O Direito Penal fascina não só os seus operadores, como, antes de mais nada, a própria sociedade. Esse especial interesse advém, no segundo caso, de duas importantes constatações: (i) a verdade não existe, exigindo-se detida análise do caso concreto, a partir da reconstrução argumentativa do comportamento do agente; e (ii) questões de natureza penal despertam em todos nós sentimentos primitivos.
Justamente diante dos mencionados interesses envolvidos, é inegável uma dada tensão histórica na relação entre os operadores do Direito Penal e a sociedade, relação esta freqüentemente intermediada pelos meios de comunicação. E a despeito da importância da imprensa no contexto democrático, como instrumento de informação e até de reflexão, vem merecendo especial atenção, nas palavras de Dalmo de Abreu Dallari, “o comportamento da grande imprensa, que vem dando muita ênfase, ou mesmo prioridade, à violência, até mesmo nos programas ditos recreativos ou pseudoinformativos, tratando com escândalo as ações criminosas, transmitindo ao público a idéia de que todos, sem exceção, estejam onde estiverem, estão na iminência de sofrer alguma espécie de violência”.(1)
Nesse contexto, ao observarmos o conteúdo das notícias relacionadas à matéria criminal, veiculadas nos diversos meios de comunicação, constatamos, com ingrata surpresa, o papel desempenhado pela mídia em relação ao Direito Penal atual.
Se antes tínhamos uma imprensa que buscava, de forma ativa, influenciar os operadores do sistema jurídico-penal, hoje estamos diante de meios de comunicação que pretendem se substituir aos próprios tribunais, esforçando-se para realizar, por seus próprios recursos, um julgamento virtual do caso concreto, de repercussão infinitamente superior à da própria persecução penal.(2) A par da indignação específica daqueles operadores do Direito Penal que, em contato efetivo com o caso concreto, tomam consciência do quanto foi silenciado ou não corretamente enfocado pela imprensa aos telespectadores, causa desconforto geral a negação sistemática de garantias penais e processuais penais fundamentais, a partir de ilações amplamente veiculadas por quem não raras vezes nem sequer possui formação jurídica. De fato, e tratando especificamente do fatídico episódio que recentemente tocou a todos, envolvendo a menina Isabella, caída da janela do apartamento de seu pai em circunstâncias ainda não esclarecidas, já nos acostumamos à rotina diária de análises, reconstituições, tomada de “depoimentos” e “declarações” acerca dos fatos pela imprensa, como se coubesse a ela a missão democrática de esclarecer à sociedade a verdade dos fatos. A nós cabe assistir a tudo, “como entretenimento”, até porque a história veiculada, embora sabidamente comum à realidade criminal, ganha contornos fantásticos e exacerbados de forma repetitiva. Fica exposta a miserável natureza humana.
E justamente em face dos sentimentos primitivos que ligam os indivíduos ao Direito Penal, parece haver uma atração social irresistível a legitimar a atuação da imprensa. Afinal, há uma curiosidade pública, agora já convertida em “comoção pública”, e essa “opinião pública” (ou opinião da imprensa, transmutada em opinião pública) reclama a pronta resolução do caso, com a severa punição de seus agentes, já pré-julgados. A audiência dos programas televisivos dispara, os jornais e revistas não ousam trazer outras matérias em sua capa, que não a violência em discussão. Ganha-se dinheiro e a sociedade resta aparentemente satisfeita.
A imprensa defende-se de eventuais críticas daqueles que se atrevem a questionar sua liberdade a tão duras penas conquistada, afinal não estaria a cometer abuso algum ao noticiar com fidelidade a atuação regular dos órgãos de investigação e persecução penal. Mas será essa lógica tão simples?
Não é esse, porém, o enfoque que se pretende trazer à presente discussão, até porque a revolta, na órbita jurídica, em relação à intolerável supressão de garantias constitucionais fundamentais dos envolvidos já foi amplamente externada por respeitados operadores do Direito.
