Em 21 de março de 2016, Jean-Pierre Bemba Gombo, ex-vice presidente da República Democrática do Congo (RDC) foi considerado culpado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) pela ocorrência de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A corte concluiu o julgamento após passados mais de cinco anos desde o seu início, em novembro de 2010, tendo sido ouvidas mais de 77 testemunhas. Em particular, a sentença representa um importante avanço no campo do Direito Penal Internacional: pela primeira vez desde o começo de seu funcionamento, em 2002, o TPI reconheceu e condenou o estupro como crime de guerra.
A Câmara de Julgamento III — presidida pela juíza brasileira Sylvia Steiner — considerou, por unanimidade, que Bemba atuou como comandante militar e dispunha de autoridade efetiva e controle sobre o contingente do grupo Mouvement de Libération du Congo (MLC) que praticou assassinatos, estupros e pilhagem (saques) contra populações civis na República Centro-Africana entre 26 de outubro de 2002 e 15 de março de 2003. Para a corte, as vítimas dos crimes não eram partes dos atos de hostilidades em curso naquele país no período em referência, mas, ainda assim, foram alvo das ações do MLC de forma primária (não-incidental) e ostensiva, do que se conclui que havia uma política informal de ataque a civis levada a cabo pelo grupo — como uma espécie de modus operandi.
Em particular, foi de grande relevância o entendimento adotado pelos juízes no sentido de identificar os atos de estupro cometidos pelo MLC naquele contexto como armas de guerra, enquadrando-os no artigo 8, item “e”, alínea “vi”, do Estatuto do TPI — adotado por ocasião da celebração do Tratado de Roma de 1998. Com efeito, os juízes foram categóricos ao destacar que as evidências coletadas demonstraram que os estupradores possuíam motivações específicas e objetivos claros para cometerem os atos. Isso porque alguns dos soldados do MLC consideravam as vítimas como “prêmios de guerra”, que lhes seriam devidos por haverem derrotado o inimigo. As agressões sexuais também eram reconhecidas pelos perpetradores como instrumento capaz de desestabilizar, humilhar e punir simpatizantes dos grupos opositores.
Ressaltou-se, nesse sentido, que muitos familiares foram forçados a assistir aos episódios de agressão sexual, nos quais as vítimas eram mantidas sob a mira de armas. Quanto à sujeição ativa e passiva e às formas de caracterização do crime, os juízes conceberam que tanto homens como mulheres podem ser autores e vítimas da infração e, encampando a jurisprudência do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia, o TPI reconheceu que, além da penetração vaginal e anal, o estupro também abrange atos de penetração oral, considerando-os como um ataque degradante à dignidade humana, capaz de produzir humilhações e traumas de intensidade equivalente.
No que tange à análise da responsabilidade penal, compreendeu-se que Bemba falhou ao não agir para garantir que seus subordinados cessassem os crimes, considerando que ele possuía suficiente poder de comando para fazê-lo. A promotoria demonstrou que o congolês, de fato, não adotou todas as medidas necessárias e razoáveis que estavam ao seu alcance para prevenir ou reprimir as condutas ilícitas por parte dos integrantes do MLC. Assim, o TPI entendeu pela incidência, in casu, do chamado princípio do “comando responsável” para reconhecer a culpabilidade de Bemba, de forma a autorizar sua responsabilização pessoal com base no artigo 28, item “a”, do Estatuto do TPI.
A Promotoria do TPI e a defesa de Bemba ainda poderão recorrer da decisão de julgamento no prazo de 30 dias, em conformidade com o que dispõe o artigo 150 das Regras de Procedimento e Evidências da corte. Se houver recurso, a Câmara de Apelação irá analisar o caso. De qualquer maneira, o julgamento já representa uma vitória para as vítimas de violência sexual em todo o mundo e em especial para aquelas que sofrem com atos dessa natureza praticados em larga escala no âmbito de conflitos armados internos (não-internacionais).
Além de formar um precedente no tocante à caracterização do estupro como crime de guerra, a sentença de Bemba possui potencial persuasivo no sentido de sinalizar a comandantes militares e autoridades políticas que os mesmos estão obrigados a empreender medidas concretas para prevenir que aqueles sob seu comando cometam atos hediondos, sob pena de serem chamados a responder penal e internacionalmente por eles. O Direito Penal Internacional dá, com isso, um novo e considerável passo em direção à concretização dos valores que busca proteger, particularmente no que se refere à defesa intransigível das garantias mínimas asseguradas às populações civis afetadas por situações de guerra e da necessidade de prestação de contas por parte dos criminosos.
Vanessa Oliveira de Queiroz é advogada e consultora jurídica na Banca Pontes Queiroz Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharel em Direito pela UERJ e em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 4 de abril de 2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário