Em seu último número, o boletim divulgou matéria, de autoria do Juiz de Direito Geraldo Francisco Pinheiro Franco, sob o título "Impossível a sobrevida do feto, deve ser autorizado o aborto". Sobre o mesmo tema publicamos, agora, esta colaboração do Médico Thomaz Rafael Gollop, Professor de Genética Médica da Universidade de São Paulo e diretor do Instituto de Medicina Fetal e Genética Humana.
Sempre que se debate a questão do aborto no Brasil - como agora, na projetada reformulação do Código Penal -, a discussão tende a se polarizar entre os movimentos de mulheres, de um lado, reivindicando um direito reconhecido na maioria dos países, e correntes religiosas, sobretudo a Igreja Católica, de outro, jogando o peso de sua influência para impedi-lo. A partir de minha experiência no atendimento de mais de 3 mil casais, em exames pré-natais para diagnóstico de malformações fetais, gostaria de introduzir um ângulo novo na discussão: o de que o aborto no Brasil é uma questão de saúde pública e basta examiná-lo do prisma da medicina fetal para verificar que a legislação atual, ignorando a evolução do conhecimento científico e dos costumes sociais, pune injustamente as camadas mais pobres da população.
Na área de minha especialidade, a ultra-sonografia e outros exames de alta precisão fornecem hoje dados muito seguros sobre a saúde do feto nos casos de risco, nos quais, dado um quadro adverso, o casal deveria ter o direito de escolher livremente pela continuação ou interrupção da gravidez. São casos de mulheres com primeira gravidez além dos 40 anos, de grávidas com histórico de doenças geneticamente determinadas na família ou antecedentes de filhos com algum tipo de malformação e de mulheres que tiveram infecções na gestação, principalmente rubéola e toxoplasmose. São essas, gestações de risco genético.
Na maior parte dos casos, felizmente, os exames indicam que a saúde do feto é perfeitamente normal. Mas, excepcionalmente, pode-se detectar alguma anomalia e nossa posição nesses casos é que, como ocorre nos países desenvolvidos, seja permitida ao casal a opção de uma interrupção da gestação até 24 semanas. Isto, com atendimento médico, a paciente e sua família se vejam sob a ameaça de um Código Penal redigido e sancionado em 1940, com os valores da década dos 30, quando não havia nenhum meio de fazermos um diagnóstico preciso da saúde fetal.
As mudanças nos costumes e na tecnologia, nestes 53 anos, formam a nossa convicção de que é necessária e urgente uma adequação desse código anacrônico ao progresso científico. Dificilmente se chegará à unanimidade de pontos de vista com relação a essa questão, mas é importante destacar a mudança verificada nas últimas duas décadas.
Recente levantamento comparativo feito pela Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia mostra que, em 1970, cerca de 35% dos médicos eram favoráveis a uma lei que permitisse a interrupção da gravidez por anomalia fetal. Hoje, 90% dos obstetras pensam dessa forma. Houve uma evolução do pensamento médico, ditada por todo tipo de informação e pelos avanços tecnológicos, mas não acompanhada pela lei penal nem por setores influentes da sociedade.
No Brasil, ao contrário de países do Primeiro Mundo, onde o Estado assume o ônus do deficiente, a responsabilidade recai fundamentalmente sobre a família, porque o Estado brasileiro se omite duplamente: praticamente não existe informação dos riscos à disposição da população e é reduzidíssima a disponibilidade dos exames necessários ao diagnóstico precoce. O problema social se agrava porque justamente as famílias mais pobres e com menos condição de arcar com o ônus do deficiente são também as que têm menos acesso tanto à informação quanto aos exames especializados, sem contar que a maior parte dos seguros médicos não assegura à família cobertura à criança que nasça com problema herdado ou congênito. De lado profissional, o médico enfrenta o problema de indicar um exame capaz de revelar um diagnóstico desfavorável diante do qual está de mãos atadas. A lei não lhe permite agir, caso a família opte pela interrupção da gravidez e a criança nascida com problema não receberá nenhum ; tipo de apoio para reabilitação ou adaptação à sociedade. De todos os lados a equação é perversa!
O que nós temos observado é que em 95% dos casos, diante de uma anomalia fetal grave, a opção do casal é pela interrupção da gestação, ainda que ela não seja legal no nosso meio. O que chama a atenção é que isso independe do nível de instrução e da formação religiosa do casal, e o argumento que ouço com freqüência, nesses casos, é o de que o bem-estar da família está acima do seu credo religioso e das pressões do Código Penal. Trata-se de uma questão de foro íntimo.
Finalmente, gostaria de mencionar dois precedentes jurídicos da mais alta importância. Em dezembro de 1992, o Juiz dr. Miguel Kfoury Neto, de Londrina, autorizou a interrupção de uma gestação na qual havia sido diagnosticada anencefalia. Em dezembro de 1993, entramos com ação em São Paulo e obtivemos do Juiz de direito, dr. Geraldo Francisco Pinheiro Franco autorização para interromper gravidez de 23 semanas em feto portador de acrania. A nosso ver, são essas, demonstrações claras onde o avanço da ciência médica procurou e obteve apoio e sensibilidade da classe jurídica.
Thomaz Rafael Gollop
GOLLOP, Thomaz Rafael. Ainda o aborto(legítimo)em razão de anomalia fetal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.12, p. 07, jan. 1994.
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