Alguns argumentos acerca do indiciamento já foram trazidos na Coluna Academia de Polícia, nos artigos que tratam da fundamentação do ato e sobre seus efeitos. Recentemente, o tema voltou à discussão no que tange ao indiciamento de autoridades com prerrogativa de foro, tendo sido objeto de recente reclamação junto ao Supremo Tribunal Federal, conforme noticiadopor esta revista eletrônica Consultor Jurídico.
O indiciamento de autoridades com prerrogativa de foro deve ser compatibilizado com o modelo acusatório de persecução penal adotado pela Constituição Federal, com a tendência jurisprudencial da Suprema Corte de trazer para a fase investigatória garantias e direitos decorrentes do princípio do contraditório e da ampla defesa e com a Lei 12.830/2013.
Cabe destacar, preliminarmente, que a figura do indiciamento passou a ter tratamento legislativo somente com a entrada em vigor da Lei 12.830/2013 . Em momento pretérito, inexistia descrição normativa sobre este modelo jurídico, apesar de figurarem, por décadas, em diversos corpos legais, a expressão “indiciado”. Não obstante a omissão legislativa, a doutrina e jurisprudência já haviam traçado os contornos do instituto, tendo a lei apenas consolidado um posicionamento já adotado pela maioria dos intérpretes do Direito. Nesse passo, a inovação legislativa estabeleceu que “o indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.”
A privatividade do Delegado de Polícia demonstra que o instituto é intrínseco e exclusivo da fase de investigação criminal, sendo a formalização do juízo de convencimento da autoridade policial. Nesse sentido, foi a manifestação em artigo jurídico já publicado:
“O ato de indiciamento é o ato do Delegado de Polícia, enquanto presidente da investigação, via de regra praticado ao término da mesma, ao considerar concluída a fase de coleta de elementos probatórios do delito investigado, quando é possível concluir-se pela autoria de determinado crime, individualizando-se o autor.”
Enquanto o juízo de convicção do delegado de Polícia sobre a prática delitiva se externaliza por meio do indiciamento, o convencimento do Ministério Público é retratado pela apresentação de denúncia e o posicionamento do magistrado é evidenciado quando da prolação de sentença. Trata-se de uma das etapas da formação da culpa na investigação criminal, no processo de filtragem apontado por Aury Lopes Jr.[1]
O indiciamento, a peça acusatória e a sentença judicial são reflexos do juízo técnico-jurídico de cada uma das autoridades envolvidas na persecução penal, sendo vedada a interferência nesse processo de formação de convencimento, sob pena de desconstrução do modelo acusatório, o qual sustenta divisões precisas entre as funções de investigar, de acusar e de julgar, a fim de que o Estado atue de forma isenta e imparcial durante toda a persecução penal.
Em consonância com a posição consolidada na Suprema Corte, o Poder Judiciário, em razão do nosso modelo acusatório, deve atuar na fase investigatória somente para inibir violações à ordem legal e constitucional que possam trazer prejuízos às garantias do investigado como sujeito de direito. O reflexo da estrutura acusatória para a condução do inquérito policial é a impossibilidade do magistrado se imiscuir no campo de discricionariedade do Delegado de Polícia quanto à necessidade, oportunidade e conveniência da realização de diligências investigatórias.
Da mesma forma, os efeitos desse modelo impedem o Poder Judiciário de interferir no convencimento técnico-jurídico externalizado pela autoridade policial no momento em que se indicia um investigado, concluindo-se, após o emprego de variados meios de investigação, pela ocorrência de prática delitiva, diante de fato típico, com materialidade e de indícios de autoria.
Nada impede que vícios de legalidade presentes no despacho de indiciamento, como a ausência de fundamentação ou mesmo inexistência de materialidade ou de indícios de autoria, possam ser analisados a posterioripelo magistrado, desde que este controle seja exercido com o propósito de garantir a legalidade e constitucionalidade dos atos da autoridade policial. A função jurisdicional, contudo, não pode influir no mérito do indiciamento, no sentido de impor à autoridade policial que se posicione no mesmo sentido de eventual requisição ou autorização do magistrado, já que ambas são posturas judiciais incompatíveis com o modelo acusatório adotado em texto constitucional.