Na verdade, a questão de fundo vai muito além da mera violação à presunção de inocência dos investigados, ou de sua abusiva exposição, e, nessa linha, verifica-se que a ausência em nosso País de uma reflexão mais profunda sobre a liberdade dos meios de comunicação traz conseqüências ainda mais graves. Trata-se aqui dos efeitos futuros da atuação irresponsável da imprensa ao Direito Penal.
Seja no caso da pequena Isabella, seja no triste episódio que envolveu o garoto João Hélio, ou em tantos outros, a reprodução insistente de fatos pelos meios de comunicação, seguida de seu engrandecimento, leva à distorção da própria percepção da realidade pelo grupo social. Conforme ressalta Santiago Mir Puig, a imprensa amplia a dimensão das desgraças e da violência. Ao se informar sobre fatos negativos que se produzem em todo o mundo, faz-se com que o destinatário da notícia tenha a sensação de que esses ocorrem com mais freqüência do que antes, quando só se conheciam aqueles decorrentes do próprio âmbito de vida pessoal, familiar ou profissional. De outro lado, adverte o referido autor que os meios de comunicação tendem a dramatizar esse tipo de notícias, especialmente quando implicam crianças e adolescentes, como nos casos de pornografia infantil e homicídio. Tudo isso vai aumentando a sensação de insegurança e de vulnerabilidade, e se traduz em uma maior demanda de intervenção por parte do Direito Penal.(3)
Voltando à discussão do “caso Isabella”, até mesmo as crianças, grandes alvos de programas televisivos nos períodos em que estão em casa, sozinhas ou em companhia dos pais, estão expostas a essa sensação absoluta de insegurança, e se perguntam se podem estar sujeitas aos mesmos fatos. Já se fazem apostas, no meio jurídico, sobre o eventual advento de novos dispositivos penais, voltados a responder de forma mais eficaz à conduta de arremessar o filho pela janela. Aumentam-se as penas, diminuem-se os pressupostos de punibilidade do agente. Em suma, nada de novo num processo legislativo que se revela cada vez mais casuístico.
Não parece haver dúvidas quanto à caracterização da sociedade atual, pós-moderna, como uma sociedade de risco, na esteira do estudo do sociólogo Ulrich Beck.(4) Nesse contexto de maior vulnerabilidade, verifica-se uma tendência de elevada sensibilidade ao risco, ou, dito em palavras mais simples: a vivência subjetiva dos riscos acaba por ser claramente superior à sua própria existência objetiva. E essa sensação de insegurança acaba sendo potencializada pela imprensa, conforme adverte Jesús-María Silva Sánchez: “Resulta ineludible la puesta en relación de la sensación social de inseguridad con el modo de proceder de los médios de comunicación. Estos, por un lado, desde la posición privilegiada que ostentan en el seno de la ‘sociedad de la información’ y en el marco de una concepción del mundo como aldea global, transmiten una imagen de la realidad en la que lo lejano y lo cercano tienen una presencia casi idéntica en la representación del receptor del mesaje. Ello da lugar, en unas ocasiones, directamente a percepciones inexactas; y en otras, en general, a una sensación de impotencia. A mayor abundamiento, por outro lado, la reiteración y la propia actitud (dramatización) con la que se examinan determinadas noticias actúan a modo de multiplicador de los ilícitos y las catástrofes, generando una inseguridad subjetiva que no corresponde con el nível de riesgo objetivo”.(5)
A mesma posição é defendida por Garapon, tratando especificamente da divulgação, pela imprensa, de mortes de crianças, que se convertem em acontecimentos nacionais para uma opinião pública fascinada pela morte e pela transgressão. Sua exasperação pelos meios de comunicação acaba por fazer o cidadão não avisado crer que esse tipo de crime é freqüente, o que não é real.(6)
Essa sensação de segurança, substancialmente aumentada pela imprensa, converte-se em uma pretensão social a que o Estado, por meio do Direito Penal, deve fornecer uma resposta. Assim, frente aos movimentos sociais clássicos de restrição do Direito Penal, aparecem cada vez mais demandas de uma ampliação da proteção penal que ponha fim, ainda que nominalmente, à angústia da insegurança coletiva. E tal aspiração de uma coletividade que se autocompreende antes de tudo como vítima conduz à rejeição de formas e procedimentos. De fato, ao estruturar-se tal demanda social, nem sequer importa que seja preciso modificar as garantias clássicas do Estado Democrático de Direito. Ao contrário, referidas garantias, dentre as quais destacam-se os próprios princípios penais fundamentais e os elementos da teoria geral do delito, relevam-se, no novo contexto, como demasiadamente rígidas, opondo-se, assim, à solução efetiva dos casos concretos.(7)
