Superior Tribunal Militar
Rec. Crim. nº 2008.01.007539-4 PE
j. 17.2.2009
Voto
Votei vencido, divergindo da douta maioria, pelos motivos que passo a expor.
Após a 2ª Guerra Mundial, em decorrência dos horrores do Nazismo, ao se ver derrotado, o povo da então Alemanha Ocidental, ao estruturar o modelo daquele Estado que surgia, e pelo qual nortearia sua convivência, estabeleceu como fundamento primeiro, em sua Lei Fundamental, o princípio do respeito à dignidade humana. Princípio que, aliás, vinha também consagrado na agora sexagenária Declaração Universal dos Direitos Humanos e que, posteriormente, veio a ser adotado também no Brasil, na Constituição de 1988, como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inc. III da CR).
Em razão da consagração do referido princípio, a Doutrina Penal alemã, sobretudo a partir dos estudos de Hans Welzel, conheceu notória evolução no sentido de adequar o Sistema de Direito Penal ao novo modelo de Estado. Modelo este que se opunha diametralmente aos paradigmas de Estado dos quais decorreram as Escolas Clássica, Positivista e a nefasta escola de Kiel. Digo isso porque, tendo em vista que o Direito Penal é a mais evidente expressão jurídica do modelo de Estado adotado por um povo, a visão sistêmica do Direito Penal segue diretamente os princípios nele adotados, como aliás, ensinava Antonio Luis Chaves de Carmargo, saudoso Professor Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo(1) .A Escola Finalista, bem como o denominado “Funcionalismo Penal” que dela foi decorrente, passou a conceber o Direito Penal a partir de uma gama de novos postulados e princípios que conduziriam ao respeito à dignidade humana. Assim, passou-se a defender um Sistema Repressor que se pautasse pela subsidiariedade e fragmentariedade, visto que a intervenção mínima seria a única coerente com um Estado fundado no respeito da autodeterminação da personalidade. Além disso, seus institutos passaram por verdadeira reformulação doutrinária, visto que deveriam ser condizentes com os fins de um Direito Penal decorrente de um Estado Democrático de Direito.
Neste contexto de idéias, passou-se a não admitir que o sistema repressor punisse condutas que não causassem efetiva lesão ou risco de lesão a bens jurídicos caros à manutenção da vida em sociedade, bens esses previamente eleitos pela Constituição. Em decorrência desse postulado, a fim de flexibilizar o sistema, por obra de Claus Roxin, ressurge o princípio da insignificância, relacionado com o axioma mínima non cura praeter.
No Brasil, por incrível que pareça, no auge do Período Militar, por força do Decreto-Lei 1001, de 21 de outubro de 1969, que instituiu o Código Penal Militar, possibilitou o legislador a absolvição em casos de furto de coisas cujo valor não excedesse a “1/10 do mais alto salário mínimo do país”, o que se considera, de certa forma acertadamente, como uma tentativa de introdução do princípio da insignificância no ordenamento jurídico, precisamente no direito positivo especial (art. 240, § 1º do CPM).
Uma leitura apressada do dispositivo em comento poderia conduzir à errônea conclusão de que o legislador de 1969, mesmo antes da Constituição de 1988, tinha consciência do real significado e de como deveria ser aplicado o princípio da insignificância dentro de um sistema de direito penal fundado na dignidade da pessoa humana.
Entendimento equivocado.
Não se pode conceber como correta a abordagem que o Código Penal Militar faz do princípio da insignificância, que é totalmente incoerente com o sistema penal preconizado pelo Estado Democrático de Direito, instituído a partir de 1988. Em primeiro lugar, observa-se a tentativa de restringir e tornar estática, pela lei, a aplicação de um princípio do direito penal que, por força do próprio fundamento constitucional do qual decorre e, em razão dos princípios filosóficos que determinaram a sua criação, foi criado justamente para flexibilizar o Sistema Penal.
Em seguida, porque, em decorrência da notória influência que o Positivismo exerceu nos juristas brasileiros no século passado, parece ter o legislador confundido o bem jurídico com o objeto do crime, ao reduzir as hipóteses de incidência às lesões patrimoniais que se reduzissem a “1/10 do maior salário mínimo do país”.