O Supremo Tribunal Federal, em decisão recente, firmou entendimento segundo o qual o indiciamento constitui atribuição exclusiva da autoridade policial, de modo que não pode ser requisitada pelo magistrado sob pena de afronta ao princípio acusatório. Eis a ementa da decisão:
Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA ORDEM TRIBUTÁRIA. REQUISIÇÃO DE INDICIAMENTO PELO MAGISTRADO APÓS O RECEBIMENTO DENÚNCIA. MEDIDA INCOMPATÍVEL COM O SISTEMA ACUSATÓRIO IMPOSTO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. INTELIGÊNCIA DA LEI 12.830⁄2013. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. SUPERAÇÃO DO ÓBICE CONSTANTE NA SÚMULA 691. ORDEM CONCEDIDA. 1. Sendo o ato de indiciamento de atribuição exclusiva da autoridade policial, não existe fundamento jurídico que autorize o magistrado, após receber a denúncia, requisitar ao Delegado de Polícia o indiciamento de determinada pessoa. A rigor, requisição dessa natureza é incompatível com o sistema acusatório, que impõe a separação orgânica das funções concernentes à persecução penal, de modo a impedir que o juiz adote qualquer postura inerente à função investigatória. Doutrina. Lei 12.830⁄2013. 2. Ordem concedida. (HC 115015, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 27⁄08⁄2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-179 DIVULG 11-09-2013 PUBLIC 12-09-2013)
Da mesma forma, o indiciamento também não pode ser condicionado à prévia autorização do Poder Judiciário, uma vez que os efeitos dessa conduta também significariam ingerência indevida do Poder Judiciário em questões de natureza manifestamente inquisitorial. Sem delongas, caso autorizado o Delegado de Polícia a proceder ao indiciamento, o magistrado estaria antecipando juízo de valor, afirmando que houve prática delitiva, bem como estariam presentes a materialidade e indícios de autoria. Por outro lado, caso denegada a autorização, seu posicionamento já estaria firmado em sentido contrário.
Nota-se que, em ambas as situações, o magistrado estaria se antecipando e formando seu convencimento antecipadamente, substituindo a autoridade policial no ato de indiciamento, já que nas investigações que contemplam investigados com prerrogativa de foro, o tratamento dado ao indiciamento, independente de regramento específico de regimentos internos ou leis esparsas, deve ser idêntico àquele observado nos inquéritos policiais em que se verifica a incidência exclusiva do Código de Processo Penal, já que a vedação de interferência do magistrado quando a autoridade policial realiza um indiciamento não decorre de atos normativos primários, mas sim de mandamentos constitucionais, os quais estruturam nosso modelo acusatório penal.
Não bastasse a questão constitucional, o indiciamento, nos moldes defendidos, também tem como sustentação a incidência do Código de Processo Penal aos inquéritos originários. O Código de Processo Penal, no artigo 1º, caput, define, como regra, sua incidência ao processo penal em todo o território brasileiro, trazendo algumas exceções. Vejamos:
Art. 1º O processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código, ressalvados:
[...]
IV - os processos da competência do tribunal especial (Constituição, art. 122, no 17);
[...]
Parágrafo único. Aplicar-se-á, entretanto, este Código aos processos referidos nos nos. IV e V, quando as leis especiais que os regulam não dispuserem de modo diverso.
Em regra, as normas do Código de Processo Penal não poderiam ser aplicadas aos inquéritos originários, conforme a excepcionalidade criada no inciso IV. Contudo, sua aplicabilidade é autorizada, por imposição do parágrafo único, no caso de ausência de tratamento diverso das leis especiais.
No caso de inquéritos que tramitam na Suprema Corte, as normas especiais existentes são a Lei 8.038/1990 e o Regimento Interno do STF, ambos tratam de forma mínima a temática.
Deveras, a Lei 8.038/1990, que institui normas procedimentais para os processos de ação originária perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, apesar de ter tratado da ação penal originária, instituindo nuances específicas na tramitação processual, nada discorreu sobre os inquéritos que envolvessem investigados com prerrogativa de foro.
O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, vigente durante o advento da Constituição Federal de 1988, por sua vez, também não abordou a temática. Contudo, no ano de 2011, foram editadas emendas regimentais, inserindo algumas regras para a fase pré-processual. Vejamos:
Art. 230-C. Instaurado o inquérito, a autoridade policial deverá em sessenta dias reunir os elementos necessários à conclusão das investigações, efetuando as inquirições e realizando as demais diligências necessárias à elucidação dos fatos, apresentando, ao final, peça informativa.
§ 1º O Relator poderá deferir a prorrogação do prazo sob requerimento fundamentado da autoridade policial ou do Procurador-Geral da República, que deverão indicar as diligências que faltam ser concluídas.
[...]
Art. 231. Apresentada a peça informativa pela autoridade policial, o Relator encaminhará os autos ao Procurador-Geral da República, que terá quinze dias para oferecer a denúncia ou requerer o arquivamento.
Constata-se que a única regra do Regimento Interno que colide frontalmente com as normas do CPP seria o prazo para conclusão das investigações. No Código de Processo são exigidos 30 dias; enquanto, na seara regimental, 60 dias. Na parte restante, não se identifica qualquer outro confronto entre ambos os corpos normativos.
