A partir do momento em que é constatada a ocorrência de um crime, nasce para o Estado o seu direito de punir. Contudo, esse direito não pode ser exercido de maneira aleatória e ilimitada, sendo indispensável a observância de regras pré-estabelecidas que legitimam a aplicação de uma pena. Em outras palavras, é por meio de um processo banhado pelo contraditório e pela ampla defesa que o Estado exerce o seu direito de punir.
Nesse contexto, para garantir que a pena aplicada seja justa e adequada à repressão e prevenção ao crime, o nosso legislador confere ao magistrado alguns parâmetros que objetivam a sua perfeita individualização, valendo-se, para tanto, de um critério trifásico em que são analisadas as circunstâncias judiciais, as circunstâncias agravantes e atenuantes e, por fim, as causas de aumento de diminuição da pena. Caso alguma dessas fases seja suprimida, a decisão condenatória será nula por ofensa aos princípios da legalidade e da individualização da pena. Percebe-se, pois, que o critério trifásico caracteriza-se como uma verdadeira garantia ao indivíduo, impedindo eventuais abusos por parte do Estado.
No presente estudo nos limitaremos a discorrer sobre os maus antecedentes, que constitui uma das circunstâncias judiciais previstas no artigo 59, do Código Penal, e deve ser analisada pelo juiz na fixação da pena base. Já alertamos, todavia, que o tema é polêmico e muito divergente, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência.
Análise Crítica: desvendando os maus antecedentes
Entende-se por antecedentes os fatos anteriores praticados pelo imputado e que acarretam alguma repercussão jurídica, devendo, justamente por isso, ser apreciados pelo juiz, sejam eles bons ou maus. Consideram-se maus antecedentes aquelas condutas que merecem reprovação por parte do Estado devido a sua incompatibilidade com o ordenamento jurídico e que, portanto, têm o condão de demonstrar a maior ou menor afinidade do imputado com a prática criminosa.
Fernando Capez ensina que antecedentes “são todos os fatos da vida pregressa do agente, bons ou maus, ou seja, tudo o que ele fez antes da prática do crime. Esse conceito tinha abrangência mais ampla, englobando o comportamento social, relacionamento familiar, disposição para o trabalho, padrões éticos e morais etc. A nova lei penal porém, acabou por considerar a ‘conduta social’ do réu como circunstância independente dos antecedentes, esvaziando, por conseguinte, seu significado”.[1]
A grande polêmica acerca do tema consiste na abrangência do conceito demaus antecedentes, sendo a sua definição extremamente relevante por influenciar na fixação da pena base e, inclusive, na decretação de eventuais medidas cautelares, tais como as prisões preventivas ou temporárias.
Para Rogério Greco, os antecedentes “dizem respeito ao histórico criminal do agente que não se preste para efeitos de reincidência”.[2] O autor sustenta que, em virtude do princípio da presunção de inocência, adotado pela Constituição da República, somente as condenações anteriores com trânsito em julgado, que não sirvam para caracterizar a reincidência, é que poderão ser consideradas em prejuízo do sentenciado, fazendo com que a pena base seja alterada.[3]
Assim, os defensores desse entendimento sustentam que inquéritos policiais e processos criminais sem trânsito em julgado não caracterizam os maus antecedentes, pois, caso contrário, haveria ofensa ao princípio da presunção de inocência. Nesse sentido, aliás, foi editada a Súmula 444, do STJ: “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”.
Destaque-se, ainda, que, embora o texto constitucional relacione a presunção de inocência à condenação penal, o próprio STF já se manifestou acerca do caráter irradiante dessa garantia para outros juízos de culpa, conforme destacado pelo Ministro Celso de Mello em seu voto na ADPF 144, senão vejamos: “Torna-se importante assinalar, neste ponto, Senhor Presidente, que a presunção de inocência, embora historicamente vinculada ao processo penal, também irradia os seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso de poder e a prepotência do Estado, projetando-se para esferas processuais não-criminais, em ordem a impedir, dentre outras graves consequências no plano jurídico – ressalvada a excepcionalidade de hipóteses previstas na própria Constituição -, que se formulem, precipitadamente, contra qualquer cidadão, juízos morais fundados em situações jurídicas ainda não definidas (e, por isso mesmo, essencialmente instáveis) ou, então, que se imponham, ao réu, restrições a seus direitos, não obstante inexistente condenação judicial transitada em julgado.”
