“Era uma vez três irmãs, que tinham em comum um dos progenitores: chamavam-se a ciência do Direito Penal, a ciência do Processo Penal e a ciência do Processo Civil. E ocorreu que a segunda, em comparação com as demais, que eram belas e prósperas, teve uma infância e uma adolescência desleixada, abandonada. Durante muito tempo, dividiu com a primeira o mesmo quarto. A terceira, bela e sedutora, ganhou o mundo e despertou todas as atenções”. Assim começa Francesco Carnelutti, que com sua genialidade escreveu em 1946 um breve, mas brilhante artigo intitulado
Cenerentola[1] (a
Cinderela, da conhecida fábula infantil).
O Processo Penal segue sendo a irmã preterida, que sempre teve de se contentar com as sobras das outras duas. Durante muito tempo, foi visto como um mero apêndice do Direito Penal. Evolui um pouco rumo à autonomia, é verdade, mas continua sendo preterido. Se compararmos com o processo civil então, a distância é ainda maior.
Em relação ao Direito Penal, a autonomia obtida é suficiente, até porque, como define Carnelutti, delito e pena são como cara e coroa da mesma moeda. Como o são Direito Penal e Processual Penal, unidos pelo “princípio da necessidade” —
nulla poena sine iudicio — tão bem definido por Gomez Orbaneja.
[2] O Direito Civil se realiza todo dia sem Processo Civil (negócios jurídicos etc.), pois é autoexecutável, tem realidade concreta. O Direito Civil só chama o Processo Civil quando houver uma lide,
carnelutianamentepensada como um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Já no campo penal tudo é diferente. O Direito Penal não é autoexecutável e não tem realidade concreta fora do processo. É castrado. Se alguém for vítima de um crime, a pena não cai direta e imediatamente na cabeça do agressor. O Direito Penal não tem eficácia imediata e precisa, necessariamente, do Processo Penal para se efetivar, pois o processo é um caminho necessário e inafastável para chegar na pena. Por isso, o princípio da necessidade demarca uma diferença insuperável entre penal e civil, já cobrando sua diferença nas condições da ação, como veremos.
O Processo Penal, como a Cinderela, sempre foi preterido, tendo de se contentar em utilizar as roupas velhas de sua irmã. Mais do que vestimentas usadas, eram vestes produzidas para sua irmã (não para ela). A irmã favorita aqui, corporificada pelo Processo Civil, tem uma superioridade científica e dogmática inegável. Tinha razão Bettiol, como reconhece Carnelutti,
[3] de que assistimos inertes a um pancivilismo. E isso nasce na academia, com a famigerada disciplina de “Teoria Geral do Processo” (TGP), tradicionalmente ministradas por processualistas civis, que pouco sabem e pouco falam do Processo Penal e, quando o fazem, é com um olhar e discurso completamente viciado.
Entre os pioneiros da crítica está Rogério Lauria Tucci, que principia o desvelamento do fracasso da TGP a partir da desconstrução do conceito de lide (e sua consequente irrelevância) para o processo penal, passando pela demonstração da necessidade de se conceber o conceito de jurisdição penal (para além das categorias de jurisdição voluntária e litigiosa) e o próprio repensar a ação (ação judiciária e ação da parte).
Outro ícone é Jacinto Coutinho,
[4] para quem a “Teoria Geral do Processo é engodo; Teoria Geral é a do Processo Civil e, a partir dela, as demais”. Ou seja, pensam tudo desde o lugar do processo civil, com um olhar viciado, que conduz a um engessamento do Processo Penal nas estruturas do processo civil. Todo um erro de pensar, que podem ser transmitidas e aplicadas no processo penal as categorias do processo civil, como se fossem as roupas da irmã mais velha, cujas mangas se dobram, para caber na irmã preterida. É a velha falta de respeito, a que se referia Goldschmidt, às categorias jurídicas próprias do processo penal.
