segunda-feira, 16 de junho de 2014

Contraditório no Processo Penal não é amor, mas é tão complexo quanto



Como se pensa o processo penal? Um processo penal para quê e para quem? Quais as coordenadas em que jurisdição, ação e processo são acolhidas no Brasil? Na coluna que inauguramos dialogaremos sobre Processo Penal de maneira crítica e atualizada. Discutiremos teorias e os informativos do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. E com um certo bom humor, tão caro ao Direito. Fica o convite para nos acompanhar.
E começamos convidando o leitor para além de uma paixão pelo contraditório. Queremos o amor ao contraditório, na linha de Rui Cunha Martins[1] Não se trata de uma história linear de amor. Aproxima-se do que acontece entre os sujeitos amorosos: incompreensões, conflitos, intrigas, brigas e um vínculo pelo qual a ação acontece. É um pouco do amor-ódio lacaniano. Parafraseando Roland Barthes quando dois sujeitos brigam segundo uma troca ordenada de réplicas e tendo em vista obter a “última palavra”, esses dois sujeitos já estão casados num processo. E o casamento processual implica num jogo de lugares: a cena processual regula um lugar em que um não pode existir sem o outro, ou seja, o processo somente existe com acusação e defesa, mediados por um terceiro, o juiz. Daí que a função do juiz não é a de se meter na relação processual, tal qual no casamento. O diálogo é entre os jogadores, um de cada vez, mas em relação e eles, isto é, “nunca você sem mim”. Não se trata de um mero escutar ou ao outro, mas a submissão à partilha da fala. Eis o (difícil) contraditório.
O processo penal precisa se constituir e se encontrar. Sofreu ao ser ignorado pelas concepções privatistas. Iludiu-se com a proposta de Bülow, de que haveria uma relação jurídica triangular (conforme Wach), de que o acusado finalmente seria um ‘sujeito’, com direitos e deveres, de que seria um autêntico processo de partes... Tudo era lindo nesse mundo de fantasia criado pela teoria da relação jurídica. Caiu na real quando James Goldschmidt mostrou o quão pueril e interesseiro era o amor de Bülow e sofreu com o desvelamento “goldschmidtiano” de toda a ilusão da teoria do processo como relação jurídica.
Foi difícil (e ainda é) dar-se conta da complexa dinâmica processual e de que “quando a guerra estoura, tudo se encontra na ponta da espada; os direitos mais intangíveis se convertem em expectativas, possibilidades e obrigações, e todo o direito pode se aniquilar como consequência de não ter aproveitado uma ocasião ou descuido de uma obrigação; como, pelo contrário, a guerra pode proporcionar ao vencedor o desfrute de um direito que não lhe corresponde”.[2]
A visão realista (e cruel) de Goldschmidt não foi bem compreendida por muitos, infelizmente, talvez até porque pouco lido ou estudado no Brasil. Mas o maior valor foi que o desvelamento do mundo onírico e cor de rosa de Bülow fortaleceu algo que nos é muito caro: a importância pelo respeito às regras do jogo. Compreendida epistemologia da incerteza e a dinâmica da guerra, reforça-se a importância de efetivarmos o devido processo como instrumento de redução de danos do, e no, Processo Penal. O legado deixado por Goldschmidt é muito maior do que o reconhecimento que ele teve.
Então, vem o deslumbre por Fazzalari e o prometido “processo como procedimento em contraditório”, ainda que o autor italiano se situe numa relação de continuidade (não suficientemente assumida por ele) com o pensamento e a visão da dinâmica da situação jurídico-processual de Goldschmidt. Novas promessas e a luta pelo fortalecimento do contraditório e a diminuição da supremacia da ‘jurisdição’. A sentença, enquanto provimento final, é construída em contraditório pelas partes e o juiz. Ocontraditório é, pois, a característica que diferencia o processo doprocedimento e sua característica fundamental (como dizem Aroldo Gonçalves, Marcelo Cattoni, Flaviane Barros, Rosemiro Leal, dentre outros). Assim é que a teoria do processo precisa ser revista, a partir do amor aocontraditório, implicando na modificação da compreensão de diversos institutos processuais vigorantes na prática processual brasileira.
Invertendo-se a lógica do senso comum teórico dos juristas, o processo éprocedimento realizado por meio do contraditório e, especificamente noProcesso Penal, entre os jogadores Ministério Público e/ou querelante, e efetiva presença do acusado com defesa técnica, mediados pelo julgador. Por isso a necessidade de se entender o exercício da jurisdição a partir da estrutura do processo como procedimento em contraditório, com significativas modificações na maneira pela qual ele se instaura e se desenrola, especialmente no tocante ao princípio do contraditório e o papel do juiz na condução do feito.
