segunda-feira, 23 de junho de 2014

Teoria da Perda de uma Chance probatória pode ser aplicada ao Processo Penal



No Processo Penal constitucionalizado a carga probatória é da acusação. Ao acusado não cabe provar qualquer fato — mesmo quando objeta com um álibi, ainda que não comprovado o álibi, tal situação não repercute no seu status inicial de inocente[1]. Compete ao autor da ação penal a obrigação de produzir todas as provas  necessárias à formação da convicção do julgador, no círculo hermenêutico  prova/fato (cuja aceitação aqui é meramente circunstancial). Como se estabelece uma tensão entre a liberdade (presunção de inocência) e a prova  suficiente para condenação, pode-se invocar a teoria da “perda  de uma chance”, própria do Direito Civil, justamente para se analisar os modos de absolvição em face da possibilidade e não produção de provas  pelo Estado. Isso porque num processo democrático não pode o acusador se dar por satisfeito na produção da prova do e pelo Estado, eximindo-se das demais possíveis, até porque não se trata mais de verdade real, mas de verdade produzida no jogo processual[2]. Claro que a teoria não pode ser trazida como “espelhinho” teórico, demandando a respectiva aproximação adequada, a partir da noção de processo pena como jogo. Rafael Peteffi da Silva[3]discorre sobre a Teoria da Perda de Uma Chance:
“Na lição de François Chabas, existem algumas características principais: a vítima deve estar em um processo aleatório, que foi interrompido pelo ato do agente e que ao final poderia lhe representar uma vantagem. Assim, pode-se afirmar que há uma ‘aposta’ perdida (essa aposta é uma possibilidade de ganho, é a vantagem que a vítima esperava auferir - como a procedência da demanda judicial e a obtenção do primeiro prêmio da corrida de cavalos - que normalmente pode ser enquadrada dentro da categoria de lucros cessantes) e uma total falta de prova  do vínculo causal entre a perda  dessa vantagem esperada e o ato danoso, pois essa aposta é aleatória por natureza.”
Não se pode negar que o acusado poderia ser condenado com a prova  já existente nos autos, mas também não é menos verdade que a produção das demais provas  possíveis (periciais, depoimentos, filmagens, etc.), sempre carga probatória da acusação, poderia enfraquecer ou mesmo levar à absolvição. No campo do processo penal, pois, a ideia que preside é a da acumulação de elementos de convicção por parte da acusação. Em uma frase: toda prova  é necessária e nada é dispensável. O acusado perdeu a  chance, com a não produção (desistência, não requerimento, inviabilidade, ausência de produção no momento do fato etc.,) de que sua expectativa de absolvição fosse destruída de boa-fé. Rafael Peteffi da Silva anota que as chances  devem ser sérias e reais:
“A observação da seriedade e da realidade das chances  perdidas é o critério mais utilizado pelos tribunais para separar as chances  potenciais e prováveis e, portanto, indenizáveis, dos danos puramente eventuais e hipotéticos, cuja reparação deve ser rechaçada. Inicialmente vale ressaltar que as chances  devem ser apreciadas objetivamente, diferenciando-se das simples esperanças subjetivas (...). A verificação objetiva das  chances  sérias e reais é muito mais uma questão de grau do que de natureza. Assim, somente a análise dos casos concretos possibilitará ao magistrado a verificação da real seriedade das chances. No entanto, podem-se traçar algumas características gerais, que auxiliam o aplicador do direito em um discernimento mais seguro e menos casuístico sobre a eventualidade do dano.”
E continua:
“A chamada ‘Teoria da Perda da Chance’, de inspiração francesa e citada em matéria de responsabilidade civil, aplica-se aos casos em que o dano seja real, atual e certo, dentro de um juízo de probabilidade, e não de mera possibilidade, porquanto o dano potencial ou incerto, no âmbito da responsabilidade civil, em regra, não é indenizável; (...).  Como foi visto até o presente momento, a teoria da  perda de uma  chance  é utilizada devido à impossibilidade de se saber se a ‘aposta’, isto é, o processo aleatório, apresentaria um resultado positivo.”
Feita essa aproximação, nos limites do artigo, cabe dizer que é cada vez mais comum, especialmente pela chancela do Poder Judiciário, que as condenações ocorram exclusivamente com base na palavra dos policiais. E isso significa, em síntese, que não se possui mais nada a se fazer no processo em contraditório. Confirma-se o que se disse no flagrante ou no inquérito policial. E isso é pouco democrático porque havia chances de se produzir provas para além dos agentes estatais. Nos casos de tráfico a questão beira ao paroxismo. De regra, as provas da condenação advêm somente dos depoimentos dos policiais e não encontram guarida no restante do acervo probatório. Muitas vezes os policiais afirmam que a abordagem se deu logo após observarem a venda para um usuário de droga, mas nenhum possível comprador de droga é identificado ou presta declaração, nem é conduzido à autoridade policial. Consequentemente, dito usuário jamais será ouvido em juízo. Nem sequer, quando a venda ocorre em veículos, as placas dos tais compradores são anotadas. Assim, os agentes de segurança pública deixam de colher prova potencialmente isenta, não por ausência de possibilidade de produção da prova mais adequada, mas sim pela cômoda adoção da lei do menor esforço e pela confiança na atribuição de alta confiabilidade aos seus próprios relatos.
