Em 28 de fevereiro último, foi lançado, pelo The Pew Charitable Trusts, o relatório One in 100: Behind Bars in America.(1) O documento compila dados sobre o sistema penitenciário estadunidense, reunindo, com um bom tratamento gráfico e uma linguagem direta, algumas informações oficiais relativas aos anos de 2006 e 2007, ao lado dos novíssimos resultados de um levantamento indireto sobre a população penitenciária dos EUA. Apesar de não surpreenderem aqueles que conhecem a realidade prisional estadunidense, os dados chocam por sua magnitude e convidam a todos os interessados no sistema de Justiça Penal e na questão penitenciária para uma reflexão acerca de seus rumos.
Segundo o relatório, os Estados Unidos entraram em 2008 com 2.319.258 adultos(2) — entre homens e mulheres — presos, o maior contingente prisional do mundo, correspondente a mais de cinco vezes a população penitenciária brasileira(3) e a quase três vezes a população penitenciária da Rússia, o segundo colocado mundial.(4) Pela primeira vez na história daquele país, um em cada 100 adultos (99,1, para ser mais preciso) está preso!
O documento confirma ainda o que algumas correntes da Criminologia já vêm apontando há décadas: a Justiça Penal estadunidense é explicitamente seletiva e atua prioritariamente contra alguns grupos étnicos e contra os mais pobres. Assim, se um em cada 106 adultos brancos do sexo masculino está preso, a taxa se eleva para um em cada 36 dentre os chamados “hispânicos” e para um preso em cada 15 negros. No caso do alvo prioritário da justiça penal estadunidense — o jovem negro com idade entre 20 e 34 anos — essa taxa atinge a impensável marca de um preso em cada nove pessoas. A preferência étnica se aplica com a mesma lógica às mulheres, atingindo seu ápice dentre as negras com idade entre 35 e 39 anos, para as quais há uma presa em cada 100 mulheres.
Creio que para nós brasileiros esses números devem causar inveja e servir de alerta. Inveja? Sim, devemos invejar a variedade e a qualidade dos dados disponíveis sobre o sistema penitenciário estadunidense, invejar as informações que eles detêm para subsidiar a formulação de suas políticas e as avaliações de seus programas. Invejemos, ainda, a existência de inúmeras instituições não-governamentais — The Pew Charitable Trusts é somente uma delas — que apóiam o poder público no desenvolvimento de políticas na área penal, sem perder sua capacidade crítica e sua independência. É invejável a possibilidade de uma ONG ter acesso direto aos gestores do sistema penitenciário e coletar, sem maiores dificuldades, dados referentes à população penitenciária de cada Estado. No Brasil, parece-me que o diálogo entre o Estado e a sociedade civil na área penal ainda é muito incipiente, ressalvadas algumas iniciativas promissoras surgidas na última década e a luta incansável da Pastoral Carcerária. De forma geral, o País continua de costas para a grave situação da nossa Justiça Penal e do nosso sistema penitenciário.
Por outro lado, o relatório nos alerta quanto aos perigos da trilha que estamos seguindo nessa seara. Os dados revelam com nitidez quais os resultados de uma política criminal sem criatividade, que privilegia o cárcere como via de escape exclusiva para o fenômeno criminal em detrimento de ações para as efetivas mediação e resolução dos conflitos, assim como de qualquer pretensão de reparação e promoção da Justiça para as vítimas. Para aqueles que não enxergam no horizonte brasileiro uma situação parecida com a vivida pelos EUA, vale a pena mais uma breve mirada sobre as estatísticas: durante o ano de 2007 a população penitenciária estadunidense cresceu cerca de 2,3% — um pouco abaixo da média dos últimos 15 anos, que gira ao redor de 3%.(5) Aqui no Brasil, de outro lado, o crescimento em 2007 foi de 5,2% — um número ou muito animador ou muito estranho,(6) já que o crescimento médio dos três anos anteriores (2004, 2005 e 2006) foi de 8,9%.(7) Ou seja, mesmo com uma enorme diferença entre as populações penitenciárias dos dois países, o ritmo do nosso crescimento vem sendo muito superior ao dos Estados Unidos.