Nesse pensar, o contraditório precisa ser revisitado, uma vez que não significa apenas ouvir as alegações dos jogadores/partes, mas a efetiva participação, com paridade de armas, sem a existência de privilégios, estabelecendo-se comunicação entre os jogadores, mediada pelo Estado julgador. Rompe-se, com a visão de que a simples participação dos sujeitos (juiz, auxiliares, Ministério Público, acusado, defensor) do processo possa conferir ao ato o status de contraditório. É preciso mais. Exige-se a efetiva participação daqueles que sofrerão os efeitos do provimento final, apurando-se o melhor argumento em face do Direito e do caso penal, na via intersubjetiva e entendendo o processo como um acontecimento semântico.
A exteriorização do princípio do contraditório, na proposta de Fazzalari, se dá em dois momentos. Primeiro com a informazione, consistente no dever de informação para que possam ser exercidas as posições jurídicas em face das normas processuais e, num segundo momento, a reazione, manifestada pela possibilidade de movimento processual, sem que se constitua, todavia, em obrigação. Resta evidente, nessa apertada síntese, que o Processo Penal possui destacado lugar e função na democracia, a saber, é o espaço de diálogo em que o contraditório deve ser garantido. É a partir do contraditório que se estabelece a legitimidade do provimento judicial. Claro que o conteúdo da decisão estará vinculado a outros fatores, dado que inexiste decisão neutra. Há sempre a aderência — mesmo alienada — a um modelo de pensar. O que importa é (re)estabelecer um espaço democrático no Processo Penal brasileiro, superando a visão prevalecente, na qual o ritual e a postura inquisitória ceifam qualquer possibilidade de democracia processual, no que Fazzalari pode ser um sendero, pelo menos do ponto de vista da produção de informação processual válida, excluindo-se, por desamor ao contraditório, por exemplo, os atos de investigação repetíveis.
Tudo isso faz ainda mais sentido se entendermos o ‘princípio da necessidade’, isto é, nula poena sine iudicio, de que o Processo Penal é o caminho necessário e inafastável para se chegar a uma pena (ou não pena). O Direito Penal é castrado, pois despido de poder coercitivo direto, somente se realizando ‘pelo’ e ‘no’ processo penal. Neste caminho a ser percorrido, as “regras do jogo” (e o contraditório como fundante) são cruciais, como elementos legitimador, mas, acima de tudo, como resultado do nível de evolução civilizatória. Sem desconsiderar, ainda, que o Processo Penal de uma nação é o termômetro dos elementos autoritários ou democráticos de sua Constituição (conforme Goldschmidt), de modo que a uma Constituição autoritária, corresponderá um processo autoritário, inquisitório; uma Constituição democrática impõe a democratização do processo penal, sua abertura para realização do projeto democrático lá insculpido.
Por fim, sobre Decisão Penal falaremos outro dia. Desde já, vale destacar que falar por último, alinhar os significantes probatórios, enfim, concluir, significa atribuir um sentido no espaço da fala e, nesse lugar, a teoria da relação jurídica (Oskar Von Bülow), faz com que o magistrado domine e sinta-se livre para dizer o que quiser, como bem critica Lenio Streck. Entretanto, atribuir sentido no espaço público não se compara com o espaço privado e o constrangimento do contraditório e do direito visto como integridade (Dworkin). Podem, quem sabe, nos seguir por caminhos mais democráticos. Um amor pelo contraditório é condição de possibilidade. De desamor ao contraditório, os exemplos são muitos. Poderá significar uma ferida narcísica mortal ao magistrado que pensa (e canta) “esse cara sou eu”. Roland Barthes dizia que o “discurso amoroso é hoje em dia uma extrema solidão”, aqui compartilhada por dois professores de Processo Penal que apostam no amor (im)possível ao contraditório.

[1] CUNHA MARTINS, Rui. A Hora dos Cadáveres Adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013.
[2] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 11ª edição. São Paulo, Saraiva, 2014, p. 69.
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 é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
 é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
Revista Consultor Jurídico, 13 de junho de 2014

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