Apesar de reconhecermos a robustez dos argumentos elencados pelos defensores da tese, entendemos que o sentido de maus antecedentes deve incluir todo o histórico criminoso do agente, sem que, com isso, haja ofensa ao princípio da presunção de inocência. Na verdade, defender o entendimento contrário seria desrespeitar o princípio constitucional da isonomia, uma vez que um sujeito com inúmeros processos e inquéritos policiais não pode ser tratado da mesma forma que um indivíduo sem qualquer registro criminal.
Somos defensores de um Direito Penal Mínimo, contudo, temos ciência de que um Direito Penal extremamente garantista também não se coaduna com a realidade brasileira. Não se trata de defender o desrespeito aos direitos e garantias individuais, pelo contrário. Nosso objetivo é apenas adequar a aplicação da lei à realidade dos fatos, de maneira justa e consentânea com um Estado Democrático de Direito.
Ora, imaginemos um indivíduo com extensa lista de antecedentes criminais, contando com diversos inquéritos instaurados contra si, muitas vezes pelo mesmo crime, o que também é indicativo de um desvio de personalidade, sendo que tais investigações resultaram em denúncias pelo Ministério Público e até em condenações em primeira instância, será mesmo que tudo isso não significa absolutamente nada? Será que o magistrado realmente não pode sopesar essas circunstâncias no momento de fixar a pena base?
Com todo respeito aos entendimentos em sentido contrário, mas defendemos que esse histórico do agente não pode ser desprezado, o que é subsidiado pelo princípio da isonomia e, sobretudo, pelo princípio da individualização da pena. Parece-nos que, ao fechar os olhos para essas circunstâncias, estaríamos desvalorizando as próprias instituições encarregadas da persecução penal. Se a Polícia Judiciária, Ministério Público e, às vezes, até o Poder Judiciário vislumbraram a culpa de determinada pessoa, como não levar isso em consideração?!
Consigne-se, todavia, que, no que se refere aos inquéritos policiais, entendemos que os maus antecedentes apenas se caracterizam nos casos em que for formalizado o indiciamento do investigado. Defender o contrário, vale dizer, que a simples existência de inquérito policial seria suficiente para gerar maus antecedentes, constituiria inegável abuso e, mais do que isso, falta de conhecimento sobre a natureza de um procedimento preliminar de investigação.
Em nosso entendimento, o inquérito policial caracteriza-se como uma verdadeira garantia do indivíduo, impedindo que acusações infundadas desemboquem em um processo. Apenas por meio deste modelo investigativo o Estado consegue deixar a fase pré-processual e ingressar na fase processual, buscando, ao final, exercer legitimamente o seu direito de punir.
Com entendimento distinto, mas que se aproxima da tese defendida neste estudo, Paulo José da Costa Junior assevera o seguinte: “Ao serem analisados os antecedentes, serão enfocados aqueles judiciais, que não se acham contemplados pelo Código, como causas legais de agravamento ou atenuação da pena. Serão assim considerados processos paralisados por superveniente extinção da punibilidade: inquéritos arquivados, condenações não transitadas em julgado, processos em curso, absolvições por falta de prova. De grande valia averiguar que se trata de criminoso habitual ou episódico, quando o delito pelo qual estiver sendo julgado for um fato isolado em sua vida precedente.”[4]
Em sentido semelhante, Capez sustenta que a absolvição por falta de provas (art.386, inciso VII, do CPP) também serviria como indicativo dos maus antecedentes do agente, destacando, ainda, que Manzini, Roberto Lyra e Nelson Hungria possuem o mesmo entendimento.[5] Nucci, por sua vez, defende que apenas as condenações com trânsito em julgado que não são aptas a gerar reincidência é que podem caracterizar os maus antecedentes. Contudo, o autor adverte que para efeito processual penal, especialmente no momento de decretação de medidas cautelares (v.g. prisão preventiva), todo o histórico do suspeito deve ser analisado, o que incluiria inquéritos policiais instaurados e processos em andamento.[6]
Outro ponto importante e que é pouco analisado pela doutrina, se refere ao período depurador da reincidência, previsto no artigo 61, inciso I, do CP. Como é cediço, esse dispositivo determina a prescrição da reincidência se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido o período de cinco anos. Vale destacar que o fundamento dessa previsão reside na proibição de penas perpétuas pela Constituição da República.