Vejamos alguns rápidos exemplos (teria muito mais...) da (dis)torção conceitual e absurdos processuais realizados em nome da Teoria Geral do Processo:
a) No Processo Penal, forma é garantia e limite de poder, pois aqui se exerce o poder de punir em detrimento da liberdade. É um poder limitado e condicionado, que precisa se legitimar pelo respeito às regras do jogo (Alexandre Morais da Rosa). Logo, não me venham falar de ‘instrumentalidade das formas’ e ‘informalismo processual’, pois aqui o fenômeno é completamente diferente.
b) Precisamos abandonar as teorias da ação, pois tudo o que se escreveu desde a polêmica Windscheid– Muther, passando pelas teorias da ação como direito abstrato (Plosz), como direito concreto (Wach) ou direito potestativo (Chiovenda) não pode ser aplicado ao processo penal sem muito ajuste, muita costura, quase uma roupa nova. Como afirmar que ação é um direito público, abstrato e autônomo? Se for assim, eu posso sair daqui e processar alguém diretamente, sem nada de provas, totalmente autônomo e abstrato? No processo civil, sim. No processo penal, nem pensar, pois preciso desde logo demonstrar um mínimo de concretude, de indícios razoáveis de autoria e materialidade. E o juízo de mérito, ainda que superficialmente, é feito desde logo. Portanto, os conceitos de autonomia e abstração têm que ser repensados, senão completamente redesenhados. Mais do que isso, penso que precisamos elaborar uma ‘teoria da acusação’, mas isso é assunto para outra coluna...
c) Dizer que as condições da ação no Processo Penal são interesse e possibilidade jurídica do pedido é um erro histórico. Como falar em ‘interesse’ se aqui a regra é a necessidade? Discutir ‘interesse de agir’ e outros civilismos é desconhecer o que é processo penal. Pior é tentar salvar o ‘interesse’ através do entulhamento conceitual, atribuindo um conteúdo a essa categoria que ela não comporta. Esse é o erro mais comum: para tentar salvar uma inadequada categoria do Processo Civil, vão metendo definições que extrapolam os limites semânticos e de sentidos possíveis. Para salvar uma categoria inadequada não fazem outra coisa que matá-la, mas mantendo o mesmo ‘nome’, para fazer jus a ‘teoria geral’. E a tal “possibilidade jurídica do pedido”? O que é isso? Outra categoria inadequada, até porque, no processo penal, o pedido é sempre o mesmo... Mas e o que fazer para salvar um conceito erroneamente transplantado? Entupo-o de coisas que não lhe pertencem. Falam em suporte probatório mínimo, em indícios razoáveis de autoria e materialidade etc., ou seja, de outras coisas, que nada têm a ver com possibilidade jurídica do pedido. Enfim, temos que levar as condições da ação a sério, para evitar essa enxurrada de acusações infundadas que presenciamos, servindo apenas para estigmatizar e punir ilegitimamente. Juízes que operam na lógica civilista não fazem a imprescindível ‘filtragem’ para evitar acusações infundadas. A TGP estimula o acusar infundado (afinal, é direito ‘autônomo e abstrato’) e o recebimento burocrático, deixando a análise do ‘mérito’ para o final, quando, no processo penal, ab initio precisamos demonstrar ofumus commissi delicti (abstrato, mas conexo instrumentalmente ao caso penal, diria Jacinto Coutinho).
d)
Lide penal? Outro conceito imprestável e que não faz qualquer sentido aqui. Inclusive, é um erro falar em ‘pretensão punitiva’, na medida em que o Ministério Público não atua no processo penal como ‘credor’ (cível) que pede a adjudicação de um direito próprio. Ao MP não compete o poder de punir, mas de promover a punição. Por isso, no processo penal não existe lide, até porque não existe ‘exigência punitiva’ que possa ser satisfeita fora do processo (de novo o princ. da necessidade). O MP exerce uma ‘pretensão acusatória’ e, o juiz, o pode condicionado de punir.
[5]
e) E o conceito de jurisdição? Tem outra dimensão no processo penal, para além do poder-dever, é uma garantia fundamental, é limite de poder, é fator de legitimação, sendo que o papel do juiz no Processo Penal é distinto daquele exercido no processo civil. Por isso, a garantia do juiz natural é mais sensível aqui, até porque, o juiz é o guardião da eficácia do sistema de garantias da constituição e que lá está para limitar poder e garantir o débil submetido ao processo. Dessarte, grave problema existe na matriz da TGP e suas noções de competência relativa e absoluta, desconsiderando que no processo penal não há espaço para a (in)competência relativa. É por isso que estão manipulando a competência no Processo Penal, esquecendo que o direito de ser julgado pelo ‘meu juiz’, competente em razão de matéria, pessoa e (principalmente) lugar, é fundamental. A dimensão do julgamento penal é completamente diferente do julgamento civil, pois não podemos esquecer que o ‘caso penal’ é uma lesão a um bem jurídico tutelado em um determinado lugar. Ou alguém vai dizer que o fato de um júri ser na cidade “A” ou na cidade “B” é irrelevante? Óbvio que não. Mas o que sabe a TGP de crime e júri?
