Os órgãos noticiosos veicularam fartamente ao longo dos últimos dias um parecer interno da Advocacia-Geral da União, acolhendo uma análise interna da Polícia Rodoviária Federal determinando o enquadramento dos motoristas que se recusarem a fazer o teste do bafômetro em crime de Desobediência, previsto no artigo 330 do Código Penal.
Posteriormente à publicação pela ConJur do documento, e diante da repercussão que teve, a PRF/MJ manifestou-se à imprensa dizendo que não adotaria o conteúdo de tal parecer. Mas o ocorrido passou a nos incomodar.
A manifestação interna da PRF/MJ à AGU inicialmente pareceu-nos algo normal e corriqueiro, afinal de contas o Estado, por meio de seus órgãos de polícia e fiscalização estará sempre querendo facilitar seu trabalho no controle social e em eterna queda de braços com os cidadãos e seus direitos individuais.
É sabido que o Estado, como ente de força que é, absoluto, armado, não necessita de permissão para vigiar e punir, mas é anteparado em suas vontades pelo direito, que existe para assegurar o cidadão em sua incolumidade diante de seus pares e do ente estatal.
O que realmente preocupa no parecer interno da PRF/MJ corroborado pela AGU é a base construtora da fundamentação de sua opinião, bebendo na mesma fonte que nutre os máximos pilares das garantias individuais e dos direitos fundamentais do cidadão.
Assim, nesta base de onde são extraídas as garantias primordiais do cidadão, utilizou-a o Estado para contra-argumentar, derrocando-as em nome de um interesse maior coletivo (a obrigação de submissão a exame do bafômetro). Este interesse, diga-se, consubstanciado na própria vontade estatal, é um perigoso jogo da interpretação dogmática a desserviço da evolução das garantias individuais que se exporá a seguir.
Não há como não admirar o talento argumentativo dos missivistas do PRF/MJ. O parecer é iniciado dizendo que a Lei 11.705/08 tem o objetivo de diminuir a quantidade de acidentes de trânsito causados por motoristas embriagados.
Citam os missivistas o texto legal que objetiva a tolerância zero de álcool pelos motoristas, pois o consumo de álcool por estes antes de dirigir, como reza a lei, “se flagrados acima de 0,2 gramas de álcool por litro de sangue serão penalizados mediante o pagamento de multa, terão a carteira de motorista suspensa por um ano e ainda terão o carro apreendido. O motorista que for flagrado com mais de 0,6 grama de álcool por litro de sangue deverá ser preso”.
Em sequência, os pareceristas dizem que dentre as três maneiras de se verificar o índice de álcool no organismo — exame de sangue, exame clínico e bafômetro ou etilômetro —, o uso do etlilômetro ou bafômetro é o que tem causado polêmica.
Teleologicamente, a intenção do legislador é a proibição completa para o motorista de fazer uso de qualquer quantidade de álcool antes de dirigir, pois 0,2 gramas de álcool por litro de sangue é atingido por mínimo consumo da substância. Dessa feita, o foco da lei é a tolerância zero, sem preocupações com o perigo concreto e com o estado e o nível de embriaguez do motorista, irrelevantes à infração administrativa.
A lei anterior possibilitava o uso de aparelhos ou outros métodos de verificação do uso prévio de álcool, ao contrário da atual que impõe a análise de álcool no sangue, exclusivamente, por isso o uso do bafômetro é considerado polêmico.
Antes de ingressar na seara dos choques dos direitos fundamentais, é importante que este aspecto em torno de tal aparelho, etilômetro, seja discutido.
Inicialmente, como já é a praxe — e se tornou praxe devido aos legisladores parecem não ler os debates entre os operadores do Direito —, impõe-se a crítica à farra legislativa que toma conta do país, sempre tentando resolver os problemas por meio de leis e não do efetivo cumprimento da legislação em vigor.
O etilômetro poderia ser usado como prova de embriaguez criminosa no antigo diploma legal, revogado pela atual lei seca. O revogado artigo 306 da Lei 9.503/97 dizia com clareza, “conduzir veículo automotor, na via pública, sob influência do álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial à incolumidade pública de outrem”.