Da mesma forma, em prevalecendo o entendimento de que os maus antecedentes só se caracterizariam nos casos de condenações transitadas em julgado que não são aptas a gerar reincidência, justamente em virtude da decorrência do período depurador acima mencionado, entendemos que este período também deverá ser aplicado aos maus antecedentes. Explico. Se o fundamento dessa previsão legal é evitar que uma condenação criminal acarrete consequências desfavoráveis perpétuas ao agente, o mesmo raciocino vale para os maus antecedentes, que, aliás, são menos graves do que a reincidência, afinal, o critério trifásico adotado pelo nosso Código Penal constitui uma escala progressiva de gravidade. Assim, não teria cabimento a reincidência perdurar apenas por um determinado período e os maus antecedentes durarem para sempre.
Parece-nos que a única razão que justifique esse tratamento diferenciado se relaciona, justamente, ao fato de que os maus antecedentes traduzem todo o histórico criminal do agente e não apenas aquelas condenações transitadas em julgado que não são aptas a gerar reincidência. Isto, pois, é contraditório analisar os maus antecedentes de maneira restrita e, ao mesmo tempo, defender a sua perpetuidade.
Em conclusão, salientamos que os nossos Tribunais também divergem sobre o tema, sendo que atualmente a questão vem sendo discutida pelo Supremo Tribunal Federal no RE 591054, com repercussão geral. O Ministro Marco Aurélio, relator do RE, defendeu que para efeito de aumento da pena somente podem ser valoradas como maus antecedentes decisões condenatórias irrecorríveis, sendo impossível considerar para tanto investigações preliminares ou processos criminais em andamento, mesmo que estejam em fase recursal. O Ministro ainda destacou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem possuem entendimentos semelhantes. Na oportunidade, o relator foi acompanhado pelos Ministros, Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki e Gilmar Mendes.
A divergência foi aberta, contudo, pelo ministro Ricardo Lewandowski. Segundo ele, o artigo 59 do Código Penal compreende diversos aspectos que devem ser considerados pelos juízes para dosar a pena, entre os quais a culpabilidade, os antecedentes, a conduta pessoal e a personalidade do sentenciado. “Esse artigo entrega ao prudente arbítrio do juiz a possibilidade de dosar a pena de maneira a fazê-la suficiente para a reprovação e prevenção do crime”, argumentou. No mesmo sentido, votaram as Ministras, Rosa Weber e Carmen Lúcia, e o Ministro, Luiz Fux.
Por enquanto, só nos resta esperar a decisão final a ser proferida pelo nosso Tribunal Supremo. Não obstante, deixamos aqui nossa posição no sentido de que a existência de inquéritos policiais com indiciamento do suspeito e processos criminais em andamento não podem ser desprezados pelo julgador, devendo, portanto, ser utilizados na fixação da pena base.
[2] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. p.166.
[3] No mesmo sentido, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. p.769.
[4] COSTA JUNIOR, Paulo José da. Curso de Direito Penal. p.245.
[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Geral. p.488
[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal – Parte Geral e Especial. p.473.
Francisco Sannini Neto é delegado de polícia, mestrando em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. É professor da Graduação e da Pós-graduação da UNISAL/Lorena
Revista Consultor Jurídico, 25 de junho de 2014
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