Dessa forma, ainda, a identificação da maioria social com a vítima do delito provoca importante transformação no âmbito do Direito Penal objetivo: em concreto, perde-se a visão deste como instrumento de defesa dos cidadãos frente à intervenção coativa do Estado. E, assim, a compreensão da lei penal como “magna carta” da vítima sobrepõe-se à concepção clássica do Direito Penal enquanto “magna carta” do agente, conforme expunha Von Liszt, causando reviravolta na ciência penal, a começar do próprio princípio da legalidade.
Finalmente, a insegurança social que clama uma maior intervenção do Estado, por meio de seu instrumento de controle mais drástico, que é o Direito Penal, esbarra na figura dos gestores atípicos da moral (atypische Moralunternehmer)(8), os quais, representando organizações de naturezas diversas, tais como grupos ambientais, feministas, de consumidores ou pacifistas, interferem no processo legislativo para o fim da criação de leis penais que protejam seus respectivos interesses. E aí se verifica que tais demandas de criminalização, em grande medida atendidas pelo legislador, resultam inadequadas, ofensivas a princípios fundamentais do Direito Penal e, o mais grave, mostram-se contraproducentes. Essa materialização da concepção de gestores atípicos da moral, ou de “convicções gerais”, ou ainda da “opinião pública” influenciada pela mídia, por meio de leis penais, leva, frequentemente, a um direito penal casuístico, simbólico e autoritário.(9)
A esse Direito podemos chamar Direito Penal de Emergência,(10) caracterizado pela perda do caráter subsidiário e fragmentário e pela missão de instrumento político de segurança. Alarga-se o âmbito da aplicação do Direito Penal, de modo a conferir a sensação de tranqüilidade social e de um legislador atuante. Essa ganância simbólica, na qual as garantias constitucionais e penais consagradas sucumbem às razões do Estado, que pretende impor o combate ao crime a qualquer custo, tem um alto custo, comprometendo a própria credibilidade do Direito Penal enquanto sistema. Chega-se, portanto, à crise de legitimidade vivenciada pelo Direito Penal na atualidade. Esse retrocesso punitivista, que converte o agente em inimigo social, não soa, portanto, a melhor solução para o enfrentamento da pós-modernidade.
Dessa forma, de nada adianta a imprensa buscar pressionar ou impulsionar processos legislativos em matéria penal, sob pena de engrandecer ainda mais as dificuldades já vivenciadas pelo Direito Penal. Aliás, destacando a freqüência cada vez maior com que uma opinião pública favorável é capaz de desencadear por si só respostas legislativas penais, Diez Ripollés afirma que é certo que a opinião pública é fruto de uma atividade exercida por um grupo de pressão, a mídia. Isso origina uma série de resultados negativos importantes: 1) Dá-se por legítima uma visão simplificada e superficial da realidade social e das conseqüências de sua intervenção sobre ela, em franco dissenso com as exigências relativas ao grau de análise e reflexão dos problemas sociais a fim de justificar uma intervenção penal na sociedade atual; 2) Perdem-se oportunidades de retificação de análises já realizadas, na medida em que desaparece da etapa pré-legislativa um nível de elaboração de decisões, o do grupo de pressão dos especialistas; 3) Outorga-se a hegemonia nesta fase a um único agente social, a mídia, dada a sua capacidade de influir no destaque de um pretenso mal-estar social. E assim se abre uma importante brecha na limitada autonomia que convém ser mantida entre as fases pré-legislativa e legislativa, devido à especial facilidade com que os grupos de pressão políticos e parlamentares podem incidir sobre o conteúdo da opinião pública, condicionando o fluxo de informação por meio do controle direto ou indireto dos detentores dos meios de comunicação.(11)
Ora, não há que se confundir “opinião pública” com política criminal.