Estamos em 2014, tempos em que a tecnologia facilita as filmagens — aliás, os policiais depois da jornadas de protestos de 2013 receberam câmeras para serem colocadas nas fardas — e não se justifica a manutenção do modelo medieval de produção probatória testemunhal. Há possibilidade de tal proceder e não se faz. Logo, enfraquecida resta a prova. E é o que se faz quando se confere alto valor probatório aos testemunhos de policiais, dando-lhes capacidade de, per se, embasarem uma condenação: o próprio agente público finda por "se transformar na prova" quando, na realidade, sua função precípua é a de angariar elementos probatórios.
São possíveis a filmagem de toda a ação; investigações anteriores; condução dos usuários por porte etc. Mas nada disso é produzido. A acusação se restringe a produzir (repetir) em juízo os depoimentos dos policiais. Nesse contexto, ainda que os depoimentos dos policiais não sejam inválidos, cabe indagar se o Estado polícia, acusador e juiz, não deve exigir a produção de todas as  provas  possíveis, sob pena de flexionar a presunção de inocência pressuposta em nome da facilidade da condenação, fazendo com que o acusado perca a chance  de questionar a consistência e coerência de todas as provas.
Não se trata de uma quimera. Mas de tipo penal com pena de cinco anos. A  perda da chance  de que todas as provas  contra si sejam produzidas implica numa  perda, sem possibilidade de produção pela parte contrária, lembrando-se, ainda, que o acusado nada deve provar. Dito de outra forma: o Estado não pode perder a chance  de produzir  provas  contra o acusado em nome da eficiência. Todas as  provas  possíveis se constituem como preceitos do devido processo substancial, já que a vida e a liberdade do sujeito estão em jogo. Deve, portanto, exigir-se a justificativa plausível para que tenha se perdido a chance de se produzir prova material, além da testemunhal, pelos agentes estatais.[4]. Não basta ausência de condições tecnológicas, pois essas são possíveis e não realizadas pelo próprio Estado. Há a  perda de uma  chance para defesa pela ausência de  prova  possível e factível da acusação, a ser apurada em cada caso. Por sua omissão o Estado ceifa a possibilidade de comprovação mais substancial e impede a perfeita configuração da ação típica.
Não é coerente, por exemplo, aceitar-se como suficiente o relato prestado por policiais no sentido de que viram o acusado praticando o crime de tráfico de droga quando, por exemplo, havia possibilidade de os mesmos agentes, no estrito cumprimento do dever legal, colherem informações de terceiros para justificar a prisão em flagrante. Proceder assim é atentar contra a qualidade da prova e deslegitimar eventual decisão condenatória, porque obviamente não foram esgotadas — e por culpa do próprio Estado — as formas de averiguação do fato imputado. Por isso é que se afirma: a destruição do estado constitucional de inocência do acusado não pode se dar unicamente pela prova produzida contra ele pelo Estado na forma de seus agentes, dado que dificilmente refutável, a se considerar a realidade dos casos, nos quais não raramente a única defesa do acusado será sua própria palavra – a qual se dá pouca confiabilidade na jurisprudência – em face da dos policiais. Dever-se-á, assim, sempre se exigir uma "comprovação externa", a ser buscada pelos próprios agentes públicos quando do cumprimento das diligências, claro, dentro de uma razoabilidade, já que nem todas as condutas possibilitam a ampla produção probatória.[5]
Ademais, reforça-se que não é papel do acusado provar sua inocência, já que a carga probatória é do Ministério Público, a quem incumbe demonstrar, de maneira inequívoca, que a droga apreendida era de fato destinada à comercialização e, mais do que isso, que o acusado possuía relação com a droga apreendida. O dano decorrente da condenação, mesmo ausente a produção de prova possível, implica no reconhecimento da modulação, invertida, da Teoria da Perda de uma Chance, no Processo Penal. Não se trata de dano hipotético ou eventual, mas sério e real da liberdade de alguém. A perda da chance probatória por parte do Estado acusação gera o nexo de causalidade com a fragilidade da prova que poderia ser produzida e, com isso, diante da omissão estatal, pode-se aquilatar, no caso concreto, os efeitos dessa ausência. Dado que a única presunção constitucionalmente reconhecida é o da presunção de inocência, não produzida prova capaz de corroborar a palavra isolada dos policiais, em muitos casos, a condenação será abusiva, ainda mais quando disponíveis, em pleno 2014, meios tecnológicos hábeis (utilizados amplamente por forças policiais em diversos países), ausente no Brasil. Não se está duvidando da palavra dos policiais. O que se reconhece é que a condenação de um sujeito, em uma democracia, exige a produção dos meios probatórios disponíveis. Sem eles, havendo qualquer dúvida, a absolvição é o único caminho.
Sabe-se que a condenação exige certeza e, havendo dúvida acerca da autoria do delito, bem assim a perda da chance de produção de prova por parte do Estado, plenamente factível, nos dias atuais em face dos avanços tecnológicos, a absolvição é a medida que se impõe. A Teoria da  Perda  de uma  Chance, assim, pode ser invocada no Processo Penal para o fim de justificar teoricamente a absolvição pela falta de  provas  possíveis, não apuradas, não produzidas, mas factíveis, prevalecendo a presunção de inocência.