A legislação prescrevia que a embriaguez poderia ser atestada por outros métodos além daqueles que atingem a esfera mais intrínseca dos direitos individuais humanos, tais como os de forçar fisicamente o ser humano a fazer algo: colocar a boca em tubo e assoprar ou ainda, extrair à força o sangue humano.
Estes métodos eram suficientes para se comprovar a embriaguez criminosa, haja vista que o artigo revogado falava em “estar sob influência do álcool” , o que poderia ser provado por diversas maneiras, diferentemente do que ocorre hoje, como os próprios pareceristas disseram, pois as atuais embriaguez criminosa e a embriaguez administrativamente proibida são aquelas auferidas acima de 0,6 ou de 0,2 gramas de álcool por litro de sangue, respectivamente. Ou seja, apenas o exame de sangue permite sua atestação.
Assim, forçoso indagar o porquê de argumentarem as autoridades da PRF/MJ e AGU sobre a imposição de um exame que aufere álcool não por litro de sangue, mas por ar expelido, bem como, o mais grave, neste parecer questionado, está a proposta de imposição de prisão por desobediência a quem se recusar a fazer o exame. Detalhe, o resultado do exame auferido pelo aparelho é inócuo ao contexto trazido por esta nova lei.
Se o etilômetro somente é capaz de auferir a quantidade de álcool no ar expelido pelos pulmões e não no sangue humano, a imposição de tal aparelho não somente é ilegal como é aberrante.
Quisesse o governo impor as quedas na trágica taxa de acidentes advindos da embriaguez dos motoristas poderia, à larga, utilizar-se do aparelho polêmico, mas sob a égide da antiga legislação revogada.
Logo é perceptível que não é o uso do aparelho que é polêmico, mas a esdrúxula lei nova, feita, como parece ser um vício neste país, às pressas, para noticiar publicitariamente o governo nos órgãos de mídia.
É evidente que os números de acidentes com motoristas embriagados caíram em razão do gigantesco aumento da fiscalização que se deu, e não em razão da efetividade da lei. O passar do tempo vem demonstrando, em contrapartida, que absolvições e o não reconhecimento, pelo Judiciário, do estado de embriaguez de motoristas — muitos deles completamente embriagados por ocasião de suas interceptações —, que a lei é inócua (por impor ao cidadão fazer algo onde é imperioso o seu consentimento) e que a discussão, agora fomentada pelos próprios PRF/MJ e AGU, está ocorrendo em pontos equivocados.
Deve-se discutir não a forma de prender os motoristas que não querem se submeter ao ato ilegal, mas a modificação da “lambança” legislativa que permita ao agente policial verificar a embriaguez do condutor não somente através do sangue, o que é imposto pela atual lei.
Forçar o cidadão a colocar a boca e soprar em um tubo, chegando às vias de prendê-lo em razão da recusa, sendo que ele será fatalmente absolvido, mesmo que o índice no etilômetro extrapole seu limite máximo de medição, é ilegal e absurdo.
Precioso tempo é empregado exclusivamente em bem da dialética em ponto errôneo, indo-se mais profundamente na busca de elementos para se justificar as ilegalidades, corrompendo-se os próprios pilares da interpretação sobre os direitos fundamentais.
Em 2008 e 2009, o sempre inovador Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e a Universidade de Coimbra, através do Ius Gentium Conimbrigae, promoveu em São Paulo o Curso de Direitos Fundamentais, cuja estrela maior foi o professor J. J. Canotilho, talvez o pensador de maior influência sobre os constitucionalistas de 1988.
O que se extraiu ao longo dos colóquios, e que foi trazido até a discussão pelos pareceristas da PRF/MJ por meio da citação da obra de Robert Alexy, autor extremamemte citado na área dos direitos fundamentais, é o choque, o eterno confronto de direitos fundamentais.
Que fique claro que os pareceristas, ao citarem a inexistência de direitos absolutos, atingem seus objetivos sopesando o interesse público como sendo maior que os direitos individuais, consistente aqui o último na presunção de inocência.
Ao exemplificarem, os pareceristas citam o Pacto de San José da Costa Rica como sendo a origem no Brasil do princípio do Nemo tenetur se detegere, o direito de não fazer prova contra si mesmo.
