sexta-feira, 23 de maio de 2008

Artigo - Você tem medo de quê?, por Naele Ochoa Piazzeta*

Há não muitos anos, temíamos a gripe, a tuberculose, as doenças do corpo que, na maioria das vezes, levavam à morte precoce.

Ansiávamos por liberdade, direitos e bens de consumo praticamente inexistentes no Brasil.

Descobrimos as vacinas, a penicilina e tantos outros remédios capazes de propiciar uma vida melhor e mais longa.

Liberdade e direitos foram se robustecendo a partir da derrocada da ditadura, vindo a atingir seu ápice com a Constituição Federal de 1988. Surgiram o Código de Defesa do Consumidor, a Lei dos Crimes Hediondos, a Lei Maria da Penha...

As tecnologias de ponta entraram pelas fronteiras de nosso país e com elas a produção e o acesso a aparelhos eletroeletrônicos, imóveis mais baratos e alimentos diferenciados.

O que nos causava medo foi dominado e o que almejávamos alcançado? Sim, certamente. Mas o medo continua latente, apenas mudou de nome. Os desejos não se extinguiram, mudaram de destinação.

Neste século temos medo de quê? Almejamos o quê?

A resposta é complexa e paradoxal. Complexa porque, se não mais tememos a morte precoce, temos medo de não viver eternamente. As doenças do corpo que tanto nos afligiam foram substituídas pelas doenças da alma, existenciais, conhecidas, banalizadas nas conversas casuais e tratadas com medicamentos. Todos conhecemos o Prozac, a Ritalina, os ansiolíticos. A obrigação de ser feliz não mais nos permite o sofrimento que a viagem interior proporciona e que traz o autoconhecimento imprescindível à nossa condição humana.

Por sermos credores de tantos e amplos direitos, passamos a nos ver como seres deslocados do contexto social. Queremos o que é nosso sem atentarmos para o próximo, nosso igual, também e inafastavelmente merecedor do que nosso egoísmo não permite contemplar.

Por termos tanta liberdade, não sabemos mais que liberdade escolher.

Se antigamente nossa inquietação dizia com o "quero e não posso", hoje deparamos com "o que quero?".

Aí está o paradoxo que deságua nos tantos e muitas vezes desnecessários litígios judiciais. O que provavelmente seria passível de solução através da conversa entre vizinhos, condôminos, cônjuges, filhos e comerciantes, ficando apenas nesses exemplos, necessita de um mediador, quer juiz leigo ou togado.

Os roubos e furtos alcançam índices assustadores. Afinal, os bens de consumo estão aí, a propaganda alardeia sua indispensabilidade. Se não os posso adquirir licitamente, por que não os subtrair de quem os possui? Tenho direitos, tenho direitos... As obrigações não são questionadas.

A violência permeia o tecido social, e o medo que sentimos, hoje, é o medo do "outro", esse desconhecido que habita a casa ao lado, que pede esmolas nos semáforos, que gera e tem o dever legal e moral de cuidar de sua prole e brutalmente a mata, abandona ou estupra.

O inimigo é o outro, esse frágil ser humano condenado à solidão de sua impressão digital.

*Desembargadora do TJRS


Zero Hora.

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