domingo, 20 de setembro de 2009

Artigo: Delito de fuga é inconstitucional

“Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída: pena de detenção de seis meses a um ano ou multa.” (artigo 305, da Lei 9.503, de 23/09/1997 - Código de Trânsito Brasileiro).
Referido delito é denominado de fuga à responsabilidade. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos — Pacto de San José da Costa Rica (1969), em seu artigo 8º, declara: “(...) Ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo, a declarar contra si mesmo, ou seja, a autoincriminar-se”. A responsabilidade civil ou criminal do indivíduo que causa um acidente de trânsito não depende de sua não evasão do local.
O fim da norma incriminadora em pauta é perfeitamente alcançável através da aplicação da lei civil (que atribua ao agente responsabilidade pela reparação dos danos que tiver causado) e da lei penal (que descreva como crime a conduta praticada pelo agente envolvido no acidente de trânsito) sem que seja necessária a incriminação da fuga do local. O bem jurídico protegido é alcançável pela simples aplicação destas outras normas, que tornam o agente civil ou criminalmente responsável.
No mesmo sentido, Damásio de Jesus ensina: “A lei pode exigir que, no campo penal, o sujeito faça prova contra ele mesmo, permanecendo no local do acidente? Como diz Ariosvaldo de Campos Pires, ‘a proposição incriminadora é constitucionalmente duvidosa’ (Parecer sobre o Projeto de Lei 73/94, que instituiu o CTB, oferecido ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, 23/07/1996). Cometido um homicídio doloso, o sujeito não tem a obrigação de permanecer no local. Como exigir essa conduta num crime de trânsito?  De observar o artigo 8º, II, g, do Pacto de São José: ninguém tem o dever de autoincriminar-se”.
Penso que o referido tipo penal é inconstitucional, porquanto contraria o princípio pelo qual ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, não sendo razoável, a meu sentir, impor a alguém que permaneça no local do crime para se autoacusar e, por conseguinte, sofrer as consequências penais e civis do ato que provocou. Diz, Guilherme de Souza Nucci, sobre o artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro: “Trata-se do delito de fuga à responsabilidade, que, em nosso entendimento, é inconstitucional. Contraria, frontalmente, o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo — nemo tenetur se detegere.”
“Inexiste razão plausível para obrigar alguém a se autoacusar, permanecendo no lugar do crime, para sofrer as consequências penais e civis do que provocou. Qualquer agente criminoso pode fugir à responsabilidade, exceto o autor de delito de trânsito. Logo, cremos inaplicável o artigo 305 da Lei 9.503/97” (in Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 848).
No mesmo sentido leciona Luiz Flávio Gomes, para quem: “Que todos temos a obrigação moral de ficar no local do acidente que provocamos não existe a menor dúvida. Mas a questão é a seguinte: pode uma obrigação moral converter-se em obrigação penal? De outro lado, sendo legítima a exigência de ficar no local, por que impor essa obrigação apenas em relação aos delitos de trânsito, sabendo-se que o homicida doloso, o estuprador, entre outros, não contam com obrigação semelhante? Ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo, a declarar contra si mesmo, ou seja, a autoincriminar-se”. (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 8).
O dispositivo em questão resulta numa espécie de autoincriminação. De outra parte, ninguém está sujeito a prisão por obrigações civis (ressalvando-se as duas hipóteses constitucionais: alimentos e depositário infiel). No artigo 305 do CTB está contemplada uma hipótese de prisão (em abstrato) por causa de uma responsabilidade civil. Pelas razões invocadas, em suma, há séria dúvida sobre a constitucionalidade do preceito legal em debate” (in Estudos de Direito Penal e Processo Penal, Editora Revista dos Tribunais, 1ª edição - 2ª tiragem, 1999, páginas 46 e 47). Assim, entendo que o referido tipo incriminador (artigo 305 do CTB) ofende o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição Federal e também o princípio da proporcionalidade previsto na mesma Carta Magna, no artigo 5º, caput. Aliás, recentemente o Pleno do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, acolhendo incidente. Clique aqui para ler.
Assim, o delito de fuga à responsabilidade é, pois, inconstitucional, visto que ofende o princípio de que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo.

Luiz Fernando Boller é desembargador substituto, integrante da Câmara Cível Especial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
 
Revista Consultor Jurídico, 21 de agosto de 2009

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