sexta-feira, 30 de maio de 2008

Artigo - A lei de imprensa e o STF: abriu-se um buraco negro em nosso ordenamento jurídico?

A decisão proferida pelo ministro Carlos Britto, relator da medida cautelar de argüição de descumprimento de preceito fundamental 130-7 Distrito Federal, em 21 de fevereiro de 2008, tem suscitado polêmica no meio jurídico. A grande indagação que vem à tona é a seguinte: suspensos os tipos penais e as principais normas da Lei Federal n. 5.250/67, abriu-se um “buraco negro” em nosso ordenamento jurídico?

Ou seja, jornalistas que venham a violar a honra alheia estarão imunes ao alcance do ordenamento jurídico-penal? Publicações que tragam dano às pessoas não poderão mais ser objeto de apreensão?

Antes que nos aventuremos em respostas às indagações propostas, urge que alguns pontos sejam colocados:

Estamos sob a égide de uma Constituição Federal que incorporou ao seu texto como princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana (art. 1°, III), a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3°, III), a promoção do bem comum e o banimento dos preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3°, IV).

Ao consagrar os direitos individuais e coletivos, a Constituição previu que é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem (art. 5º, V). Previu ainda que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5º, X).

Sufragou, por outro lado, a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX).

E o art. 220 da Carta Constitucional, finalmente, estabeleceu que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

O § 1º do artigo citado previu que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. E o § 2º, finalmente, estabeleceu que é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Como guardião maior da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal tem a intransferível missão de conciliar toda essa gama de bens, direitos e valores resguardados pela nossa Lei Maior.

Nossa Constituição privilegiou a liberdade de expressão e baniu a censura. Vedou a existência de mecanismos ao pleno exercício dessa liberdade, com ressalvas. Protegeu, também, a honra, a vida privada e a imagem das pessoas.

Induvidoso que muitas disposições da vetusta e ditatorial lei de imprensa estão (e estavam) em manifesto descompasso com a sociedade contemporânea e com os preceitos emanados de nossa Constituição Federal. A lei de imprensa foi concebida nos tempos da ditadura militar, que dominou o País de 1964 a 1984, por longos 20 anos. Democracia e liberdade de manifestação do pensamento não eram o cerne de sua inspiração.

É necessário que se entenda o contexto histórico em que determinada lei foi formulada, para que se possa interpretá-la no avançar do tempo, em harmonia com os valores que pretendeu resguardar, sem nos olvidarmos da Constituição Federal e das tendências da sociedade contemporânea, de massas, que sabidamente não é, em muitos aspectos, a mesma sob cuja sombra se editou a lei de imprensa.

Veio à luz em 1988 uma Constituição Federal que privilegiou os valores democráticos e quis construir uma sociedade livre, justa e solidária, alicerçada num Estado Democrático de Direito.

Por isso, a sociedade e a imprensa livre e agora mais livre testemunharão à história a propriedade da decisão do STF, se prevalecer.

Nem por isso, apesar da suspensão de processos em curso e da vigência das normas penais da Lei de Imprensa, assim como das medidas de busca e apreensão de publicações, do prazo decadencial de 3 meses a contar da notícia ou publicação, para o exercício do direito de queixa ou de representação, dentre outras disposições, ficaram a descoberto da proteção do ordenamento jurídico valores como a honra, a vida privada e a imagem das pessoas.

O Código Penal e o Código de Processo Penal, normas gerais, continuam a incidir para alcançar condutas que eventualmente venham a ocorrer enquanto suspensas aquelas normas da lei especial, por força da decisão do STF.

E se o intuito do STF foi compatibilizar a liberdade de imprensa com os rumos traçados pelo Poder Constituinte em 1988, não foi do propósito da Suprema Corte, por certo, deixar expostos a ataques, violações e fora da proteção do ordenamento jurídico outros valores com os quais também se preocupou explicitamente nossa Constituição Federal. Não se pode ampliar o alcance da decisão do STF, sob pena de insegurança jurídica e de criarmos, ao sabor da imaginação de cada intérprete, inexistente “buraco negro” em nosso ordenamento jurídico-penal.

Assim, não há dúvida de que o jornalista que difamar, caluniar ou injuriar alguém, pela imprensa escrita, falada, televisiva ou pelos portais da Internet, incorrerá em figura típica prevista em nosso Código Penal (arts. 138 a 140), cuja vigência em nenhum momento foi afastada, nem mesmo para alcançar a conduta de jornalistas e profissionais da imprensa em geral. O prazo a considerar será agora mais longo, o prazo geral de 6 meses para o exercício do direito de queixa ou de representação, nos termos do art. 38 do CPP, suspensa pelo STF a vigência da norma que previa o prazo pela metade, de 3 meses, na lei de imprensa (art. 56, parte final).

E as publicações de conteúdo ofensivo à honra e à imagem das pessoas, atentatórias à ordem pública, que contenham manifestações de conteúdo racista ou causador de alarma ou perturbação da ordem pública, por exemplo, poderão ser apreendidas com base no poder geral de cautela do magistrado, em sede de medida preparatória de eventual ação penal ou mesmo de ação civil tendente à busca da reparação dos danos produzidos por eventual manifestação da imprensa.

Entender de modo diverso significaria criar uma casta de pessoas imunes à prática de crimes contra a honra previstos em nosso Código Penal, o que seria iníquo, odioso, discriminatório para o bem de poucos e nada compatível com o Estado Democrático de Direito, aquele em que governantes e governados devem estar todos, sem distinção, submetidos ao império da lei. E é também esse mesmo Estado Democrático de Direito que reclama proteção contínua e ininterrupta a bens extremamente caros à dignidade humana, como a honra, a vida privada e a imagem das pessoas.

Não podemos deixar de considerar, finalmente, a advertência ainda atual de Carlos Maximiliano: “Cumpre ao legislador e ao juiz, ao invés da ânsia de revelar inconstitucionalidades, mostrar solicitude no sentido de enquadrar na letra da lei do texto antigo o instituto moderno. Só assim é possível perdurar cento e quarenta anos uma Constituição, como a norte-americana, e um terço de século outra, que foi a brasileira de 1891. Dependem a felicidade, a paz e o progresso do país de que tais leis se não alterem, nem substituam com freqüência. Enquanto a França foi dominada pelo partido de reformas constitucionais, não houve ali governo estável, poder pacificamente transmitido, tranqüilidade, riqueza...” (Hermenêutica e Aplicação do Direito. 13ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 311-312).


Por: Fernando Célio de Brito Nogueira, Promotor de Justiça de Barretos (SP)


Boletim IBCCRIM nº 186 - Maio / 2008

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