Os missivistas criticam que tal princípio, ao confrontar o interesse social e a proteção dos direitos coletivos, deveria ser afastado em prol destes, por estar a proteção coletiva acima da proteção individual, e dizem que historicamente o Pacto de San José tem origem em momento histórico de ditaduras na América Latina, em luta de salvaguarda dos direitos humanos para garantir um mínimo de liberdade individual, de expressão, de manifestação pública e ideológica aos cidadãos.
De início, é forçoso lembrar que a própria Constituição Federal trouxe para seu corpo o princípio de não culpabilidade ou de inocência, superando a questão histórica, apontando o norte intransponível em direção a um futuro democrático sem exceções.
Vê-se que jamais na história deste país o Direito Constitucional esteve tão em voga como no momento atual, ao aniversariar os vinte anos da Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal, apesar de elevado a uma quarta instância judicial, tem também exercido com afinco seu papel originário de corte constitucional, pronunciando-se cada vez mais sobre o corpo legislativo inferior e os choques com a Magna Carta.
Nestes choques inevitáveis que deveriam ter ocorrido outrora, a busca pelas previsões constitucionais dos princípios acobertadores dos valores em disputa vieram à tona, surgindo, in casu, a disputa entre direitos da coletividade (motoristas e pedestres) e direitos individuais (motorista que recusa a fazer algo).
O que não é bom fazer, nem mesmo pelo bem da dialética, é desprezar conquistas democráticas construídas sob qualquer realidade histórica, pois se a tutela do direito individual surgiu em um momento de supremacia total do interesse estatal (coletivo), como dito no parecer sob estudo, a história é pródiga em demonstrar que são os direitos e garantias individuais os pilares do Estado Democrático de Direito, e não a supremacia sobre eles do interesse público e coletivo.
Isso porque o interesse estatal não pode ser visto como o interesse público de forma estrita, pois, antes de mais nada, reveste-se de interesse de uma casta de gestores políticos que pode ou não ser a transpiração do interesse público.
Voltando às questões históricas, até porque este aspecto foi levantado pelos missivistas, é bom lembrar que sob a égide do interesse público da Alemanha, no governo nazista, por exemplo, os judeus foram massacrados, num momento de quase totalidade de aprovação popular (havia interesse da casta política gestora e permissividade pública no sentido de aprovação dos atos de governo). As garantias e interesses individuais de cidadãos foram superadas em sopesamento aos interesses coletivos.
Vê-se que tal regra, de supremacia do interesse coletivo, não pode ser usada de forma indiscriminada sem ir ao fundo, à base dos direitos fundamentais, e ver a posição da dignidade da pessoa humana, se esta continua a triunfar ao longo dos choques de interesses.
Tal critério de sopesamento no choque de direitos, sob o critério da proporcionalidade, deverá sempre avaliar a razoabilidade de superação de direitos individuais pelo interesse coletivo.
É importante afirmar também que a presunção de inocência, dentro de nosso ordenamento constitucional, não é superável por nenhum outro interesse, pois não há razoabilidade na reparação de possíveis erros àqueles que sofrem atos de constrição consistentes em “prisão” sem julgamento. Aquele que foi preso ilegalmente poderá receber reparação financeira, mas jamais se extirpará do vitimado pelo ato brutal constritivo da liberdade, o trauma e a ofensa moral do cárcere.
Apenas para finalizar, imaginem o seguinte diálogo:
— Cidadão, encoste aí o seu veículo.
— De onde está vindo o senhor?
— Do hospital, onde acabo de levar a minha filha.
— Assopre aqui neste tubo.
— Por que?
— Porque estou mandando, senão o senhor será preso.
— Eu serei preso porque não quero colocar a minha boca neste aparelho e assoprar neste tubo?
— Isso mesmo.
— Não sou obrigado a colocar minha boca em lugar nenhum que eu não queira. Não assoprarei.
— Então o senhor está preso por desobediência.
Pensemos então, diante do exposto, se não há formas melhores de sermos protegidos dos bêbados ao volante e da truculência estatal no excesso protetivo.
Revista Consultor Jurídico, 21 de setembro de 2009
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