[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[2] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014.
[3] PETEFFI SILVA, Rafael. Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance. São Paulo: Atlas, 2013.
[4] MADEIRA, Ronaldo Janus. Da Prova e do Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,, 2003. p. 98-99: “Outra questão polêmica é a da credibilidade ou não do depoimento policial. Lógico que, em função de serem todas as provas relativas, não havendo hierarquia nem valor apriorístico entre elas, a função de policial, em princípio, não invalida nem diminui seu valor, mormente se harmônico com o conjunto de elementos produzidos no processo. Entretanto, o depoimento de policiais, principalmente nas ações penais nos crimes de entorpecentes, quando exclusivos, e podendo no momento da prisão em flagrante obter a declaração de pessoas estranhas à corporação, e divorciados de outros elementos probatórios, não devem servir para fundamentar um édito condenatório. A função da polícia não é a de fazer prova, mas de obter provas. Ora, uma infração penal que na sua apuração resultou confirmada apenas por depoimentos policiais, confusos e contraditórios e, quando da fase de instrução, nenhum elemento novo foi acrescido, mostra-se sem a credibilidade necessária para que o julgador julgue procedente a pretensão punitiva. A autoridade policial, nos inquéritos, tendo oportunidade de obtenção de outras provas, outros testemunhos, estranhos ao quadro policial e não o fazendo, a prova produzida deve ser aceita com reservas, negando-se o valor a essa prova assentada, somente, em depoimentos policiais. Até porque, quando os policiais que efetuaram o flagrante, podendo, não trazem aos autos pessoas estranhas ao processo para que se outorgue validade a seus atos, normalmente, o ato de prisão ocorreu com violências, agressões e outros meios ilícitos que maculam como duvidosas e imprestáveis as provas produzidas.”.
[5] NUCCI, Guilherme Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010: “Para a comprovação da prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes (e de outros tipos penais previstos nesta Lei), exigia-se, no passado, prova testemunhal considerada isenta, vale dizer, distinta dos quadros da polícia, pois esta, através dos seus agentes, seria a responsável pela prisão ou investigação, logo, teria interesse em mantê-la, justificando seus atos e pretendendo a condenação do réu. Não mais vige esse pensamento, como majoritário, nos tribunais brasileiros. Preceitua o art. 202 do CPP que “toda pessoa poderá ser testemunha”, logo, é indiscutível que os policiais, sejam eles os autores da prisão do réu ou não, podem testemunhar, sob o compromisso de dizer a verdade e sujeitos às penas do crime de falso testemunho. Ressaltamos, entretanto, que é preciso cautela, em determinadas peculiares situações, para a aceitação incondicional desses depoimentos. Parece-nos cauteloso que o magistrado, visualizando, em processos de apuração de crime de tráfico ilícito de entorpecentes, um rol de testemunhas de acusação formado somente por policiais, indague dos mesmos a razão pela qual não se obteve nenhuma outra pessoa, como testemunha, estranha aos quadros da polícia. Essa verificação é essencial, pois uma apreensão de drogas feita à vista de inúmeras pessoas, em local público, por exemplo, pode perfeitamente contar como testemunho de pessoas que não sejam policiais.

 é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.

Revista Consultor Jurídico, 20 de junho de 2014

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