sexta-feira, 2 de maio de 2014

Informativo STF - 741

ADI: recebimento direto de inquérito policial e requisição de informações pelo Ministério Público

Em conclusão de julgamento, o Plenário, por maioria, julgou procedente, em parte, pedido formulado em ação direta para declarar a inconstitucionalidade do inciso IV art. 35 da Lei Complementar 106/2003, do Estado do Rio de Janeiro (“Art. 35. No exercício de suas funções, cabe ao Ministério Público: ... IV - receber diretamente da Polícia Judiciária o inquérito policial, tratando-se de infração de ação penal pública”) — v. Informativo 391. O Tribunal reconheceu o caráter procedimental do inquérito e afastou a apontada ofensa à competência privativa da União para legislar sobre direito processual (CF, art. 22, I). Entretanto, entendeu violado o § 1º do art. 24 da CF, porquanto o ato atacado dispõe de forma diversa do que estabelecido pela norma geral editada pela União sobre a matéria, qual seja, o § 1º do art. 10 do CPP [“Art. 10. O inquérito deverá terminar no prazo de 10 (dez) dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 (trinta) dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela. § 1º A autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará autos ao juiz competente”]. Por outro lado, a Corte afirmou a constitucionalidade do inciso V do art. 35 da lei em questão (“V- requisitar informações quando o inquérito policial não for encerrado em trinta dias, tratando-se de indiciado solto mediante fiança ou sem ela”). Asseverou competir ao Ministério Público o controle externo da atividade policial, a teor do disposto no art. 129, VII, da CF (“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: ... VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior”). Vencidos os Ministros Marco Aurélio, Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Celso de Mello, que julgavam improcedente o pleito.

ADI 2886/RJ, rel. orig. Min. Eros Grau, red. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, 3.4.2014. (ADI-2886)


HC N. 119.463-SP
RELATORA: MIN. CÁRMEN LÚCIA
EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PEDOFILIA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA PARA A PRISÃO CAUTELAR. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO PARA A FORMAÇÃO DA CULPA. MATÉRIA NÃO APRECIADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. TRAMITAÇÃO REGULAR DA AÇÃO PENAL NA ORIGEM.
1. As circunstâncias da prática do ato imputado ao Paciente demonstram que os fundamentos adotados nas instâncias antecedentes harmoniza-se com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, que assentou que a periculosidade do agente, evidenciada pelo modus operandi e o risco concreto de reiteração criminosa, são motivos idôneos para a manutenção da custódia cautelar. Precedentes.
2. Alegação de excesso de prazo para a formação da culpa. Questão não apreciada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e também não apreciada no Superior Tribunal de Justiça. Impossibilidade de atuação jurisdicional, sob pena de supressão de instância.
3. Ação penal tramitando na origem em prazo razoável, de forma regular, consideradas as peculiaridades do feito. Iminência de prolação da sentença.
4. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa parte, ordem denegada.


HC N. 114.877-MG
RELATOR: MIN. TEORI ZAVASCKI
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO INCIDÊNCIA NO CASO. CONTUMÁCIA DELITIVA. REPROVABILIDADE DA CONDUTA. PACIENTE MONITORADO POR SISTEMA ELETRÔNICO DE VIGILÂNCIA. CRIME IMPOSSÍVEL. NÃO OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DA POSSE MANSA E PACÍFICA DA COISA FURTADA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA MODALIDADE TENTADA. INVIABILIDADE. ORDEM DENEGADA.  
1. O paciente retirou a coisa móvel da esfera de disponibilidade da vítima e, ainda que por um curto período, teve a livre disposição da coisa, moldura fática suficiente para, na linha de precedentes desta Corte, caracterizar o crime de furto na modalidade consumada.
2. Na hipótese em que o sistema de vigilância não inviabiliza, mas apenas dificulta a consumação do crime de furto, não há que falar na incidência do instituto do crime impossível por ineficácia absoluta do meio (CP, art. 17). Precedentes.
3. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, para se caracterizar hipótese de aplicação do denominado “princípio da insignificância” e, assim, afastar a recriminação penal, é indispensável que a conduta do agente seja marcada por ofensividade mínima ao bem jurídico tutelado, reduzido grau de reprovabilidade, inexpressividade da lesão e nenhuma periculosidade social.
4. Nesse sentido, a aferição da insignificância como requisito negativo da tipicidade envolve um juízo de tipicidade conglobante, muito mais abrangente que a simples expressão do resultado da conduta. Importa investigar o desvalor da ação criminosa em seu sentido amplo, de modo a impedir que, a pretexto da insignificância apenas do resultado material, acabe desvirtuado o objetivo a que visou o legislador quando formulou a tipificação legal. Assim, há de se considerar que “a insignificância só pode surgir à luz da finalidade geral que dá sentido à ordem normativa” (Zaffaroni), levando em conta também que o próprio legislador já considerou hipóteses de irrelevância penal, por ele erigidas, não para excluir a tipicidade, mas para mitigar a pena ou a persecução penal.
5. Para se afirmar que a insignificância pode conduzir à atipicidade é indispensável, portanto, averiguar a adequação da conduta do agente em seu sentido social amplo, a fim de apurar se o fato imputado, que é formalmente típico, tem ou não relevância penal. Esse contexto social ampliado certamente comporta, também, juízo sobre a contumácia da   conduta do agente.
6. Não se pode considerar atípica, por irrelevante, a conduta formalmente típica, de delito contra o patrimônio, praticada por paciente que possui condenações anteriores transitadas em julgado, sendo uma delas por crime contra o patrimônio.
7. Ordem denegada.