Por fim, porque o conceito do bem jurídico denominado patrimônio, que parece ter sido aquele adotado pelo legislador, é um conceito estático, concebido a priori, diverso dos conceitos de bens jurídicos formulados pelos criadores do princípio da insignificância, que têm ligação direta com um sistema de Direito Penal aberto à dinâmica social, que se ocupa muito mais com o conceito material do delito que com aspectos formais da tipicidade.
Por qual razão fiz toda essa digressão?
A resposta é bem simples. O digno representante do Ministério Público Militar insurge-se contra decisão da Exma. Juíza-Auditora substituta da Auditoria da 7ª CJM, que rejeitou denúncia formulada contra o Sd. Ex. J. C. A. S., como incurso no art. 303, §2º, do Código Penal Militar, porque este teria, supostamente, tentado subtrair “20 (vinte) pacotes de flocão milho sabor mil, 20 (vinte) pacotes de macarrão pernambucano, 20 (vinte) garrafas de óleo vila velha e 78 (setenta e oito) sacos de leite naturesse”, avaliados em R$ 215,22 (duzentos e quinze reais e vinte e dois centavos), que teria “economizado” das sobras do rancho para ajudar sua família que estava em necessidade, no interior de Pernambuco, sob os argumentos de que a Jurisprudência desta Corte não permite a incidência do princípio da insignificância e que o crime de peculato não admite o reconhecimento do princípio, em razão de a conduta se dirigir, não só ao patrimônio, como também à Administração Pública. Além disso, afirmou que a denúncia fora rejeitada pela classificação dada aos fatos e que se o fato não fosse crime, nenhuma tentativa haveria de ser punível.
Como é óbvio, isso não tem cabimento!
Acertadamente, como bem ponderou a sentença recorrida, o Excelso Pretório vem sinalizando no sentido de flexibilizar tal entendimento, a ponto de aplicar o princípio em delitos em que o desvalor da ação, ou reprovabilidade do comportamento, dos pacientes seria até maior.
No Habeas Corpus nº 92634/PE, cuja relatora foi a min. Cármen Lúcia, o impetrante, um SO da Aeronáutica, postulava trancamento de ação penal na qual era acusado de ter fraudado controle de listas de hospedagem, causando para a Administração Militar o prejuízo de R$ 75,00 (setenta e cinco reais). Destaca-se, no caso, a fraude cometida em detrimento da Administração.
Já no Habeas Corpus nº 87.478-9/PA, cujo relator foi o min. Eros Grau, o paciente teria se apropriado indevidamente de um fogão avaliado em R$ 455,00 (quatrocentos e cinquenta e cinco reais), e depois ressarcido o valor ao Erário. Destaca-se, nesse evento, o valor da coisa, muito superior ao dos alimentos que supostamente foram objeto da tentativa da espécie no presente caso.
Em ambos os casos de Peculato, o Supremo Tribunal Federal, cassando julgados desta Corte, trancou ações penais em curso, motivando suas decisões sob a égide do Princípio da Insignificância.
Ora, no caso em tela, a conduta do soldado do Exército J. C. A. S. não pode ser considerada penalmente relevante, nem sob o enfoque da lesão ao patrimônio, nem sob o ângulo de desrespeito à Administração Militar.
Qual a expressão, diante de todo o patrimônio da União colocado sob a administração militar, um dos bens jurídicos tutelados pelo tipo do Peculato, de “20 (vinte) pacotes de flocão milho sabor mil, 20 (vinte) pacotes de macarrão pernambucano, 20 (vinte) garrafas de óleo vila velha e 78 (setenta e oito) sacos de leite naturesse”, frutos de sobras que teriam sido poupadas pelo denunciado, cuja falta sequer fora notada pelos responsáveis pelo depósito de alimentos do rancho daquela OM, mesmo sendo depois avaliados em R$ 215,22 (duzentos e quinze reais e vinte e dois centavos)?
Como bem salientou a nobre juíza-auditora prolatora da decisão que rejeitou a denúncia, é totalmente desproporcional e incoerente com um sistema de Direito Penal que se deve pautar pela subsidiariedade e fragmentariedade, sujeitar um indivíduo a uma ação penal por crime cuja pena cominada é de 3 (três) a 15 (quinze) anos de reclusão, quando os referidos alimentos sequer chegaram a sair do âmbito da organização militar e há possibilidade de se resolver satisfatoriamente a questão no âmbito administrativo disciplinar.
