Autores: Bruno Seligman de Menezes, Advogado Criminalista, Professor Universitário, Especialista em Direito Penal Empresarial (PUCRS), Mestre em Ciências Criminais (PUCRS), aluno regular do Doutorado em Direito (Universidade de Buenos Aires)
Mario Luís Lírio Cipriani, Advogado Criminalista, Professor Universitário, Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu (Universidade de Coimbra), Mestre em Ciências Jurídico Criminais (Universidade de Coimbra), aluno regular do Doutorado em Problemas Atuais do Direito Penal e da Criminologia (Universidade Pablo de Olavide – Sevilha)
Como advogados de um dos sócios da Boate Kiss, estamos nos deparando com um fenômeno cada vez mais crescente em nosso sistema de justiça criminal. A facilidade com que se torcem, distorcem e, às vezes, até se torturam elementos rígidos de dogmática penal para atender a interesses político-criminais diversos, populistas, subterrâneos (ZAFFARONI), faz com que, tristemente, possamos concluir que nossa justiça penal é aleatória, cada vez mais fruto de uma epistemologia de incertezas (AURY LOPES JR.), devido a fatores não somente os inerentes ao processo, mas fundamentalmente externos.
É absolutamente inconcebível que o elemento subjetivo, que é o móvel indispensável de uma conduta delitiva, e, por tal razão, a ela anteceda, seja aferido a partir de circunstâncias do fato, ou pelo resultado causado. WELZEL, na década de 60, falava de estruturas lógico-objetivas com as quais o jurista precisa saber lidar. Nem a lei, nem a ciência têm poder de disposição sobre a posição da vontade na estrutura da ação.
Dito de outra forma, até pode se pretender mudar a pena prevista para um crime culposo por se entendê-lo pouco rígido, mas jamais se pode chamar de doloso aquilo que nasceu, no subjetivo do agente, culposo. GISELE MENDES DE CARVALHO, ao examinar essa questão, de forma mais voltada aos homicídios de trânsito, disse que “o Direito Penal torna-se aos poucos um instrumento da política e de sua volatilidade, buscando a todo preço a garantia da eficácia do sistema, como se o homem devesse converter-se em espécie de ‘guardião’ da ordem jurídica, e não a ordem jurídica a guardiã dos direitos do homem”. Acertadamente adverte GRACIA MARTÍN que “toda pretensão de solucionar problemas axiológicos com instrumentos ontológicos só pode levar a um agravamento do problema axiológico”.
Os discursos político-criminais contemporâneos, notadamente populistas, acabam vendendo uma imagem de que o dolo eventual se manifesta apenas pela assunção de risco do agente. Sonegam, entretanto, que é necessário que haja uma projeção do resultado e uma adesão subjetiva a ele. Vale dizer, os envolvidos deveriam ter imaginado a possibilidade da centenas de mortes, e mostraram-se indiferentes a elas.
Não se pode esquecer que a previsibilidade também está presente no injusto culposo. Assim, se os agentes prevêem a possibilidade de sua ocorrência, mas acreditam, internamente, na sua inocorrência, é hipótese de culpa consciente, e não dolo eventual. Aliás, é muito pouco crível que todos tenham aderido a um resultado trágico, na medida em que muitos dos indiciados (músicos, sócios, funcionários) estavam na boate, no momento dos fatos.
Já disse VON LISZT que “el derecho penal es la barrera infranqueable de la Política Criminal”. Caso fosse necessária a interpretação da célebre frase do penalista alemão, os interesses político-criminais, por mais intensos, vívidos e clamorosos que fossem, não poderiam romper os rígidos limites da dogmática penal, por deter, esta, uma função de garantia que nem o interesse mais legítimo de punição poderia ultrapassar seus limites dogmáticos. Hoje, lamentavelmente, o que se tem é o inverso do clássico postulado. A Política Criminal tornou-se o (des)limitador do poder de punir. Havendo interesse político-criminal, legítimo ou não, a dogmática será usada para legitimar esse interesse. O direito penal de garantias, tornou-se um direito penal de ocasião.
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