Concurso Público - Procedimentos Penais - Ausência de Condenação Irrecorrível - Presunção Constitucional de Inocência - Exclusão do Candidato - Inadmissibilidade (Transcrições)

ARE 733.957-AgR/CE*

RELATOR: Ministro Celso de Mello

EMENTA: CONCURSO PÚBLICO. AGENTE PENITENCIÁRIO. INVESTIGAÇÃO SOCIAL. VIDA PREGRESSA DO CANDIDATO. EXISTÊNCIA DE REGISTROS CRIMINAIS. PROCEDIMENTOS PENAIS DE QUE NÃO RESULTOU CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO. EXCLUSÃO DO CANDIDATO. IMPOSSIBILIDADE. TRANSGRESSÃO AO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO.
- A exclusão de candidato regularmente inscrito em concurso público, motivada, unicamente, pelo fato de existirem registros de infrações penais de que não resultou condenação criminal transitada em julgado vulnera, de modo frontal, o postulado constitucional do estado de inocência, inscrito no art. 5º, inciso LVII, da Lei Fundamental da República. Precedentes.

DECISÃO: Reconsidero a decisão ora agravada, restando prejudicado, em consequência, o exame do recurso contra ela interposto. Passo, desse modo, a apreciar o presente agravo. E, ao fazê-lo, observo que o recurso extraordinário em questão foi interposto contra acórdão que, proferido pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, está assim ementado:

“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO PARA O CARGO DE AGENTE PENITENCIÁRIO. CANDIDATO ELIMINADO NA FASE DE INVESTIGAÇÃO SOCIAL. INEXISTÊNCIA DE SENTENÇA CONDENATÓRIA COM TRÂNSITO EM JULGADO. IMPOSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO DE CANDIDATO. PRECEDENTES DO STF E DESTA CORTE DE JUSTIÇA.
– Preliminar de necessidade de intimação dos outros candidatos na qualidade de litisconsortes afastada, visto que esses não possuem ainda o direito líquido e certo à nomeação.
– No mérito, é entendimento consolidado, quer no Supremo Tribunal Federal, quer nesta Corte de Justiça que a fase de investigação social deve ser realizada com temperança, haja vista que o princípio da presunção de inocência deve suplantar as situações em que o candidato não tenha ainda sentença condenatória.
– No caso de que se cuida, foi constatado que o apelado recebeu a decretação de extinção da punibilidade, em processo que tramitou na 1ª Vara de Delitos de Trânsito e teve arquivada outra ação, que correu na 11ª Unidade dos Juizados Cíveis e Criminais, não se prestando qualquer delas para infirmar a idoneidade do candidato.
– Os honorários e custas foram fixados em consonância com as disposições do art. 20, § 4º, para as causas de pequeno valor, não havendo necessidade de mudança.
– Recursos oficial e voluntário conhecidos, mas desprovidos.” (grifei)

O Estado do Ceará, ao deduzir o apelo extremo em referência, alega que o Tribunal de Justiça local teria transgredido os preceitos inscritos no art. 2º e no art. 5º, “caput” e inciso LVII, da Constituição da República.
O Ministério Público Federal, em manifestação do eminente Procurador-Geral da República Dr. RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS, opinou pelo improvimento do presente recurso de agravo, com apoio em parecer assim ementado:

“AGRAVO REGIMENTAL. CONCURSO PÚBLICO. AGENTE PENITENCIÁRIO. INVESTIGAÇÃO SOCIAL. ELIMINAÇÃO DO CERTAME POR POSSUIR REGISTROS CRIMINAIS. SENTENÇA DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE E ARQUIVAMENTO PELO ÓRGÃO MINISTERIAL. ELIMINAÇÃO QUE VIOLA O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA.
1. A questão constitucional acerca da possibilidade de exclusão de candidato de concurso público por possuir registro criminal, ainda quando tenha obtido transação penal, sentença de extinção da punibilidade ou quando declarada a prescrição da pretensão punitiva do Estado não se identifica, em todos os seus aspectos , com a questão constitucional cuja repercussão geral foi reconhecida nos autos do RE 560.900-RG (tema nº 22), referente à restrição à participação em concurso público de candidato que responde a processo criminal a pressupor a exigência do trânsito em julgado.
2. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, considerado o princípio da presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII), tem reputado inconstitucionais as exclusões de candidatos de concursos públicos pelo fato de ter respondido a processo-crime em que tenha obtido transação penal ou sentença de extinção da punibilidade. Precedentes.
3. Parecer pelo desprovimento do agravo regimental.” (grifei)

Entendo revelar-se inviável o recurso extraordinário a que se refere o presente agravo, eis que a pretensão jurídica deduzida pelo Estado do Ceará mostra-se colidente com a presunção constitucional de inocência, que se qualifica como prerrogativa essencial de qualquer cidadão, impregnada de eficácia irradiante, o que a faz projetar-se sobre todo o sistema normativo, consoante decidiu o Supremo Tribunal Federal em julgamento revestido de efeito vinculante (ADPF 144/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Com efeito, a controvérsia suscitada na presente causa já foi dirimida, embora em sentido diametralmente oposto ao ora sustentado pelo Estado do Ceará, por ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal que reafirmaram a aplicabilidade, aos concursos públicos, da presunção constitucional do estado de inocência:

“CONCURSO PÚBLICO – CAPACITAÇÃO MORAL – PROCESSO-CRIME – PRESCRIÇÃO. Uma vez declarada a prescrição da pretensão punitiva do Estado, descabe evocar a participação do candidato em crime, para se dizer da ausência da capacitação moral exigida relativamente a concurso público.”
(RTJ 183/327, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – grifei)

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. AGENTE PENITENCIÁRIO DO DF. INVESTIGAÇÃO SOCIAL E FUNCIONAL. SENTENÇA PENAL EXTINTIVA DE PUNIBILIDADE. OFENSA DIRETA AO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. MATÉRIA INCONTROVERSA. NÃO INCIDÊNCIA DA SÚMULA 279. AGRAVO IMPROVIDO.
I – Viola o princípio constitucional da presunção de inocência, previsto no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, a exclusão de candidato de concurso público que foi beneficiado por sentença penal extintiva de punibilidade.
II - A Súmula 279 revela-se inaplicável quando os fatos da causa são incontroversos, tendo o Tribunal ‘a quo’ atribuído a eles conseqüências jurídicas discrepantes do entendimento desta Corte.
III - Agravo regimental improvido.”
(RE 450.971-AgR/DF, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI – grifei)

Essa orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal apoia-se no fato de que a presunção de inocência representa uma notável conquista histórica dos cidadãos, em sua permanente luta contra a opressão do poder.
O postulado do estado de inocência encerra, em favor de qualquer pessoa que esteja sofrendo ou que já tenha sofrido persecução penal de que não haja resultado condenação criminal transitada em julgado, o reconhecimento de uma verdade provisória, que repele suposições ou juízos prematuros de culpabilidade, até que sobrevenha – como o exige a Constituição do Brasil (art. 5º, inciso LVII) – o trânsito em julgado da condenação penal. Só então deixará de subsistir, em favor da pessoa condenada, a presunção (constitucional) de que é inocente.
Há, portanto, um momento claramente definido no texto constitucional, a partir do qual se descaracteriza a presunção de inocência, vale dizer, aquele instante em que sobrevém o trânsito em julgado da condenação criminal. Antes desse momento – insista-se –, o Estado não pode tratar os indiciados ou réus como se culpados já fossem. A presunção de inocência impõe, desse modo, ao Poder Público, um dever de tratamento que não pode ser desrespeitado por seus agentes e autoridades, tal como tem sido constantemente enfatizado pelo Supremo Tribunal Federal:

“O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE, AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL.
- A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem.
Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime indigitado como grave, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível – por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) – presumir-lhe a culpabilidade.
Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado.
O princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes conseqüências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.”
(HC 95.886/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Mostra-se importante acentuar que a presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida em que se sucedem os graus de jurisdição, a significar que, mesmo confirmada a condenação penal por um Tribunal de segunda instância (ou por qualquer órgão colegiado de inferior jurisdição), ainda assim subsistirá, em favor do sentenciado, esse direito fundamental, que só deixa de prevalecer – repita-se – com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Vale referir, no ponto, a esse respeito, a autorizada advertência do eminente Professor LUIZ FLÁVIO GOMES, em obra escrita com o Professor VALÉRIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI (“Direito Penal – Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de San José da Costa Rica”, vol. 4/85-91, 2008, RT):