Desse modo, conclui-se que o indiciamento deve ser tratado, mesmo nos inquéritos originários, em conformidade com os ditames do modelo acusatório, do Código de Processo Penal e da Lei 12.830/2013, já que tanto a Lei 8.038/90 quanto o Regimento Interno se mostram silentes a respeito deste e de grande parte dos temas pertinentes à investigação criminal.
O próprio Regimento Interno do STF, no artigo 231, trata da figura do indiciado:
§ 2º As diligências complementares não interrompem o prazo para oferecimento de denúncia, se o indiciado estiver preso.
§ 3º Na hipótese do parágrafo anterior, se as diligências forem indispensáveis ao oferecimento da denúncia, o Relator determinará o relaxamento da prisão do indiciado; se não o forem, mandará, depois de oferecida a denúncia, que se realizem em separado, sem prejuízo da prisão e do processo.
Necessário ainda destacar o posicionamento da lavra do ministro Teori Zavascki, ao apreciar a Petição 5.899-DF, em decisão de 2 de março de 2016, onde o mesmo reconhece a função do Supremo Tribunal Federal, na fase investigatória, de atuar no controle da legitimidade dos atos e procedimentos de coleta de prova, autorizando ou não medidas submetidas à reserva de jurisdição:
3. Cumpre registrar, por outro lado, que, instaurado o inquérito, não cabe ao Supremo Tribunal Federal interferir na formação daopinio delicti. É de sua atribuição, na fase investigatória, controlar a legitimidade dos atos e procedimentos de coleta de provas, autorizando ou não as medidas persecutórias submetidas à reserva de jurisdição, como, por exemplo, as que importam restrição a certos direitos constitucionais fundamentais, como o da inviolabilidade de moradia (CF, art. 5º, XI) e das comunicações telefônicas (CF, art. 5º, XII). Todavia, o modo como se desdobram as demais atividades investigativas e o juízo sobre a conveniência, a oportunidade ou a necessidade de diligências tendentes à convicção acusatória são atribuições do Procurador-Geral da República (Inq 2.913-AgR, Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, DJe de 21/6/2012), que, na condição de titular da ação penal, é o “verdadeiro destinatário das diligências executadas” (Rcl 17.649 MC, Min. CELSO DE MELLO, DJe de 30/5/2014), bem como da autoridade policial, nos termos do art. 230-C do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
4. Definido, assim, o nível de interferência do Poder Judiciário na fase de investigação, registra-se, todavia, ser do mais elevado interesse público e da boa prestação da justiça que a atuação conjunta do Ministério Público e das autoridades policiais se desenvolva de forma harmoniosa, sob métodos, rotinas de trabalho e práticas investigativas adequadas, a serem por eles mesmos definidos, observados os padrões legais, e que visem, acima de qualquer outro objetivo, à busca da verdade a respeito dos fatos investigados, pelo modo mais eficiente e seguro e em tempo mais breve possível. Observadas essas circunstâncias, nada impede a instauração do presente inquérito.
Isto posto, num Estado Democrático de Direito, a prerrogativa de foro apenas acarreta aos ocupantes dos cargos públicos contemplados o Direito de ter como juiz natural, na fase de investigação e durante a instrução processual, a autoridade judiciária competente, não sendo admissível, sob este pretexto, a subversão da lógica acusatória de modo a legitimar a intervenção do Poder Judiciário em questões de natureza manifestamente inquisitorial.
Ademais, nada obsta sequer a aplicação do artigo artigo 17-D da Lei 9.613/1998, que estabelece que “em caso de indiciamento de servidor público, este será afastado, sem prejuízo de remuneração e demais direitos previstos em lei, até que o juiz competente autorize, em decisão fundamentada, o seu retorno”, nos casos de lavagem de dinheiro, já aplicado, a título de exemplo, para ocupante de cargo de prefeito[2].
Sendo assim, nota-se que o indiciamento nos inquéritos originários independe de prévia autorização ou de requisição judicial, o que não impede nem prejudica a supervisão judicial do ministro-relator na sua função de garantidor de direitos fundamentais e de fiscalizador da legalidade da persecução penal. Ao revés, trata-se de construção necessária para compatibilizar o instituto em voga com os ditames constitucionais e legais regentes da investigação criminal.
[2] Prefeito pernambucano é afastado com base na Lei de Lavagem de Dinheiro. Disponível neste link. Acesso em 05/04/2016.
Márcio Adriano Anselmo é delegado da Polícia Federal, doutor pela Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.
Duilio Mocelin Cardoso é delegado da Polícia Federal, graduado em Direito pela Universidade Federal de Viçosa.
Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2016.
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