Nesse sentido é interessante trazer à colação o magistério de Francisco de Assis Toledo: “Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas. Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa; o descaminho do art. 334, § 1º, d, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato do art. 312 não pode estar dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público em um volumoso processo de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amêndoas; a injúria, a difamação e a calúnia dos arts. 140, 139 e 138, devem igualmente restringir-se a fatos que realmente possam afetar significativamente a dignidade, a reputação, a honra, o que exclui ofensas tartamudeadas e sem conseqüência palpáveis; e assim por diante. (...) Note-se que a gradação qualitativa e quantitativa do injusto, referida inicialmente, permite que o fato penalmente insignificante seja excluído da tipicidade penal, mas possa receber tratamento adequado – se necessário – como ilícito civil, administrativo etc., quando assim exigirem preceitos legais ou regulamentares extrapenais” (Princípios básicos de Direito Penal, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002; p. 134, grifo nosso).
Reputo insustentável o argumento no sentido de que a apreensão dos bens e a ausência de prejuízo para a União levaria à incorreta conclusão de que nenhuma tentativa seria punível. Tentativa de lesão insignificante é tão atípica, ou mais, que o crime consumado, quando irrelevante.
Quanto ao argumento no sentido de que não se tratou apenas de lesão ao patrimônio sob Administração Militar, mas também, de lesão à confiança que a Administração Militar tem em seu pessoal, reputo que este seja inválido e desproporcional diante da possibilidade de efetiva aplicação de sanção administrativa no caso concreto e do objetivo de erradicar a pobreza a que o próprio Estado Democrático de Direito se propõe (art. 3º, inc. III). Haja vista que, elementos há no inquérito policial, no sentido de que o denunciado, bom militar, segundo o depoimento de seus superiores, passava por crise de dificuldades financeiras e que os alimentos apreendidos seriam para alimentar seus familiares residentes em sua terra natal, no interior de Pernambuco.
Sabe-se lá a situação de miserabilidade do soldado que, segundo consta, pedira alimentos para sustentar seu filho recém-nascido, ao seu superior hierárquico. E foi atendido! Aliás, levada às últimas consequências a tese do Parquet das Armas, a conduta do superior hierárquico do denunciado, de permitir que este levasse leite em pó para sua criança não é menos peculato que o caso dos presentes autos, haja vista que o alimento pertenceria ao patrimônio da União sob a Administração Militar. Vícios da ideologia Positivista que ainda impera entre os operadores do direito no Brasil.
Por fim, rebato o argumento no sentido de que a denúncia está formalmente apta, preenchendo os requisitos do art. 77, não ocorrendo as hipóteses de rejeição do art. 78, ambos do CPPM e que a decisão de recebimento da denúncia é pautada em juízo de cognição sumária, voltado tão somente à admissibilidade da ação penal, sendo vedado, ao Juízo de 1º grau, adentrar no mérito da acusação e analisar provas e fatos, pautando-me no mesmo entendimento que tenho sobre a possibilidade de exame de provas em sede de habeas corpus.
No habeas corpus, a jurisprudência já se consolidou, não se admite o exame aprofundado de provas. Mas, não é dado restringir a análise da prova a ponto de se permitir que uma flagrante coação ilegal à liberdade de locomoção se perpetre, determinando uma limitação a uma garantia constitucional individual não autorizada pelo Constituinte Originário. É o que vejo no caso dos autos. Além de insignificante a conduta praticada, não preenchendo a tipicidade material necessária ao recebimento da exordial acusatória, vislumbra-se a possibilidade concreta de furto famélico, praticado em Estado de Necessidade. É nítida a ausência de justa causa para a ação penal.
Ora, se o Supremo Tribunal Federal trancou ações penais em casos análogos, porque não deveria esta Corte confirmar, em sede de Recurso em Sentido Estrito, a rejeição da denúncia neste caso concreto?
Ante o exposto, votei vencido no sentido de conhecer e negar provimento ao Recurso interposto pelo Ministério Público da União, e confirmar a decisão da juíza-auditora da auditoria da 7ª Circunscrição Judiciária Militar, de 12/03/2008, que rejeitou a denúncia oferecida contra o Sd. Ex. J.C.A.S. como incurso no art. 303, § 2º, do Código Penal Militar.
Brasília-DF, 17 de fevereiro de 2009.
NOTA
(1) Sistema de penas, Dogmática jurídico-penal e Política Criminal. São Paulo: Cultural Paulista, 2002; p. 33.
Flavio Flores da Cunha Bierrenbach
Voto vencido
Nenhum comentário:
Postar um comentário