar a razão; e a resposta não parece tão difícil, embora o tema seja complexo: interessa para alguns manter tudo como está! Por que será? Os quase seiscentos mil presos do Sistema Penitenciário – outra fenomenal vergonha nacional – não são a resposta, mas podem ajudar a se pensar sobre ela. Agora, quem sabe, é possível dizer – respondendo à pergunta – que fomentar a discussão sobre o sentido que se quer dar à reforma da legislação processual penal é um papel central que toca a quem for tratar do tema na V Conferência Estadual. 

- E de que maneira a OAB pode contribuir para as reformas que o Brasil precisa?

Não resta dúvida, hoje, que uma reforma da legislação processual penal que vá ao encontro da CR só pode ser global, ou seja, que mude do sistema do CPP para o sistema dela, Constituição. As reformas parciais que o CPP veio sofrendo nestas últimas décadas (quase todas bem intencionadas) serviram muito mais para retirar a estrutura de conjunto que o código tinha do que, propriamente, para melhorar os fins pretendidos com ele. Ora, todos sabem – pelo menos desde Kant e sua arquitetônica da razão pura – que o sistema é um conjunto formado a partir de uma ideia única e que, portanto, se se mexe em qualquer ponto dele isso vai produzir efeitos nos demais; mas não muda o princípio reitor (a referida ideia única). Assim, arrisca-se desorganizar o conjunto; e foi o que se conseguiu depois de tantas reformas nas quais nada disso – ao que parece – foi levado em consideração.

Não se trata, então, de simplesmente mudar a lei. Trata-se, isso sim, de, a partir da racionalidade que preside o sistema, mudá-lo no seu fundamento maior, no caso o princípio reitor. Como ensinava Robert Pirsig há décadas, se você fizer uma revolução e não mudar a racionalidade que mantém o governo anterior, vai acabar por produzir outro governo idêntico ao anterior, embora com outras personagens. Isso serve para se aprender que o jurídico está um passo depois do filosófico e, por óbvio, não se sustenta sozinho. Pois bem. A OAB pode participar decisivamente na mudança do sistema para aquele da CR e sua voz tem a maior relevância. Por sinal, como representante do Conselho Federal participei da Comissão de Juristas nomeada no âmbito do Senado Federal e que fez o anteprojeto do novo CPP, depois batizado como Projeto nº 156/09-PLS, agora na Câmara dos Deputados com o nº 8045/10.

Nele, a preocupação primeira foi a adaptação do texto à CR, razão por que não é tão fácil passar por cima dele. De qualquer forma, não há no Projeto uma precisão milimétrica (não esquecer que ele foi fruto de uma comissão heterogênea quanto à procedência dos seus membros) e depois de alguns anos já são necessárias novas discussões, mormente para que se não desnature aquilo no que se conseguiu chegar, ou seja, a base de uma legislação compatível com a CR. Tem-se, porém, que nem todos pensam assim, ou seja, que é preciso ir adiante com a reforma; e que ela seja vinculada à CR. Alguns, por evidente, acham que o sistema atual é o sistema democrático que precisamos e, mais, para tanto têm manipulado retoricamente a CR para nela encontrar arrimo para suas teses e diatribes. Essa gente, afinal, não pode ser levada a sério, mas tem causado bons estragos quando ludibria gente com poder para dizer os sentidos que a Constituição deve ter. Isso, como se sabe, faz parte do jogo democrático, mas tem atrapalhado muito nossa modernidade tardia.

Programe-se

V Conferência Estadual dos Advogados
O evento será realizado nos dias 13, 14 e 15 de agosto, em Curitiba. Serão 16 painéis, além da Tribuna Livre, que irão debater as reformas de que o Brasil precisa no Direito do Consumidor, no Direito Tributário, no Direito Administrativo, no Direito Penal, no Direito do Trabalho, nos Direitos Previdenciário e Sociais, no Direito Constitucional, no Código Civil e no Processo Civil.  O encontro será no Centro de Eventos da Fiep, em Curitiba.

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