f) Juiz natural e imparcial. A estrutura acusatória ou inquisitória do processo penal é um dos temas mais relevantes e diretamente ligado ao princípio supremo do processo: a imparcialidade do julgador. A posição do juiz é fundante no Processo Penal, desde sua perspectiva sistêmica (e, como tal, complexa) para garantia da imparcialidade. Como ensinam os mais de 30 anos de jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (alô TGP, sabem vocês o que é isso e qual a importância da CADH?), juiz que vai atrás da prova está contaminado e não pode julgar. Logo, não falemos em ‘ativismo’ judicial aqui, por favor.
g) Juiz natural e imparcial II. A prova da alegação incumbe a quem alega? Claro que não! No Processo Penal não existe ‘distribuição de carga probatória’, senão ‘atribuição’ integral ao acusador, pois operamos desde algo que os civilistas não conhecem e tampouco compreendem: presunção de inocência.
h) Juiz natural e imparcial III: Julgar em dúvida razoável é um dilema, especialmente quando os adeptos da TGP resolvem ‘distribuir’ cargas probatórias e, em dúvida, resolvem ‘ir atrás da prova’. Pronto, está criado o problema. O ativismo judicial mata o Processo Penal. Juiz ator, que vai atrás da prova, desequilibra a balança, mata o contraditório e fulmina a imparcialidade. Sim, aqui a situação é bem complexa...Então o que fazer? Compreender que no processo penal muita gente queimou na fogueira (sim, a TGP não conhece Eymerich e o Directorum Inquisitorum) para chegarmos no in dubio pro reo. Sem compreender esse complexo ‘caldo cultural’ e os valores em jogo, nem vale a pena tentar explicar o que é in dubio pro reo, como regra de julgamento, e a presunção de inocência, como regra de tratamento.
i) “Fumus boni iuris” e “periculum in mora”? É impactante ver um juiz (de)formado pela TGP decretar uma prisão preventiva porque presentes ofumus boni iuris e o periculum in mora. Ora, quando alguém é cautelarmente preso é porque praticou um fato aparentemente criminoso. Desde quando isso é ‘fumaça de bom direito’? Crime é bom direito? Reparem no absurdo da transmissão de categorias! E qual é o fundamento da prisão? Perigo da demora? O réu vai ‘perecer’? Claro que não... Mas não faltará alguém para — incorrendo em grave reducionismo — dizer que é apenas ‘palavra’. Mais um erro. Para nós, no Direito Penal e Processual Penal, palavra é limite, palavra é legalidade, as palavras ‘dizem coisas’ e nós trabalhos de lupa em cima do que diz a palavra e do que o interprete diz que a palavra diz (Lenio Streck)... Logo, nunca se diga que é ‘apenas’ palavra (Coutinho), pois a palavra é tudo.
j) Poder geral de cautela? De vez em quando algum juiz ‘cria’ medidas restritivas de direitos fundamentais invocando o CPC (!!) e o ‘poder geral de cautela’ (ilustre desconhecido para o CPP). Mais um absurdo de quem desconhece que o sistema penal se funda no Princípio da Legalidade, na reserva de lei certa, taxativa e estrita. Não se admite criar ‘punição’ por analogia! Sim, mas é isso que fazem os que operam na lógica da TGP.
k) Vou decretar a revelia do réu! Dia desses ouvi isso e perguntei: vai inverter a carga da prova também excelência? Elementar que não. A categoria ‘revelia’ é absolutamente inadequada e inexistente no processo penal, sendo figura típica do processo civil, carregada de sentido negativo, impondo ainda a ‘presunção de veracidade’ sobre os fatos não contestados e outras consequências inadequadas ao processo penal. A inatividade processual (incluindo a omissão e a ausência) não encontra qualquer tipo de reprovação jurídica. Não conduz a nenhuma presunção, exceto a de inocência, que continua inabalável. O não agir probatório do réu não conduz a nenhum tipo de punição processual ou presunção de culpa. Não existe um dever de agir para o imputado para que se lhe possa punir pela omissão.
