A Súmula 438 do Superior Tribunal de Justiça é clara ao reconhecer que a prescrição antecipada da pena em perspectiva não encontra respaldo legal. Assim, como o pedido de arquivamento é feito pelo Ministério Público, titular da ação penal, só resta à parte interessada em sua tramitação ingressar com Mandado de Segurança para cessar a ilegalidade.
Com esse entendimento, o ministro Jorge Mussi, do STJ, reformou acórdãodo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que negou a segurança a um advogado de Porto Alegre. Ele entrou com Recurso Ordinário na corte superior após a 8ª Câmara Criminal ter mantido a decisão do juízo de origem de arquivar o processo-crime contra o tio do advogado, acusado de estelionato.
Na decisão, Mussi afirmou que o Mandado de Segurança, como regra, não pode ser utilizado como sucedâneo recursal, a não ser que vise a proteção de direito líquido e certo contra ato abusivo ou ilegal de autoridade pública, como o caso dos autos.
‘‘Logo, na hipótese vertente, arquivado o Inquérito Policial a pedido do representante do Ministério Público, com base na perspectiva virtual e inexistindo recurso contra referida decisão, à vítima restava somente omandamus para proteção de seu direito líquido e certo ao devido processo legal’’, escreveu na decisão, lavrada na sessão de 21 de maio.
Com o provimento do Recurso Ordinário pelo STJ, os autos retornam à primeira instância e serão remetidos à Procuradoria-Geral de Justiça, para nova manifestação, dando prosseguimento ao processo.
Briga de família
Os fatos que deram início à contenda judicial entre tio e sobrinho se passaram no verão de 2001, segundo registra o Inquérito Policial 538/2013/100317/A, concluído pela 17º Delegacia de Polícia de Porto Alegre em agosto de 2013. O Inquérito indiciou o empresário pela prática do crime de estelionato.
Neste, o advogado, então com 23 anos e em busca de seu primeiro emprego, conta que foi convidado a trabalhar com o tio na sede de suas empresas, na capital gaúcha. Fazia de tudo um pouco: tirava xerox de documentos, trabalhava como office-boy e, muitas vezes, servia até de motorista. Para executar essas tarefas, recebia, mensalmente, um salário-mínimo, além das passagens. Não teve a Carteira do Trabalho assinada.
Num certo dia de abril do mesmo ano, o empresário perguntou a idade do sobrinho. A responder que contava com 23 anos, este lhe pediu que assinasse vários documentos para uma empresa de incorporações e participações. Explicou que tais assinaturas iriam ajudá-lo a conseguir um empréstimo para alavancar a empresa no mercado.
Depois desse pedido surgiram outros, sob o argumento de que se tratava de ‘‘documentação complementar’’. À autoridade policial, o sobrinho admitiu que não leu nenhum dos documentos, pois, além de achar que estava colaborando com o empreendimento, confiava inteiramente no tio. Essa situação perdurou até meados de 2004, quando deixou a empresa e entrou para a Faculdade de Direito.
As consequências dessa omissão começaram a aparecer quando estagiava em escritórios de advocacia. Certo dia, ao receber o seu salário, o então acadêmico de Direito foi informado pelo banco que o montante (R$ 600) estava penhorado. Informado do porquê, ele procurou o tio, que se esquivou das explicações. A secretária da empresa informou-lhe que a penhora se referia à execução de dívida trabalhista da tal incorporadora.
Como a mesma situação se repetiu várias vezes, o sobrinho, já formado em Direito, resolveu investigar a fundo. Após consultar a Junta Comercial de São Paulo, descobriu que havia sido vítima de golpe praticado pelo tio. Tratava-se, garantiu à Policia, da aquisição de 98,5% de uma empresa em que foi usado como ‘‘laranja’’. Afinal, ganhando um salário-mínimo, não teria condições de comprar a quase totalidade de uma firma avaliada em R$ 6 milhões.
Além da decepção com o ardil do empresário, o advogado sustentou, no inquérito, que a situação lhe traz, até hoje, inúmeros dissabores, pois tem vivido na ‘‘corda bamba’’. É que, a qualquer momento, pode ter valores sequestrados no banco para honrar contas e compromisso assumidos pela incorporadora administrada pelo tio, em função de negócios simulados.
Guerra judicial
Em face do ocorrido, o advogado-autor foi à Justiça para se ressarcir dos prejuízos. Ajuizou uma Ação de Nulidade de Negócios Jurídicos com Declaratória de Inexistência de Relação Jurídica, cumulada com pedido de danos morais, na 4ª Vara Cível do Foro Central da capital.
Sentindo-se caluniado pelo teor da inicial, o empresário contra-atacou, entrando com Queixa-Crime contra o sobrinho na 11ª Vara Criminal do mesmo Foro. O crime é tipificado no artigo 138 do Código Penal: caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime.
O sobrinho, no entanto, conseguiu trancar a tramitação da ação penal ao obter liminar na 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O relator do acórdão, desembargador Diógenes Hassan Ribeiro, aceitou o pedido de Habeas Corpus por entender que o réu estava sofrendo coação ilegal e que não havia intenção dolosa de ofender a honra da vítima.
Para o relator, diante da falta de dolo específico da conduta imputada ao advogado, não houve justa causa para o exercício da ação penal. ‘‘E, assim sendo, por não estar presente o elemento subjetivo do tipo penal em destaque, evidenciada está a atipicidade do fato’’, manifestou- se no acórdão.
Mandado de Segurança
O advogado voltou ao TJ-RS, mais tarde, para derrubar a decisão da juíza daquela vara criminal, Cristiane Busatto Zardo, que decidiu pelo arquivamento do processo. Tal como opinara o Ministério Público — que não quis denunciar o empresário por estelionato —, a julgadora entendeu que estava configurada a ‘‘prescrição em perspectiva’’ ou ‘‘prescrição pela pena projetada’’.
A aplicação do instituto tem o objetivo de racionalizar a administração da Justiça, pois evita o gasto desnecessário de recursos humanos e materiais com um processo cuja punição, prevê-se, já está ou estará extinta no decorrer da ação penal.
A relatora do Mandado de Segurança na 8ª Câmara Criminal, desembargadora Isabel de Borba Lucas, no entanto, manteve a decisão da juíza. No acórdão lavrado dia 13 de outubro de 2013, ela reconheceu, inicialmente, que o instituto da prescrição em perspectiva não encontra amparo no ordenamento jurídico, já que sua aplicação afronta o princípio da reserva legal.
‘‘Contudo, na espécie, o Ministério Público, titular da ação penal, pugnou pelo arquivamento do Inquérito Policial, com o que aquiesceu o julgador da origem, inexistindo meio de impugnação a esta decisão conferido ao lesado pelo delito’’, justificou no acórdão.
Por fim, a relatora destacou que o artigo 268 do Código de Processo Penal diz que a parte ofendida só pode intervir no curso da ação após o oferecimento da denúncia, o que não foi o caso dos autos. Com isso, entendeu pela inexistência de direito líquido e certo que autorize a concessão do Mandado de Segurança.
Contra essa decisão do colegiado foi que o advogado entrou com Recurso Ordinário no Tribunal de Justiça.
Clique aqui para ler a decisão do STJ.
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Revista Consultor Jurídico, 09 de junho de 2014.
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