“O correto é mesmo falar em princípio da presunção de inocência (tal como descrito na Convenção Americana), não em princípio da não-culpabilidade (esta última locução tem origem no fascismo italiano, que não se conformava com a idéia de que o acusado fosse, em princípio, inocente).
Trata-se de princípio consagrado não só no art. 8º, 2, da Convenção Americana senão também (em parte) no art. 5°, LVII, da Constituição Federal, segundo o qual toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarada culpada por sentença transitada em julgado. Tem previsão normativa desde 1789, posto que já constava da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Do princípio da presunção de inocência (‘todo acusado é presumido inocente até que se comprove sua culpabilidade’) emanam duas regras: (a) regra de tratamento e (b) regra probatória.
‘Regra de tratamento’: o acusado não pode ser tratado como condenado antes do trânsito em julgado final da sentença condenatória (CF, art. 5°, LVII).
O acusado, por força da regra que estamos estudando, tem o direito de receber a devida ‘consideração’ bem como o direito de ser tratado como não participante do fato imputado. Como ‘regra de tratamento’, a presunção de inocência impede qualquer antecipação de juízo condenatório ou de reconhecimento da culpabilidade do imputado, seja por situações, práticas, palavras, gestos etc., podendo-se exemplificar: a impropriedade de se manter o acusado em exposição humilhante no banco dos réus, o uso de algemas quando desnecessário, a divulgação abusiva de fatos e nomes de pessoas pelos meios de comunicação, a decretação ou manutenção de prisão cautelar desnecessária, a exigência de se recolher à prisão para apelar em razão da existência de condenação em primeira instância etc. É contrária à presunção de inocência a exibição de uma pessoa aos meios de comunicação vestida com traje infamante (Corte Interamericana, Caso Cantoral Benavides, Sentença de 18.08.2000, parágrafo 119).” (grifei)

Disso resulta, segundo entendo, que a consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve prevalecer, até o superveniente trânsito em julgado da condenação judicial, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou que restrinjam, seja no domínio civil, seja no âmbito político, a esfera jurídica das pessoas em geral.
Nem se diga que a garantia fundamental de presunção de inocência teria pertinência e aplicabilidade unicamente restritas ao campo do direito penal e do direito processual penal.
Torna-se importante assinalar, neste ponto, que a presunção de inocência, embora historicamente vinculada ao processo penal, também irradia os seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso de poder e a prepotência do Estado, projetando-os para esferas não criminais, em ordem a impedir, dentre outras graves consequências no plano jurídico – ressalvada a excepcionalidade de hipóteses previstas na própria Constituição –, que se formulem, precipitadamente, contra qualquer cidadão, juízos morais fundados em situações juridicamente ainda não definidas (e, por isso mesmo, essencialmente instáveis) ou, então, que se imponham, ao réu, restrições a seus direitos, não obstante inexistente condenação judicial transitada em julgado.
O que se mostra relevante, a propósito do efeito irradiante da presunção de inocência, que a torna aplicável a processos (e a domínios) de natureza não criminal, é a preocupação, externada por órgãos investidos de jurisdição constitucional, com a preservação da integridade de um princípio que não pode ser transgredido por atos estatais (como a exclusão de concurso público motivada pela mera existência de registros criminais em nome do candidato, sem a nota, porém, do trânsito em julgado da condenação penal) que veiculem, prematuramente, medidas gravosas à esfera jurídica das pessoas, que são, desde logo, indevidamente tratadas, pelo Poder Público, como se culpadas fossem, porque presumida, por arbitrária antecipação fundada em juízo de mera suspeita, a culpabilidade de quem figura, em processo penal ou civil, como simples réu!
Cabe referir, por extremamente oportuno, que o Supremo Tribunal Federal, em julgamento plenário (RE 482.006/MG, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI), e interpretando a Constituição da República, observou, em sua decisão, essa mesma diretriz – que faz incidir a presunção constitucional de inocência também em domínio extrapenal –, explicitando que esse postulado constitucional alcança quaisquer medidas restritivas de direitos, independentemente de seu conteúdo ou do bloco que compõe, se de direitos civis ou de direitos políticos.
A exigência de coisa julgada, tal como estabelecida no art. 5º, inciso LVII, de nossa Lei Fundamental, representa, na constelação axiológica que se encerra em nosso sistema constitucional, valor de essencial importância na preservação da segurança jurídica e dos direitos do cidadão.
Mostra-se relevante acentuar, por isso mesmo, o alto significado que assume, em nosso sistema normativo, a coisa julgada, pois, ao propiciar a estabilidade das relações sociais, ao dissipar as dúvidas motivadas pela existência de controvérsia jurídica (“res judicata pro veritate habetur”) e ao viabilizar a superação dos conflitos, culmina por consagrar a segurança jurídica, que traduz, na concreção de seu alcance, valor de transcendente importância política, jurídica e social, a representar um dos fundamentos estruturantes do próprio Estado democrático de direito.
Em suma: a submissão de uma pessoa a meros inquéritos policiais – ou, ainda, a persecuções criminais de que não haja derivado, em caráter definitivo, qualquer título penal condenatório – não se reveste de suficiente idoneidade jurídica para autorizar a formulação, contra o indiciado ou o réu, de juízo (negativo) de maus antecedentes, em ordem a recusar, ao que sofre ou ao que já sofreu (sem sentença condenatória transitada em julgado) a “persecutio criminis”, o acesso a determinados benefícios legais ou o direito de participar de concursos públicos:

“PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE NÃO CULPABILIDADE (CF, ART. 5º, LVII). MERA EXISTÊNCIA DE INQUÉRITOS POLICIAIS EM CURSO (OU ARQUIVADOS), OU DE PROCESSOS PENAIS EM ANDAMENTO, OU DE SENTENÇA CONDENATÓRIA AINDA SUSCETÍVEL DE IMPUGNAÇÃO RECURSAL. AUSÊNCIA, EM TAIS SITUAÇÕES, DE TÍTULO PENAL CONDENATÓRIO IRRECORRÍVEL. CONSEQÜENTE IMPOSSIBILIDADE DE FORMULAÇÃO, CONTRA O RÉU, COM BASE EM EPISÓDIOS PROCESSUAIS AINDA NÃO CONCLUÍDOS, DE JUÍZO DE MAUS ANTECEDENTES. PRETENDIDA CASSAÇÃO DA ORDEM DE ‘HABEAS CORPUS’. POSTULAÇÃO RECURSAL INACOLHÍVEL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO IMPROVIDO.
- A formulação, contra o sentenciado, de juízo de maus antecedentes, para os fins e efeitos a que se refere o art. 59 do Código Penal, não pode apoiar-se na mera instauração de inquéritos policiais (em andamento ou arquivados), ou na simples existência de processos penais em curso, ou, até mesmo, na ocorrência de condenações criminais ainda sujeitas a recurso.
É que não podem repercutir, contra o réu, sob pena de transgressão ao postulado constitucional da não culpabilidade (CF, art. 5º, LVII), situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário, porque inexistente, em tal contexto, título penal condenatório definitivamente constituído. Doutrina. Precedentes.”
(RE 464.947/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Tal entendimento – que se revela compatível com a presunção constitucional “juris tantum” de inocência (CF, art. 5º, LVII) – ressalta, corretamente, e com apoio na jurisprudência dos Tribunais (RT 418/286 – RT 422/307 – RT 572/391 – RT 586/338), que processos penais em curso, ou inquéritos policiais em andamento ou, até mesmo, condenações criminais ainda sujeitas a recurso não podem ser considerados, enquanto episódios processuais suscetíveis de pronunciamento judicial absolutório, como elementos evidenciadores de maus antecedentes do réu (ou do indiciado) ou justificadores da adoção, contra eles ou o candidato, de medidas restritivas de direitos.
É por essa razão que o Supremo Tribunal Federal já decidiu, por unânime votação, que “Não podem repercutir, contra o réu, situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário, especialmente naquelas hipóteses de inexistência de título penal condenatório definitivamente constituído” (RTJ 139/885, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
O exame da presente causa evidencia que o acórdão impugnado em sede recursal extraordinária ajusta-se à diretriz jurisprudencial que esta Suprema Corte firmou na matéria em análise, o que desautoriza, por completo, a postulação recursal deduzida pelo Estado do Ceará.
Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, conheço do presente agravo, para negar seguimento ao recurso extraordinário, eis que o acórdão recorrido está em harmonia com diretriz jurisprudencial prevalecente nesta Suprema Corte (CPC, art. 544, § 4º, II, “b”, na redação dada pela Lei nº 12.322/2010).

Publique-se.
Brasília, 06 de dezembro de 2013.

Ministro CELSO DE MELLO
Relator

*decisão publicada no DJe de 12.12.2013

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