O § 4.º do art. 157 do CPP (que foi vetado pelo Presidente da República) dizia que “o juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão”. O dispositivo legal cuidava da contaminação do juiz que toma conhecimento da prova ilícita inadmissível. Acertadamente ele reconhecia que não bastava a mera exclusão física (dos autos) das provas ilicitamente obtidas. Isso é necessário, mas insuficiente. O juiz contaminado também deve ser afastado do processo (ou, pelo menos, da sentença).
Referido § 4.º, entretanto, numa demonstração inequívoca de que o Direito penal do inimigo, expulso por uma janela volta por outra, foi vetado pelo Presente da República (com base em pareceres do Ministério da Justiça e da Advocacia-Geral da União). As precaríssimas razões do veto são as seguintes: “O objetivo primordial da reforma processual penal consubstanciada, dentre outros, no presente projeto de lei, é imprimir celeridade e simplicidade ao desfecho do processo e assegurar a prestação jurisdicional em condições adequadas. O referido dispositivo vai de encontro a tal movimento, uma vez que pode causar transtornos razoáveis ao andamento processual, ao obrigar que o juiz que fez toda a instrução processual deva ser, eventualmente substituído por um outro que nem sequer conhece o caso.
“Ademais, quando o processo não mais se encontra em primeira instância, a sua redistribuição não atende necessariamente ao que propõe o dispositivo, eis que mesmo que o magistrado conhecedor da prova inadmissível seja afastado da relatoria da matéria, poderá ter que proferir seu voto em razão da obrigatoriedade da decisão coligada”.
Como se vê, o dispositivo foi vetado por razões de eficácia do processo (celeridade, simplicidade, troca do juiz etc.). Mas jamais a lei processual penal cumpre bem o seu papel quando deixa de conciliar a eficácia com as garantias do acusado. A eficácia cede quando se depara com uma garantia absolutamente imprescindível, como é a da imparcialidade do juiz.
A discussão em torno da contaminação desconsidera (como bem pondera Aury Lopes Júnior) a questão nuclear do problema que é a cabeça do julgador: “A desconsideração de que se opera uma grave contaminação psicológica (consciente ou inconsciente) do julgador, faz com que a discussão seja ainda mais reducionista. Esse conjunto de fatores psicológicos que afetam o ato de julgar(1) deveriam merecer atenção muito maior por parte dos juristas, especialmente dos tribunais, cuja postura até agora se tem pautado por uma visão positivista, cartesiana até, na medida em que separa emoção e razão, conforme já explicamos em outra oportunidade(2), o que se revela absolutamente equivocado no atual nível de evolução do processo”.
“Não se pode mais desconsiderar que a sentença é um ato de “sentimento”, de eleição de significados. Reitere-se: sentenciar deriva de sententiando, gerúndio do verbo sentire. O juiz é alguém que julga com a emoção e a sentença é o reflexo desse complexo “sentire”.
“Conseqüentemente, em muitos casos, a decisão deve ser anulada, ainda que sequer mencione a prova ilícita, pois não há nenhuma garantia de que a convicção foi formada (exclusivamente) a partir do material probatório válido. A garantia da jurisdição vai muito além da mera presença de um juiz (natural, imparcial, etc.): ela está relacionada com a qualidade da jurisdição. A garantia de que alguém será julgado somente a partir da prova judicializada (nada de condenações com base nos atos de investigação do inquérito policial) e com plena observância de todas as regras do devido processo penal”.
“Daí porque não basta anular o processo e desentranhar a prova ilícita: deve-se substituir o julgador do processo, na medida em que sua permanência representa um imenso prejuízo, que decorre dos pré-juízos (sequer é pré-julgamento, mas julgamento completo) que ele fez”.
“Não é crível de se pensar que um mesmo juiz, após julgar e ter sua sentença anulada pela ilicitude da prova (que ele admitiu e, muitas vezes até valorou), possa julgar novamente o mesmo caso com imparcialidade e independência”.
“É ingenuidade tratar cartesianamente essa questão, como se a contaminação só atingisse a prova: o maior afetado por ela é o julgador, ainda que inconscientemente”.
“Imagine-se uma escuta telefônica que posteriormente vem a ser considerada ilícita por falha de algum requisito formal e a sentença anulada em grau recursal. Basta remeter novamente ao mesmo juiz, avisando-lhe de que a prova deve ser desentranhada? Elementar que não, pois ele, ao ter contato com a prova, está contaminado e não pode julgar”.
“Por tudo isso, mais do que desentranhar a prova ilicitamente obtida, há que se pensar na exclusão do ilustre julgador que teve contato com essa prova e, portanto, está contaminado”.
Apesar do veto presidencial ao novo § 4.º do art. 157 do CPP, tudo quanto acaba de ser dito não deixa de ser uma opinião doutrinária absolutamente respeitável e razoável. Conclusão: todo processo que contenha uma prova ilícita deve ser anulado, total ou parcialmente. Caso já tenha sentença, esta também deve ser anulada. Sempre. Em seguida, desentranha-se dos autos a prova ilícita, que será devidamente inutilizada. O ato seguinte consiste em refazer o processo ou proferir uma nova sentença, não se admitindo a participação do juiz (anteriormente) contaminado, sob pena de gravíssima violação da garantia do juiz imparcial, contemplada no art. 8.º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (cf. nossos comentários sobre o tema, v. 4, São Paulo: RT, 2008).
Notas:
(1) Nesse tema reputamos imprescindível a leitura, pelo menos, das obras de ALMEIDA PRADO, Lídia Reis. O Juiz e a Emoção. Aspectos da Lógica da Decisão Judicial. Campinas, Millenium, 2003, e ZIMERMAN, David. A Influência dos Fatores Psicológicos inconscientes na decisão jurisdicional. In: Aspectos Psicológicos na Prática Jurídica. David Zimerman e Antônio Mathias Coltro (org.). Campinas, Millenium, 2002.
(2) Sobre o tema, leia-se LOPES JR, Aury: O resgate da subjetividade no ato de julgar: quando o juiz se põe a pensar e sentir. In: Introdução Crítica ao Processo Penal, pp. 278 e ss.
Por Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito Penal pela Universidade de Madri e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).
O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 27/07/2008.
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