Sabiamente ensina um singelo dito popular que “a pior cegueira é a daquele que não quer ver”. E como exsurge verdadeiro seu conteúdo, quando se verifica o infeliz e por que não dizer, “hediondo”, entendimento jurisprudencial que perdurou tanto tempo, inclusive no Supremo Tribunal Federal, sobre a questão da progressão de regime nos casos abrangidos pela Lei 8.072/90. Insistia-se em não enxergar a flagrante violação ao Princípio da Individualização da Pena. Isso até o momento em que uma alteração na composição da corte constitucional brasileira possibilitou uma mudança, ainda que tardia, quanto ao entendimento da questão, declarando o regime integral fechado inconstitucional. No seguimento surge a Lei 11.464/07, que adapta a Lei 8.072/90 ao sistema constitucional, passando a permitir a progressão de regime, ainda que mediante regras mais restritivas do que nos casos que não envolvem crimes hediondos.
Superada, pelo menos até o surgimento de mais um diploma de “terrorismo penal”, a questão da incompatibilidade do regime integral fechado predeterminado legalmente com o Princípio da individualização da Pena, é oportuna uma abordagem do tema sob o ponto de vista da harmonia e mesmo governabilidade do Sistema Prisional em confronto com essa espécie de restrição inconstitucional, visando, quem sabe, “abrir os olhos” daqueles que insistem em não enxergar os malefícios de um direito penal irracional, desenvolvido em afronta aos princípios básicos que o deveriam reger.
Mais do que qualquer aspecto, o problema da progressão de regime torna-se uma questão penitenciária.
É claro que a Lei dos Crimes Hediondos e outras correlatas não puderam pôr cobro e nem mesmo reduzir a criminalidade violenta (muito ao contrário). Seus efeitos foram funestos no Sistema Prisional, aumentando a tensão e o grau de violência internos nos estabelecimentos penitenciários (sentido lato, incluindo as Cadeias Públicas). Ensejaram o surgimento de uma categoria de presos que nada tinham a perder, presos estes os mais perigosos, o que possibilitou o surgimento de lideranças internas que conformaram verdadeiras organizações criminosas no próprio seio do Sistema Prisional erigido para conter a criminalidade. E este é um cancro que demorará muito para ser curado, se é que um dia o será.
O aumento vertiginoso da superlotação, as rebeliões que se tornaram uma constante no cotidiano desses estabelecimentos, foram continuamente minando a legitimidade do Estado ao impor a pena privativa de liberdade, pois que esta não traduzia qualquer ação concreta que não fosse no sentido de deteriorar, ainda mais, o delinquente. Por consequência, não havia proteção da sociedade nem a longo, nem a curto prazo. A longo prazo, o egresso retornava ao seio social mais empedernido e perigoso. A curto prazo, as constantes rebeliões colocavam, dia a dia, em perigo a incolumidade dos próprios presos, dos funcionários, da população e do patrimônio público.
Os motins e fugas, logicamente, não foram motivados somente pela eliminação do Sistema Progressivo nos Crimes Hediondos. No entanto, este foi certamente um fator importantíssimo no fomento dessas condutas. Qualquer um que tenha tido contato com o Sistema Prisional na década de 90 e faça uma breve comparação com a situação atual pode perceber uma nítida mudança na frequência de rebeliões e motins.
Destaca-se a dificuldade no tratamento com esse tipo de preso, o qual nada tinha a perder com seu procedimento intramuros. De qualquer modo, cumpriria a pena no regime integral fechado, independente de seu bom ou mau proceder.
A não ser que se pretenda retornar à barbárie e impingir penalidades corporais nos estabelecimentos penitenciários(1) para manter a ordem e a autoridade, com que espécie de controle pode contar a direção no trato com esse tipo de detento?
Ao mencionar o tema em brilhante palestra proferida no “6º Simpósio Justiça Penal Críticas e Sugestões”(2), Miguel Reale Júnior expôs a criação de presos incontroláveis pelo excesso ou “voluptuosidade” repressiva do legislador contaminado por um “Direito Penal Simbólico”.
Parece que se cumpriu o pensamento de Galileu ao sentenciar que “a verdade é filha do tempo, não da autoridade”, caminhando o entendimento no sentido da retomada do regime progressivo, se não em virtude dos argumentos legais, ao menos pela visão contundente da realidade.
Já ensinava Beccaria(3) que “a moral política não pode proporcionar à sociedade nenhuma vantagem durável, se não for fundada sobre sentimentos indeléveis do homem. Toda lei que não for estabelecida sobre esta base encontrará uma resistência à qual será constrangida a ceder”.
Ora, o regime integral fechado, aplicado àqueles criminosos considerados, ao menos em tese, mais perigosos em face da gravidade das infrações cometidas, eliminando-lhes qualquer esperança de progresso na recuperação escalonada da liberdade, só produz verdadeiros “monstros”, transformando-os em homens que nada têm a perder. A natureza humana nessas situações conduz a uma liberdade de ação em antagonismo frontal ao que se pretende impor ao criminoso (restrição dessa mesma liberdade), pois quem nada tem a perder, tudo pode.
Ilustra com maestria o acima exposto uma passagem literária do escritor Rubem Alves(4), com a qual encerramos, na esperança de que, talvez um dia, os juristas possam alcançar a sensibilidade dos artistas na compreensão do ser humano:
“Tive um amigo, Hans HoeKendijk, um holandês que esteve prisioneiro num campo de concentração alemão. Contou-me de sua experiência com a morte. A guerra já chegava ao fim e os prisioneiros acompanhavam num rádio clandestino o avanço das tropas aliadas e já faziam o cálculo dos dias que os separavam da liberdade. Até que o comandante da prisão reuniu a todos no pátio e informou que, antes da libertação, todos seriam enforcados. ‘Foi um grito de lamentação e horror (...) seguido da mais extraordinária experiência de liberdade que jamais tive em minha vida’, ele disse. ‘Se vou morrer dentro de dois dias, então nada mais importa. Não há sentido em me guardar, não há sentido em ser prudente. Não preciso pretender ser outra coisa do que sou. Posso viver minha verdade, pois nada pode me acontecer. Não preciso de máscaras. Tenho permissão para a honestidade total. Posso ir ao guarda nazista, que sempre me aterrorizou, e dizer a ele tudo o que sinto e penso...Que é que ele pode me fazer?’”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Rubem. O quarto do mistério. Campinas, Papirus, 1995.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Paulo M. Oliveira. Rio de Janeiro, Ediouro, 1996.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir - História da violência nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1996.
NOTAS
(1) Michel Foucault, Vigiar e Punir - História da Violência nas Prisões, passim.
(2) Realizado pelo Centro de Extensão Universitária em 21 de Novembro de 1998, em São Paulo/SP.
(3) BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. p. 24/25.
(4) ALVES, Rubem. O quarto do mistério. p. 222/223.
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia; Pós-Graduado em Direito Penal e Criminologia; Mestre em Direito Social e Professor de Direito Penal, Processo Penal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na Unisal.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Uma questão penitenciária. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 202, p. 17-18, set. 2009.
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