l) Esse recurso especial/extraordinário não tem efeito suspensivo! Até recentemente, por culpa da TGP, as pessoas eram ‘automaticamente’ presas ao ingressar com esses recursos, porque a Lei 8.038 (civilista...) diz que eles não têm efeito suspensivo. Mas desde quando prender alguém ou deixar em liberdade está situado na dimensão de efeito recursal? Desde nunca! É um absurdo gerado pela cultura da TGP, que desconhece a presunção de inocência!
m) Nulidade relativa. Essa é a fatura mais alta que a TGP cobra do processo penal: acabaram com a teoria das nulidades pela importação do pomposopas nullité sans grief. Tão pomposo quanto inadequado e danoso. Iniciemos por um princípio básico — desconhecido pela TGP, por elementar: forma é garantia. O ritual judiciário está constituído, essencialmente, por discursos e, no sistema acusatório, forma é garantia, pois Processo Penal é exercício de poder e todo poder tende a ser autoritário. Violou a forma? Como regra, violou uma garantia do cidadão. E o tal ‘prejuízo’? É uma cláusula genérica, de conteúdo vago impreciso e indeterminado, que vai encontrar referencial naquilo que quiser o juiz (autoritarismo-decisionismo-espaços impróprios de discricionariedade, conforme Lenio Streck). Como dito, no processo penal existe exercício condicionado e limitado de poder, sob pena de autoritarismo. E esse limite vem dado pela ‘forma’. Portanto, flexibilizar a forma, é abrir a porta para que os agentes estatais exerçam o poder sem limite, em franco detrimento dos espaços de liberdade. É rasgar o Princípio da Legalidade e toda a teoria da tipicidade dos atos processuais. É rasgar a Constituição. Por culpa da TGP, está chancelado o vale-tudo processual. O decisionismo se legitima na TGP. Eu-tribunal anulo o que eu quiser, quando eu quiser. E viva a teoria geral do processo!
Portanto, em rápidas pinceladas (sim, teria muito mais a dizer) está demonstrada (e desenhada) a necessidade de se recusar a Teoria Geral do Processo e assimilar o necessário respeito às categorias jurídicas próprias do processo penal.
Voltando ao início carnelutiano, Cinderela é uma boa irmã e não aspira uma superioridade em relação às outras, senão, unicamente, uma afirmação de paridade. O Processo Civil, ao contrário do que sempre se fez, não serve para compreender o que é o Processo Penal: serve para compreender o que não é. Daí porque, com todo o respeito, basta de Teoria Geral do Processo.
*Texto alterado às 13h40 do dia 27/6 para correção.
[1] Originariamente publicado na Rivista di Diritto Processuale, v. 1, parte 1, p. 73‑78. Em espanhol, foi publicado com o título “La Cenicienta”, na obra Cuestiones sobre el Proceso Penal, p. 15‑21.
[2] Sobre o tema, sugerimos a leitura da nossa obra “Direito Processual Penal”, 11ª edição, Saraiva, 2014.
[3] Carnelutti teve uma produção científica bastante ampla, prolixa até, escrevendo do Direito Comercial ao Direito Penal, passando pelo Processo Civil e pelo Processo Penal. Natural que cometesse, como de fato cometeu, diversos tropeços nessa longuíssima caminhada dogmática. Também caiu diversas vezes em contradição. Em casos assim, é preciso conhecer também o autor das obras, para não fazer equivocados juízos a priori. Fazemos essa advertência porque, em que pese no final da vida ter feito verdadeiras declarações de amor ao Direito Penal e ao Processo Penal, lutando por sua evolução e valorização, também foi ele um defensor da equivocada Teoria Unitária (Teoria Geral do Processo), pensando ser o conceito de lide algo unificador. Logo, la cenicienta deve ser compreendida nesse contexto (e nesses conflitos científicos que ele mesmo vivia).
[4] Ao longo de toda sua vasta produção científica e, especialmente na obra A Lide e o Conteúdo do Processo Penal, p. 119.
[5] Por isso, se o MP ‘deixar de acusar’, não formulando o pedido de condenação, não pode o juiz condenar. Sobre o tema, consulte-se nosso “Direito Processual Penal’, 11ª edição.
Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS
Revista Consultor Jurídico, 27 de junho de 2014.