“Que vai fazer agora o governo? Vai demitir o administrador da Casa de Detenção? Daqui a pouco será obrigado a demitir o cidadão que o substituir, e as coisas continuarão no mesmo pé – porque a causa dos abusos não reside na incapacidade de um funcionário, mas num vício essencial do sistema, num defeito orgânico do aparelho penitenciário. E não há de ser a demissão de um administrador que há de consertar o que já nasceu torto e quebrado.”
As palavras de Olavo Bilac, de 1902, soam atualíssimas. Não é à toa que a citação abre a coletânea História das Prisões no Brasil, que reúne, em dois volumes lançados pela editora Rocco, pesquisas originais e trabalhos monográficos sobre o sistema prisional em vários estados no século XIX e início do XX. Organizado por Clarissa Nunes Maia, Flávio de Sá Neto, Marcos Costa e Marcos Luiz Bretas, o livro preenche uma lacuna numa área em que os estudos acadêmicos são raros.
A discussão do processo histórico da prisão no Brasil contribui para debate atual sobre violência e segurança pública. Para a historiadora Marilene Antunes Sant'Anna, autora do artigo Trabalho e conflitos na Casa de Correção do Rio de Janeiro, há muita coisa em comum entre as prisões do passado e de hoje.
"No século XIX a prisão tem o objetivo de regenerar através do trabalho, do isolamento, da religião. Hoje se percebe que ainda é esse o objetivo. O ideal de recuperação para juristas e sociólogos é a oferta de trabalho, não é só castigo e exclusão. Mas não há a mínima condição, porque nunca houve política pública para isso. A prisão sempre foi um problema para sociedade. O seu mundo é estático", explica.
De acordo com a historiadora, o livro mostra que esse é um caminho que pede mudança, no sentido de chamar a atenção para o fato de que está se lidando com gente. "Antes eram escravos, hoje são jovens envolvidos com o tráfico. O Estado tem um papel que continua não cumprindo desde o século XIX", afirma Marilene.
Já nasceram tortas
Na Introdução, os organizadores afirmam que as prisões modernas já nascem percebidas como tortas e quebradas, como descreveu Bilac, mas mesmo assim perdura uma esperança de que possam funcionar bem, preparando aqueles que se desviaram de condutas socialmente aceitas para o seu retorno ao convívio social. Afinal, se não for a prisão, o que será? Enquanto isso, elas continuam relegadas ao abandono.
“Escrever a história da punição e do encarceramento no Brasil é contribuir para a compreensão de um tema que persiste em constranger o sistema democrático da sociedade. Parece que se está em uma permanente reforma penal que jamais será concluída”, dizem. Segundo os autores, a justiça no Brasil mantém uma predileção pela prisão em regime fechado.
Eles lembram que a ditadura militar trouxe a prisão para a realidade acadêmica, ao prender e torturar pessoas próximas, das mesmas origens sociais, que os pesquisadores. Com isso, tomou corpo um discurso sobre os direitos humanos na prisão, mas sem a crítica radical do modelo de punição, vigilância e correção. Segundo os pesquisadores, essa ambiguidade continua.
De acordo com o historiador José Murilo de Carvalho, que assina a orelha do livro, o comportamento considerado antissocial era punido com tortura, exílio, escravização ou morte até o século XVIII, quando foram introduzidos a pena privativa de liberdade e os sistemas carcerários, também sempre controversos.
“Não podia ser mais oportuna a publicação desses trabalhos pioneiros num país em que 400 mil apenados ainda são tratados de maneira aviltante nas prisões, de onde voltam à sociedade ainda mais degradados do que quando entraram, num país em que apenas alguns poucos privilegiados têm direito a tratamento carcerário decente e em que a justiça igual para todos ainda não passa de distante utopia”, enfatiza Carvalho.
Segundo o historiador, do ponto de vista teórico, a publicação foge da tradição das abordagens reducionistas do tema, com explicações unicausais, e dá atenção às diversas dimensões que o constituem, como a jurídica, a política, a institucional e a humana. Outro mérito destacado é o fato de o livro não se restringir ao estudo da questão prisional no Rio de Janeiro e em São Paulo, contendo também capítulos sobre prisões no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais, na Bahia, em Pernambuco e no Ceará.
Para além de Foucault
Além da diversidade geográfica, a coletânea reúne trabalhos não só sobre a história institucional e o discurso administrativo das prisões como sobre o perfil dos presos e suas formas de interagir com o cárcere. “A história da prisão deve refletir a variedade de matrizes historiográficas e os inúmeros olhares possíveis sobre o mesmo objeto”, explicam os organizadores, que admitem ter como principal influência o legado de Michel Foucault (1926-1984), autor do clássico Vigiar e punir (1975), mas não se limitam ao olhar do filósofo francês.
“Foucault foi muito criticado pela falta de pesquisa em arquivos. Nós historiadores temos a paixão pelo arquivo, pela documentação. E as prisões deixaram arquivos de grande importância, que esse conjunto de estudos deixa evidente”, diz Marcos Luiz Bretas. Segundo ele, o tema das prisões começou a tornar-se importante na historiografia a partir dos anos 1970, mas no Brasil o tratamento do tema ficou quase sempre concentrado na discussão da prisão política.
“O livro procura consolidar o estado das artes e estabelecer um novo patamar para a discussão da história das prisões no Brasil”, afirma.
Marilene Antunes Sant'Anna lembra que um bom grupo de pesquisadores e juristas levanta a bandeira das penas alternativas, mas afirma que ainda não há resultados muito claros nessa área. Para ela, o estado deve reinvestir em trabalho para os presos. "É preciso repensar a oferta de trabalho dentro da prisão, com ofícios diversos que não sejam degradantes", sugere.
Comunidade Segura.
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