Nos mais diversos estratos do mundo jurídico, paulatinamente, ganha fôlego a evocação do princípio da insignificância como veículo hábil a excluir “bagatelas” do tratamento ortodoxo ditado pelo sistema jurídico-penal. Seja-nos permitido ponderar a respeito, sob admoestação clara: a adequada conformação do princípio da insignificância é tudo, menos algo insignificante.
Na monarquia romana, mesmo antes da época dos pretores (356 a.C.), a Lei das XII Tábuas (451-449 a.C.) reservava a intervenção penal a violações que diretamente atentassem contra o Estado (alta traição, subtração ao serviço militar, incitação ao inimigo etc.) (1) . O direito romano distinguia entre infrações penais privadas (delicta privata) e públicas (crimina publica): aquelas, menos graves, entregues à persecução do próprio ofendido, em tribunais civis; estas, de maior intensidade, cometidas à acusação por parte de qualquer do povo, com a obrigatoriedade de o tribunal criminal emitir o veredicto condenatório ou absolutório(2). Uma diretiva clara informava o sistema: lesões de menor relevância deveriam ser equacionadas entre os próprios envolvidos, sem a ingerência do poder público. De minimis non curat praetore.
Num contexto de interação entre política criminal e sistema penal, Roxin alvitrou a transposição da orientação ao direito penal moderno, sob a rubrica de preceito interpretativo ancilar. Os umbrais da criminalidade somente seriam ultrapassados se a conduta ensejasse danos de alguma relevância. Os gravames de minguada expressão ou de bagatela careceriam de densidade suficiente à configuração da tipicidade penal(3).Mesmo um comportamento causador de dano significativo (uma somenos imprudência, e.g.), contanto que ostentasse párvulo desvalor ético, legitimaria a evocação da insignificância(4). “O direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas”, disse-o o saudoso Assis Toledo, entusiasta do princípio, enquanto excludente de tipicidade(5).
A insignificância, nesta visão, não constitui um princípio propriamente dito, é um vetor interpretativo. Sua viga mestra é o grau de maltrato ao objeto jurídico(6).
Todavia, a intensidade de ulceração aos bens penalmente tutelados, em si, parece se ressentir da eficácia propalada. A seletividade penal é incumbência precípua do Legislativo: o que e como criminalizar é uma decisão política. Ao Judiciário, em linha de princípio, não é dado invadir tal seara, sob pena de agressão à tripartição de poderes (CF, art. 2º). Os eventuais pontos de tensão entre os conceitos material e formal de crime, amiúde descortinados no foro criminal(7) ,devem ser equacionados no leito do sistema jurídico legalmente posto. Logo, in exemplis: a) O maior ou menor prejuízo deve ser tomado em conta ao ensejo da fixação da pena-base (consequências da infração, CP, art. 59); b) Quando é o caso, o próprio legislador acresce efeitos à gradação minorada, como na hipótese dos crimes patrimoniais (furto e estelionato privilegiados: redução excepcional de pena: CP, art. 155, § 2.º, e 171, § 1.º); c) Mesmo sem previsão categórica, é possível se considerar a peculiaridade na mensuração da resposta penal, sob a rubrica de atenuante genérica (CP, art. 66); d) À vista da significação do bem resguardado, são fixados os limites da sanção penal, parâmetro idôneo à efetivação da despenalização ou diversificação(8). Há mais. Uma vez presentes os requisitos da incriminação, a sujeição do agente ao jus puniendi – ou mesmo à eficácia dos espaços de consenso do sistema penal (transação penal, sursis processual) – desempenha importante tarefa pedagógica: a todos infunde a consciência de resposta do Estado às violações à lei, tanto mais severa quanto mais intensa. E um minimum de reação estatal em face de condutas penalmente vedadas é condição à harmonia social. Aí, talvez, possa se enxergar a “consideração conglobada da norma” de que fala Zaffaroni(9). Não é ocioso rememorar o risco de a insignificância desaguar em laxismo(10), nenhum direito penal, situação conducente à anomia e ao incremento do crime. A título de exemplo, já se agraciou com o princípio da bagatela a quem se imputava furto de bem (boné) orçado em R$10,00 (dez reais), mesmo referindo o agente antecedentes criminais, inquéritos policiais e processos criminais pendentes(11). Aí, quiçá, com a devida vênia, uma clara mensagem ao agente: basta furtar aos poucos, a conta-gotas, para escapar às malhas do direito penal, máxime porque, ainda na dicção do Pretório Excelso, “para a incidência do princípio da insignificância só se consideram aspectos objetivos” (12). De igual modo, subtração de violão orçado em R$90,00 (noventa reais), sob evocação de lições de São Tomás de Aquino, foi contemplada com exclusão de tipicidade oriunda da bagatela(13). Também peculato envolvendo bem de menor valor não escapou à incidência do princípio da insignificância(14) .
Por outra parte, é possível à insignificância irromper a baliza de mera diretiva de interpretação e alçar foros de princípio de política criminal concreta e geral, sob condições específicas. Na Alemanha reunificada, verbi gratia, sob a égide de um “processo descriminalizador do direito penal”, o gravame de escassa relevância ou de bagatela ostenta aptidão à produção concreta dos seguintes efeitos: a) Submete algumas categorias de crimes patrimoniais – apropriação indébita, furto, receptação, estelionato, abuso de confiança – ao leito da ação penal privada, iniciada sob querela; b) Permite ao Ministério Público diretamente arquivar o procedimento, sem necessidade de pronunciamento judicial, dês que, concorrentemente, não haja interesse público na persecução e seja minguada a culpabilidade do agente; c) Autoriza a retirada provisória da acusação, sob condições e instruções, se fenecer o interesse público na persecução e à medida em que não se opuserem a gravidade e a culpabilidade do infrator(15). Alguns sistemas ensaiam ir mais adiante. Sem explicitar-lhe os parâmetros de operacionalização, outorgam ao princípio da insignificância força genérica de exclusão da tipicidade. Na Polônia um “ato proibido de consequências sociais insignificantes não pode constituir uma ofensa penal” (Código Penal, de 06-06-1997, art. 1º, § 2º). Da mesma forma, o Código Criminal da República da Macedônia (1996) proclama: “o ato deixa de ser crime quando tenha menor significância, em razão da insignificância de suas consequências danosas e do baixo nível de responsabilidade criminal do ofensor” (art. 8°).
