terça-feira, 6 de maio de 2008

Artigo - Quando a criança é vítima, por Maria Regina Fay de Azambuja*

É comum a violência sexual intrafamiliar praticada contra a criança vir desacompanhada de vestígios físicos, acarretando para o Sistema de Justiça inúmeras dificuldades para desvendar os comunicados e ocorrências que chegam ao Conselho Tutelar e à Delegacia de Polícia, assim como as denúncias que aportam nas Varas Criminais e nos litígios que se deflagram nas Varas de Família, através de disputas de guarda e regulamentação de visitas. A inexistência de vestígios físicos, aliada à falta de testemunhas presenciais, uma vez que a violência sexual intrafamiliar praticada contra a criança geralmente se dá na clandestinidade, levaram os tribunais a valorizar a palavra da vítima, favorecendo a sua exposição a inúmeros depoimentos no afã de produzir a prova e possibilitar a condenação do réu.

Exigir da vítima a responsabilidade pela produção da prova da violência sexual, através do depoimento judicial, como costumeiramente se faz, não seria uma nova violência contra a criança? Estaria a criança vítima obrigada a depor se ao réu é assegurado o direito de calar-se? Estes e outros questionamentos precisam ser enfrentados sob a ótica da Doutrina da Proteção Integral.

Inquirir a vítima, ainda que através de táticas que visam dar outra roupagem ao depoimento, com o intuito de produzir prova e elevar os índices de condenação, não assegura a credibilidade pretendida, além de expô-la a nova forma de violência, ao forçá-la a reviver situação traumática, renovando o dano psíquico produzido pelo abuso. Enquanto a primeira violência foi de origem sexual, a segunda passa a ser na esfera psíquica e institucional, na medida em que se espera que a materialidade, que deveria ser produzida por peritos capacitados, venha ao bojo dos autos através do seu depoimento, sem qualquer respeito às suas condições de pessoa em fase especial de desenvolvimento. Direito de ser "ouvida", como prevê a Convenção (art. 12), não tem o mesmo significado de ser "inquirida". Considerar a "fala" da criança necessariamente não exige o uso da palavra falada, porquanto o sentido da norma é muito mais amplo. A inquirição da criança vítima destina-se à produção da prova, podendo levar o abusador, com quem tem laços afetivos, ainda que distorcidos, à cadeia, recaindo sobre ela a responsabilidade pelo evento. Urge que se interrompa o ciclo da violência que se iniciou no âmbito familiar e que se prorroga para o espaço público em nome de não deixar impune o abusador, pouco importando os estragos que se venha a produzir na vida da criança. Substituir a inquirição da criança vítima pela perícia social, psicológica e psiquiátrica, através de profissionais especializados na área da infância, como prevê a lei processual, mostra-se o caminho mais recomendado para garantir a proteção integral àqueles que ainda não completaram 18 anos, em sintonia com a Constituição Federal e a normativa internacional, da qual o Brasil é firmatário há mais de uma década.

*Procuradora de Justiça, professora na Faculdade de Direito PUCRS.


Zero Hora.

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