sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Artigo: Termo Circunstanciado feito pela PM é imoral

A recente decisão da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo proibindo a Polícia Militar de lavrar Termos Circunstanciados é uma luz no fim do túnel da esquizofrenia que há tempos tomou conta da política de Segurança Pública em nosso Ppaís, e dá fim ao tratamento demagógico de um tema que deveria ser encarado com a maior seriedade.
O simples endurecimento de penas, a aceitação de que outros órgãos que não as Polícias Civis possam investigar e a lavratura de Termos Circunstanciados pela Polícia Militar têm sido oferecidas, entre outras, como medidas para aumentar a eficiência da resposta penal do Estado da mesma forma que a aprovação automática acaba com o problema de reprovação de alunos da rede pública ou a instalação de lombadas encerra a questão da necessidade de recursos para construir passarelas e educar motoristas e pedestres.
É realmente imoral resolver problemas penais desta forma. Nesses casos, os bens jurídicos envolvidos são os mais importantes de uma sociedade e o suposto ganho de eficiência acontece em detrimento de direitos e garantias. Resta, violado, o princípio constitucional da segurança no seu prisma mais genérico, que é a tranquilidade social, condição para a existência de um regime democrático.
Quando se fala em resposta penal, Termo Circunstanciado e Menor Potencial Ofensivo, não podemos esquecer que estamos tratando da face mais dura do Estado, que é a persecução criminal, tema em que estão em causa bens jurídicos e princípios constitucionais da maior envergadura, que em um Estado Democrático de Direito como o nosso não podem ser desafiados.
O Termo Circunstanciado dá início a um âmbito da persecução criminal chamado pejorativamente de “justiça negociada” em que frequentemente é mais vantajoso admitir uma culpa inexistente por um preço módico a ter que enfrentar um processo kafkiano como o processo penal brasileiro. É certo que não se pode comparar as penas que dali resultam, ou eventual acordo, com a restrição a liberdade, embora essa também possa surgir como consequência de um termo circunstanciado, mas o jus dignitatis dos envolvidos já foi atingido quando se submeteram ao procedimento dos crimes de menor potencial ofensivo.
É por isso que o responsável pela adequação do caso concreto à lei tem que ter formação jurídica, e também um nível de autonomia funcional que o torne imune a injunções políticas e administrativas. Este agente só pode ser o delegado de polícia, cujo cargo, na dicção Constitucional, é privativo de bacharéis em Direito, e cujas decisões o ordenamento jurídico protege contra eventuais constrangimentos. Quando o delegado de polícia atua, o faz avaliando situações concretas para dar-lhes feição jurídica e só deve satisfações à lei e à Constituição, a mais ninguém, e por isto é reconhecido como a única autoridade policial.
Não bastasse a insuficiência técnica, a Polícia Militar ainda está sujeita a um tipo de hierarquia que é completamente incompatível com juízos de valor independentes, e por mais simples que seja um Termo Circunstanciado não se pode perder de vista que a decisão mais importante está em lavrá-lo ou não, dando início, ou não, a um tipo de persecução criminal que inevitavelmente atingirá direitos dos envolvidos. Lembrando que se o suposto autor do fato não concorda em comparecer ao Juizado no momento da lavratura, pode inclusive ser preso em flagrante.
O responsável pelo Termo Circunstanciado tem que ter a liberdade de formar seu convencimento a respeito do fato concreto, e deve poder aplicá-lo sem interferências superiores, o que no caso de uma hierarquia de tipo militar é impensável, aliás, não me consta que os próprios Policiais Militares estejam dispostos a abrir mão deste poder, importante em um confronto armado, por exemplo, mas absolutamente nocivo em se tratando de valoração jurídica de fatos que podem levar ao início de um procedimento criminal.
Em outros termos decisões desta natureza não podem estar nas mãos dos que estão submetidos a uma hierarquia militar porque isto gera insegurança, pondo em risco o princípio democrático e, portanto, é inconstitucional, imoral e engorda.
A Polícia Militar precisa é se preocupar em continuar fazendo bem o seu próprio trabalho que já é grande o suficiente para dignificar a Instituição e seus membros, e ficar feliz por esta parte importante da persecução criminal ter finalmente encontrado o rumo certo em São Paulo, nos restando torcer para que o exemplo seja seguido nos poucos lugares em que se tem persistido neste erro.

Fábio Scliar é delegado da Polícia Federal, mestre em Direito, Estado e Justiça e professor de Direito Constitucional.
 
Revista Consultor Jurídico, 24 de setembro de 2009

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