Há sinais de que a insustentabilidade daquele modelo já começa a ser reconhecida mesmo dentro dos EUA, onde diversos governos estaduais parecem convencidos da necessidade de uma correção nos rumos de sua política penitenciária. A redução, durante o ano passado, da população penitenciária em 14 dos 50 Estados pode ser resultado dessa nova orientação. Chama a atenção, em especial, a redução da população em quatro dos sete Estados com mais de 50.000 pessoas presas: Michigan, Nova York, Califórnia e Texas. Esses dois últimos dividem a “honra” de possuírem a maior população prisional dos EUA, mas investiram pesadamente, no último biênio, em programas e ações visando à redução das taxas de encarceramento. Qual a receita da maioria dos estados para transformar aquela dura realidade? A união de ingredientes conhecidos dos leitores e das leitoras do Boletim do IBCCRIM: expansão das alternativas ao encarceramento para crimes de menor gravidade, inovação e diversificação no sistema de penas alternativas, flexibilização do tratamento dispensado às violações de liberdade condicional e de cumprimento de penas alternativas e soluções inovadoras para o envolvimento da comunidade na execução penal e para o tratamento do egresso do sistema penal.
No Brasil, tanto a União como as poucas unidades da Federação que parecem trabalhar para que não sigamos pela via estadunidense ainda se ocupam de uma tarefa anterior: dotar a Justiça Penal e o sistema penitenciário de condições mínimas para um funcionamento de qualidade.(8) Uma transformação mais profunda de rumos, que inclua uma verdadeira reformulação nas instituições e na legislação, depende de um debate público que promova mudanças na convicção da sociedade brasileira e, em particular, dos operadores do sistema de Justiça Penal quanto à maneira como devemos lidar com o fenômeno criminal. Nesse sentido, não consigo imaginar como travar tal debate sem informações claras e precisas sobre a nossa realidade penitenciária e sem uma maior aproximação entre o Estado e as instituições não governamentais. Dessa forma, o texto de One in 100: Behind Bars in America nos mostra que mesmo no trágico exemplo dos EUA há elementos sobre os quais devemos nos debruçar com mais cuidado e, quem sabe, dos quais podemos retirar algumas lições importantes para o futuro da sociedade brasileira.
Notas
(1) O relatório pode ser acessado na íntegra em http://www.pewtrusts.org/uploadedFiles/wwwpewtrustsorg/Reports/sentencing_and_corrections/one_in_100.pdf.
(2) Todas as informações do relatório se referem à população adulta, ou seja, com mais de 18 anos.
(3) Segundo informações do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, 422.078 pessoas estavam presas no Brasil em dezembro de 2007.
(4) A Rússia teria, de acordo com o International Centre for Prison’s Studies do King’s College britânico, 888.227 pessoas presas em fevereiro de 2008.
(5) Informações retiradas do site do Bureau of Justice Statistics em março de 2008.
(6) Agradeço a Pedro Abramovay pela lembrança de que a mudança de orientação do STF quanto à execução das penas dos condenados por crimes hediondos possa explicar em parte esse novo patamar e talvez possa confirmar a idéia de que se trata efetivamente de uma notícia alvissareira. A conferir.
(7) Segundo dados do Ministério da Justiça, disponíveis em março de 2008. Tenho motivos para supor que os números relativos aos últimos anos são mais confiáveis do que os anteriores, razão pela qual não recuo para além de 2004. Os dados para os últimos 15 anos, como utilizado no que diz respeito aos EUA, nem existem para o caso brasileiro.
(8) Não se assume aqui a idéia de que a justiça penal e o sistema penal estadunidenses sejam um exemplo de funcionamento, porém a comparação entre as condições de uma cela nos EUA e no Brasil ou mesmo entre os programas de saúde e educação ofertados às pessoas presas lá e cá servem para ilustrar as diferenças existentes entre essas duas realidades.
Por: Ivo da Motta Azevedo Corrêa
Advogado, mestrando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UNB) e foi diretor de Políticas Penitenciárias do Ministério da Justiça entre 2006 e 2007
Boletim IBCCRIM nº 186 - Maio / 2008
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