segunda-feira, 30 de junho de 2008

Artigo: Reforma do Código de Trânsito: novo delito de embriaguez ao volante

O delito de embriaguez ao volante (direção embriagada), em sua redação original (estampada no artigo 306 da Lei 9.503/97) dizia o seguinte: “Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem: Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.

Por força da Lei 11.705/08 (lei essa que entrou em vigor no dia 20 de junho de 2008) o artigo 306 citado passou a ter a seguinte redação: “Artigo 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.” (NR)

As penas não foram alteradas. São elas: (a) detenção (de seis meses a três anos), (b) multa e (c) suspensão (em relação a quem já possui habilitação ou a permissão) ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Considerando-se que são muitos os métodos capazes de apurar o nível de alcoolemia do agente, dispõe o novo parágrafo único o seguinte: “o Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo”. Por exemplo: 6 decigramas de álcool por litro de sangue equivale a 0,3 miligramas de álcool por litro de ar expelido no bafômetro.

Uma primeira diferença entre o antigo e o novo delito (de embriaguez ao volante) reside no seguinte: a antiga redação exigia a “exposição a dano potencial a incolumidade de outrem”. Ou seja: previa nesse caso uma situação de perigo concreto a outra pessoa. Exigia, a rigor, uma vítima concreta, isto é, risco concreto a ser comprovado contra uma pessoa concreta. Essa interpretação literal acabou não preponderando, contentando-se boa parte da doutrina com a direção anormal (em zig-zag, v.g.), ou seja, bastava ter dirigido “sob a influência” do álcool ou outra substância.

Fazia-se a seguinte distinção: quem dirigia bêbado (embriagado), mas corretamente (sem afetar o bem jurídico segurança viária, sem estar sob influência da embriaguez), respondia por infração administrativa (artigo 165 do Código de Trânsito); quem dirigia bêbado mas anormalmente (em zig-zag, subindo calçada, passando sinal vermelho etc., ou seja, sob influência da embriaguez) respondia pelo delito do artigo 306 do CTB.

A nova redação do artigo 306 (dada pela Lei 11.705/2008) não exige a comprovação de nenhuma exposição da vítima a dano potencial (isto é: a perigo). Em outras palavras: definitivamente não exige uma vítima concreta (uma pessoa concreta que tenha corrido risco). Não requer um perigo concreto determinado (como é o caso, por exemplo, do artigo 132 do CP).

Duas são as condutas incriminadas (agora): (a) conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas e (b) conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. Quando se trata de álcool é uma coisa; quando se trata de “outra substância psicoativa que determine dependência” (maconha, por exemplo) seria outra coisa. Na hipótese de álcool o tipo legal (a letra da lei) não exige estar “sob a influência”; no caso de maconha ou outra droga a letra da lei exige “estar sob a influência”.

O que significa estar “sob a influência” de uma substância psicoativa? O estar “sob influência” exige a exteriorização de um fato (de um plus.) que vai além da embriaguez, mas derivado dela (nexo de causalidade). Ou seja: não basta a embriaguez (o estar alcoolizado), impõe-se a comprovação de que o agente estava sob “sua influência”, que se manifesta numa direção anormal (que coloca em risco concreto a segurança viária).

Note-se, não se exige a prova de risco concreto para uma pessoa determinada. Não é isso. Basta que a direção tenha sido anormal (em zig-zag, v.g.): isso já é suficiente para se colocar em risco a segurança viária. Em outras palavras: não se trata de um perigo concreto determinado (contra pessoa certa), sim, de um perigo concreto indeterminado (risco efetivo para o bem jurídico coletivo segurança viária, mesmo que nenhuma pessoa concreta tenha sofrido perigo).

Justifica-se o tratamento lingüístico (literal) distinto dado ao álcool (o tipo legal não exigiu, nesse caso, o “estar sob a influência”)? A resposta só pode ser negativa. O estar “sob a influência” de substância psicoativa exigida na parte final do dispositivo (artigo 306) tem que valer também para a primeira parte do tipo legal (ou seja: para a embriaguez decorrente de álcool).

Por quê? Porque do contrário estaríamos admitindo o perigo abstrato no Direito penal, o que (hoje) é uma heresia sem tamanho, quando se estuda o princípio (constitucional implícito) da ofensividade, que não permite nenhum delito de perigo abstrato (cf. GOMES, L.F. e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Direito penal-PG, v. 1, São Paulo: RT, 2007, p. 464 e ss.). Toda tipo legal que descreve um perigo abstrato deve ser interpretado na forma de perigo concreto (ainda que indeterminado, que é o limite mínimo para se admitir um delito, ou seja, a intervenção do direito penal).

Há muitos outros argumentos para se concluir que a direção sob álcool (no artigo 306) tem que revelar o estar sob sua “influência” (ou seja: uma direção anormal). Dentre eles destaca-se o seguinte: até mesmo a infração administrativa correspondente (novo artigo 165 do CTB), agora, depois da Lei 11.705/08, a ela faz referência.

Diz o novo artigo 165: “Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”. Se a infração administrativa, que é o menos, exige o “estar sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância”, com muito mais razão essa premissa (essa elementar típica) tem que ser admitida para a infração penal (que é o mais).

Se ambos os dispositivos (artigos 165 e 306) exigem o “estar sob a influência” (de acordo com nossa interpretação fundada na razoabilidade), qual é a diferença entre eles? Quando se aplica (só) o Código de Trânsito (artigo 165) e quando terá incidência o direito penal (o artigo 306)? (veremos no próximo artigo).


Por Luiz Flávio Gomes é professor, doutor em Direito Penal pela Universidade de Madri e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.


O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 29/06/2008.

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