Apesar de uma valoração rigorosa da tendência de ampliação e de endurecimento do sistema penal no mundo globalizado implicar uma discussão de maior abrangência, a partir de outros tantos fatores, pode-se, na linha do que foi exposto, já concluir que o clima de violência penal, a exemplo do que se desenvolve nos Estados Unidos nas últimas duas décadas, não há de ser incorporado em sistemas como o brasileiro, que compartilha da tradição jurídica européia. O grande prejuízo advindo da adoção dessa concepção concretiza-se no abandono no núcleo principiológico do Direito Penal a tão duras penas conquistado, em prol de um punitivismo retrógrado. Mais do que isso, a luta contra um Direito Penal de Emergência é a luta pela retomada da legitimidade do Direito Penal, o que só será conseguido com o respeito aos valores fundamentais decorrentes do texto constitucional. Deve-se continuar a defender a intervenção limitada e clara do Direito Penal, nos casos e na proporção de sua necessidade, se se pretender impedir que a sua utilização desmedida o prive de significação e eficácia, justamente nos âmbitos em que sua atuação se revela mais imprescindível.
Não se pretende, de forma alguma, banalizar esse ou qualquer outro episódio, até em respeito aos envolvidos. Mas não é mais tolerável, dentro do que ainda denominamos Estado Democrático de Direito, a banalização generalizada da violência, como mero produto aos olhos de uma sociedade cada vez mais assustada, a partir da conduta antiética e ilimitada da imprensa. Ou nos insurgimos concretamente contra essas práticas, ou teremos que lidar, mais uma vez, com seus efeitos nefastos ao Direito Penal.
Notas
(1) DALLARI, Dalmo de Abreu. “Imprensa Livre e Responsável”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 de agosto de 2006, p. A11.
(2) Nesse sentido, posiciona-se também Nilo BATISTA. “Maus-tratos, omissão imprópria e princípio da confiança em atividades médico-cirúrgicas – o caso da Clínica Santa Genoveva”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 38, p. 271.
(3) MIR PUIG, Santiago. Nuevas Tendências em Política Criminal. Una Auditoría al Código Penal Español de 1995. Buneos Aires: Julio César Faira Editor, 21006, p. 123.
(4) BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo: Hacia una Nueva Modernidad. Trad. Jorge Navarro, Daniel Jiménez e Maria Rosa Borras. Barcelona: Paidós, 1998.
(5) SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La Expansión del Derecho Penal. Aspectos de la Política Criminal en las Sociedades Postindustriales. Madrid: Civitas, 1999, pp. 27-28.
(6) GARAPON. “Juez y Democracia”, Barcelona, 1997, p. 99, apud Jesús-María Silva Sánchez, La Expansión..., ob. cit., p. 29.
(7) Cf. HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la Criminología y al Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1989, pp. 174-175.
(8) SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La Expansión..., ob. cit., p. 47.
(9) V. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación al Derecho Penal Contemporâneo. Barcelona:Bosch, 1992, p. 237; FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione. 4ª ed., Roma-Bari: Laterza, 1997, pp. 462-463.
(10) Conforme denominação de autores italianos, a exemplo de Sérgio Moccia. La Perenne Emergenza. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1997.
(11) DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. La Racionalidad de las Leyes Penales. Madrid: Trotta, 2003, pp. 34-35.
Por Ana Elisa Liberatore S. Bechara, Professora doutora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Boletim IBCCRIM nº 186 - Maio / 2008
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