De toda sorte, inexiste consenso a respeito da medida em que a criminalidade de pouca monta deva ser excluída da persecução penal. Trata-se de problema ainda sem solução, em vários sentidos. A própria elaboração dogmática carece de bases firmes. Uma diretriz talvez consista em incrementar o tratamento heterodoxo (despenalização e diversificação) e se trasladar crimes patrimoniais de menor relevo para o campo da ação penal privada. Com certeza, não é apropriado cuidar do tema à base de substrato vago ou sob ânimo de ocasião. Nem há de se condescender à intromissão preponderante, no terreno jurídico, de critérios matemáticos/econômicos. No direito, o referencial é o certo ou o errado, ele veicula regras de aplicação absoluta. Já na economia, o norteamento gira em torno do mais ou do menos, de quantidades e de relações: a relatividade é a tônica(16).
Enfim, o princípio da insignificância, caro à ciência penal, não há de ser tratado de modo insignificante.
NOTAS
(1) RUIZ FERNÁNDEZ, Eduardo. Consideraciones en torno a la penalidad en derecho romano. Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad Complutense, n. 88, p. 247-278, 1997.
(2) LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal allemão. Tradução portuguesa de José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C. Editores, 1899, p. 09-19, v. 1.
(3) ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução portuguesa de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 47-48.
(4) ROXIN, Claus. Derecho penal – parte general. Tradução espanhola da 2. ed. alemã por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2006, p. 66, t. 1.
(5) TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 133.
(6) Dentre outros, confira-se MAÑAS, Carlos Vico. O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no direito penal; LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da insignificância no direito penal.; REBÊLO, José Henrique Guaracy. Princípio da insignificância: interpretação jurisprudencial; CALLEGARI, André Luís. O principio da intervenção mínima no direito penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 88, n. 769, p. 456-460, nov. 1999.
(7) MAURACH, Reinhart. Derecho penal – parte general. Atualizada por Heinz Zipf. Tradução espanhola da 7. ed. alemã por Jorge Bofill Genzsch e Enrique Aimone Gibson. Buenos Aires: Astrea, 1994, p. 215-216, t. 1.
(8) “a) Descriminalização: a conduta é extirpada do rol penal e, pois, passa a ser insusceptível de solução na via punitiva; b) Despenalização: a incriminação subsiste, o trâmite processual deságua no édito condenatório. Entretanto, a resposta estatal não mais se materializa à moda clássica (cárcere), sim mediante meios heterodoxos (prestação de serviços, suspensão/interdição de direitos, limitação de fim de semana, semidetenção, etc.); c) Diversificação: também opera à base da tipicidade penal, sem embargo de buscar o equacionamento do conflito por inovador espaço de consenso penal, sem a prolação de édito condenatório (transação penal, sursis processual, etc.)” [ ARRUDA, Élcio. Primeiras linhas de direito penal – parte geral – fundamentos e teoria da lei penal. Leme: BH, 2009, p. 214, v. 1, t. 1].
(9) Zaffaroni, Eugenio Raúl. Manual de derecho penal – parte general. 6. ed. Buenos Aires: Ediar, 1991, p. 385-388 e 474.
“(...) III – Ainda que se considere o delito como de pouca gravidade, tal não se identifica com o indiferente penal se, como um todo, observado o binômio tipo de injusto/bem jurídico, deixou de se caracterizar sua insignificância” (STJ – HC 39.874/RJ – 5. Turma – Rel. p/ acórdão min. Felix Fischer – DJ 29-05-2006, p. 270).
(10) O laxismo penal consiste na “tendência a propor a) solução absolutória quando as evidências do processo apontem em direção oposta, ou b) punição benevolente, desproporcionada à gravidade do delito, às circunstâncias do fato e à periculosidade do condenado, tudo sob o pretexto de que, vítima do fatalismo socioeconômico, o delinquente sujeita-se, quando muito, a reprimenda simbólica” ( MORAES JÚNIOR, Volney Corrêa Leite de; DIP, Ricardo Henry Marques. Crime e castigo: reflexões politicamente incorretas. 2. ed. Campinas: Millennium, 2002, p. 2).
(11) STF – HC 84.687/MS – Rel. Min. Celso de Mello – 2. Turma – j. 26-10-2004.
(12) STF – AI-QQ 559904/RS – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – 1. Turma – DJ 26-08-2005, p. 26.
(13) STF – HC 94770/RS – Relator Min. Joaquim Barbosa – Relator p/ Acórdão: Min. Eros Grau – j. 23-09-2008 – 2. Turma.
(14) STF – HC 87478/PA – Rel. Min . Eros Grau – j. 29-08-2006.
(15) JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal – parte general. Tradução espanhola da 5. ed. alemã por Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Comares, 2002, p. 113.
(16) DAHRENDORF, Ralf. A lei e a ordem. Tradução portuguesa de Tamara D. Braile. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1997, p. 61.
ÉLCIO ARRUDA
Professor de Direito Penal e de Processo Penal. Mestre em Direito. Juiz federal
ARRUDA, Élcio. Insignificância: um princípio nada insignificante. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 202, p. 12-14, set. 2009.
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