A decisão do Supremo Tribunal Federal que autorizou a execução da pena antes do trânsito em julgado dos processos mostra que ele atendeu a anseios da sociedade, quando deveria manter-se imparcial. A análise é feita pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) em editorial de seuboletim, que aborda, neste mês, a presunção de inocência.
“Por vezes, a reação ao autoritarismo do Estado é inflamada e a sociedade é intransigente quanto ao respeito dos direitos individuais dos cidadãos. Em outros momentos, entretanto, da sensação de insegurança e impunidade aflora um apelo pelo uso ferrenho e imediato do poder punitivo estatal. Apesar de reprovável, é comum assistir ao Poder Legislativo e até mesmo ao Executivo acompanharem esse movimento pendular dos anseios sociais e adotarem medidas populistas, já que eleitos como representantes do povo. O que destoa da lógica da tripartição dos Poderes é o Judiciário, em tese isento e imparcial.”, destaca a entidade.
O boletim — normalmente disponível apenas para associados, mas divulgado abertamente desta vez pela importância do tema — critica duramente o Supremo, afirmando, que a “lamentável” e “inadequada” decisão da corte foi um evidente retrocesso, fundado “em razões políticas e utilitaristas”, promovido graças a uma “acrobacia hermenêutica” que não se sustenta.
“Para justificar tal interpretação, recorreu-se a exemplos de ordenamentos jurídicos estrangeiros que permitem a prisão logo após a decisão da segunda instância. Foram invocadas, ainda, razões nitidamente utilitaristas, como a necessidade de evitar a prescrição e o desestímulo de recursos protelatórios, além do atendimento ao clamor da população que está farta de assistir ao tardar da Justiça”, critica o IBCCrim.
Para o IBCCrim, a decisão do STF fere a Constituição, além de invadir a competência legislativa ao confrontar diretamente a Assembleia Constituinte. “A solução apresentada é absolutamente inadequada, uma vez que tenta resolver as mazelas do Poder Judiciário às custas dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.” O IBCCrim argumenta ainda que a própria pena de prisão tem sido questionada, estando fadada ao insucesso.
Abuso das prisões provisórias
O professor de pós-graduação em Ciências Criminais da PUC-RS Augusto Jobim do Amaral, em artigo publicado no mesmo boletim, continua o raciocínio do editorial e o complementa afirmando que o quadro desenhado pode ser mais sombrio com a “naturalização do abuso das prisões provisórias, a ostensividade midiática despudorada no uso de algemas e a exploração das imagens de investigados e processados, prisões como forma de coação para obter confissões em megaprocessos capitaneados por messianismos judiciais, chegando até mesmo ao absurdo da ‘inversão do ônus probatório em matéria criminal’”.
Para Amaral, a “lamentável” decisão do STF apenas ratificou os supostos “novos ares” de progresso judicial que usam o pretexto do combate à criminalidade para anular as conquistas democráticas. “Em tempos de perene urgência punitiva, aparentemente irrefreáveis, a decisão por uma postura firme se impõe, nem que seja pelo resto de vergonha que ainda nos sobreviva.”
Classificando a decisão do Supremo de “enorme irresponsabilidade político-criminal”, o professor lembra que entre 2006 e 2014, o Superior Tribunal de Justiça alterava 25% dos Habeas Corpus (HC) concedidos pela segunda instância. “E nem falemos daquelas decisões que são mantidas em sede do STJ e modificadas pelo STF, ou quem sabe dos julgamentos que acabam por ser anulados e reformados via recursos especiais e extraordinários pelas cortes superiores.”
Amaral argumenta que a presunção de inocência não é somente uma garantia de liberdade pública, mas também uma cláusula de segurança e confiança dos cidadãos na prestação jurisdicional pelo Estado. “Estamos às voltas da alternativa política fundada na linha tênue do complexo nexo entre liberdade e segurança, neste ponto aqui ao menos não visto como irreconciliáveis.”
Nós contra eles
Em outro artigo do boletim, Salah Hassan Khaled Junior, professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), argumenta que a decisão do Supremo, além de reproduzir um legado autoritário encontrado em governos fascistas, que priorizavam o Estado ao indivíduo, “produz uma espécie de cisão entre ‘bons’ e ‘maus’: aceita que para os “inimigos” pode ser reservado um tratamento degradante, uma vez que supostamente representam uma ameaça para os demais”.
“[O Supremo] se deixou seduzir pela vontade de satisfazer a “opinião pública” e, de forma velada, disse que pouco importava se era necessário vulnerar direito fundamental para combater o mal, ou o que é percebido como manifestação do mal. Um trecho do voto do relator não deixa margem para dúvida: conforme o ministro Teori Zavascki, é preciso ‘atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade’”, opina Salah Hassan.
O professor também compara o entendimento do STF no caso ao “esplendor máximo da maquinaria inquisitória”, que acreditava na gradação contínua e permanente de culpabilidade para livrar o mundo de seus males.
Revista Consultor Jurídico, 11 de abril de 2016.
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