Novos tempos, ideias velhas.
Renasce com força entre nós uma novidade paradoxalmente antiga: a proposta de privatização de parte do sistema prisional, agora sob o nome engenhoso de parcerias público-privadas (PPPs).
Sob esse título, parte da população prisional seria recolhida em estabelecimentos construídos e administrados por empresas privadas que, por contratos vintenários ou trintenários, em contrapartida receberiam do Estado pagamento por vaga contratada. Com a Administração Pública, outrossim, remanesceriam os serviços de vigilância e disciplina, bem como – a exemplo do que ocorre com o sistema de saúde pública – o atendimento da população prisional numericamente excedente, e a que, por qualquer razão disciplinar mais problemática, não se adapte aos assépticos presídios das empresas privadas.
Vários Estados brasileiros anunciam triunfalmente projetos dessa ordem como se fossem empreendimentos magníficos. Candidaturas políticas inscrevem tais projetos em seus programas como se fossem plataformas inteligentes. Poucas semanas atrás, nada menos que a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo organizou um evento que tematizava igual proposta, ao mesmo tempo que seus consultores, dizendo-se preocupados com a proteção dos direitos humanos dos presos, defendiam publicamente esses programas.
Por certo todo debate é salutar e enriquecedor. Esse sobre a privatização do sistema prisional não será diferente, desde que, é claro, seja realmente dialógico, aberto, racional e plural, que todos tenham nele voz e espaço.
Já há muito sabemos que o aprisionamento, na sua origem, surgiu também como empreendimento econômico buscando, com a mão de obra gratuita dos presos, vantagens sobre trabalhadores livres, que esboçavam se organizar. Em parte, o aprisionamento também esteve no cerne da empresa colonial. O resultado de tudo isso, como não deixaria de ser, foi o agigantamento e o alastramento extraordinários da prisão como contraponto otimizado da própria fábrica. Portanto, quando falamos em “parceria” entre o Estado e o empresariado, tendo a prisão por tema, certamente não estamos tratando de coisas propriamente originais na experiência histórica mundial.
É certo também que projetos dessa ordem demandam a excelência de uma estrutura pública, sem o que será ingênuo falar em fiscalização, acompanhamento e detalhamento dos recursos dedicados a tais contratos. Entre nós, porém, os interesses privados sempre foram privilegiados indevidamente, em contratações dessa ordem, por ambientes silenciosos de corrupção e opacidade, há séculos. Mesmo hoje há por aí Secretarias de Administração Prisional que, a pretexto sempre insondável da segurança, fecham-se sobre seus próprios dados, até mesmo sobre aqueles que antes tinham por públicos. Pelo Brasil afora surgem, desde logo, diversificadas investigações policiais, bem como ações do Ministério Público sobre a implantação de PPPs em determinados Estados. Até servidores públicos e autoridades pretensamente isentas – porém com incentivos inconfessáveis e com currículos comprometidos com empresas privadas – preconizam a solução como se fosse mágica e criativa.
Independentemente das preferências ideológicas de cada um, o certo é que a privatização sempre se pautou na ideia de expansão do próprio serviço. Tem sido assim na telefonia, na geração e distribuição de energia, na rede de transportes, dentre outras áreas. Também independentemente de nos posicionarmos contra ou a favor de empreendimentos privados, nessas praças econômicas, o certo é que todos sabem que sua filosofia é aquela de expandir cada vez mais seu próprio negócio. Aliás, esse sempre foi o melhor argumento de seus defensores, sem, no entanto, prejudicar os contra-argumentos dos seus críticos.
Cabe-nos, portanto, perguntar se é precisamente isso que queremos para o sistema prisional brasileiro, ou seja, sua expansão. No caso, a privatização implica necessariamente o agigantamento da própria solução prisional, assim como implica gerar interesses específicos ao redor da prisionalização. Implica, em última análise, construir a cultura do aprisionamento, com o patrocínio de sua política expansiva e com a geração de quadros que a prestigiem, preguem e defendam nos campos de debate as coisas comuns. Curiosamente ditos quadros são sempre buscados no próprio pessoal da Administração Pública, especialmente os do sistema público de Justiça e que assim, inclusive, se qualificam junto aos empresários que os empregam e à sociedade civil que os escuta (são, por exemplo, coronéis aposentados, diretores aposentados, adjuntos aposentados, delegados aposentados, procuradores, promotores e juízes aposentados, e assim por diante).
Trata-se, mais do que simplesmente criar prisões, de fincar entre nós a própria indústria do aprisionamento, com toda sua estrutura reprodutiva, que tão bem caracteriza a própria ideia de industrialização. É um processo que, uma vez iniciado, dificilmente pode ser estancado. Basta lembrar que o mesmo acaba de ocorrer, no Brasil, com a indústria de segurança privada que, aliás, também tem no policiamento público a fonte inesgotável do seu pessoal. Reproduzir e expandir são lógicas íntimas do capital e processos que melhor o definem. Mas são também verbos, absolutamente impróprios, quando se trata de aprisionar seres humanos.
EDITORIAL: A quem interessa industrializar a prisão? Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 201, p. 1, ago. 2009.
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