domingo, 4 de maio de 2008

Artigo - O processo de criminalização pela mídia - breves comentários

I - Introdução: crime e criminalização

Para compreender como se dá o processo de criminalização pela mídia é necessário que tenhamos alguns fundamentos bem demarcados. Essa fase é maçante, contudo, indispensável.

Segundo o dicionário Aurélio Eletrônico(1) Século XXI , criminalizar significa considerar crime. Criminalização, portanto, seria, ainda segundo o referido dicionário, o ato ou efeito de criminalizar, o ato de considerar crime. Verifica-se que ambos os vocábulos são derivados do vocábulo crime, com gênese no latim “crimen’ (acusação, queixa, agravo, injúria). No Direito Penal o vocábulo crime, em regra, tem como sinônimo o vocábulo delito. Delito, por sua vez, é vocábulo derivado do latim “delictum” (de “delinquere”) é, em sentido geral, segundo “De Plácido e Silva(2)’, “aplicado para significar ou indicar todo fato ilícito, ou seja, todo fato voluntário, que possa resultar numa reparação, sujeitando aquele que lhe deu causa às sanções previstas na lei penal...”.

A Lei de Introdução ao Código Penal brasileiro (Dec-Lei n.º 3.914/41), em seu artigo 1.º, conceitua crime como sendo “a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativamente ou cumulativamente com a pena de multa”. Por sua vez, o conceito analítico de crime, grosso modo, conceitua o vocábulo crime como sendo a ação ou conduta humana típica, antijurídica e culpável. Nos satisfaz conceituar crime como sendo a ação ou conduta humana proibida por lei sob a ameaça de uma pena.

Neste momento surgem duas questões primordiais:

1.ª) A quem cabe eleger determinada conduta ao ponto de poder designá-la como delito penal ou como crime?

2.ª) O que significa dizer que uma ação ou conduta é típica, antijurídica e culpável?

A resposta à primeira pergunta nos é dada pelo contido no artigo 22, I da Constituição Federal(3) que estabelece competir privativamente à União legislar, entre outros, sobre Direito Penal e Direito Processual Penal. Não podemos olvidar de relatar que o caput do artigo 48(4) da nossa Carta Maior (CF) deixa expresso que cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, dispor sobre todas as matérias de competência da União. Portanto, tendo em consideração que o Congresso Nacional, segundo o artigo 44(5) da Constituição da República, se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, resta certo que a tarefa de dizer quais atos, ações e condutas humanas constituem crime cabe aos Deputados (representantes do povo, segundo o artigo 45 da CF) e aos Senadores (representantes dos Estados e do Distrito Federal, segundo o artigo 46 da CF), com a sanção do Presidente da República.

Vale lembrar que o Brasil, segundo o caput do artigo 1º da Constituição da República(6), constitui-se em um Estado Democrático de Direito, ou seja, um estado que deve ter as suas regras de convivência comunitária positivadas pelo Direito, amplo senso, um estado que deve viver sob o império da lei. Essa é a norma gênese do chamado princípio constitucional da legalidade, expresso pelo disposto no artigo 5.º, II da Constituição Federal(7), o referido princípio é corolário de tal norma e estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Ensina o douto da Universidade Federal do Paraná, o Professor Juarez Cirino dos Santos(8), em sua obra “Direito Penal: parte geral”, que o “princípio da legalidade é o mais importante instrumento constitucional de proteção individual no moderno Estado Democrático de Direito, porque proíbe (a) a retroatividade como criminalização ou agravação da pena de fato anterior, (b) o costume como fundamento ou agravação de crimes e penas, (c) a analogia como método de criminalização ou punição de condutas e (d) a indeterminação dos tipos legais e das sanções penais”.

Assim, certo que quem tem a faculdade de selecionar bens a serem juridicamente tutelados, protegidos, e resguardados pelo Direito Penal é a União através do Congresso Nacional.

Quanto à segunda questão que foi acima proposta, para os fins a que se propõe o presente artigo, basta esclarecer o que significam, para a melhor doutrina, as definições que compõem o conceito analítico de crime. Pois bem, o conceito analítico descreve o crime como sendo a ação ou conduta humana típica, antijurídica e culpável. Sem conceituar ação, posto que, neste momento a idéia que o senso comum detém acerca do vocábulo nos é suficiente vamos, minimamente, introduzir informações sobre os conceitos de tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.

Zaffaroni e Pierangeli, na obra Manual de Direito Penal Brasileiro(9), prelecionam que “o tipo penal é um instrumento legal, logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes (por estarem penalmente proibidas)”. Continuam Zaffaroni e Pierangeli(10): “não se deve confundir o tipo com a tipicidade. O tipo é a fórmula que pertence à lei, enquanto a tipicidade pertence à conduta. A tipicidade é a característica que tem uma conduta em razão de estar adequada a um tipo penal, ou seja, individualizada como proibida por um tipo penal. ‘Tipo’ é a fórmula legal que diz “matar alguém’ (está no Código Penal); tipicidade é a característica de adequação ao tipo que possui a conduta de um sujeito ‘A’ que dispara tiros contra ‘B’, causando-lhe a morte (está na realidade). A conduta de ‘A’, por apresentar a característica de tipicidade, dizemos que é uma conduta ‘típica’.”

A ordem jurídica não se esgota na ordem normativa. A ordem jurídica absorve a ordem normativa. Sabido é que há situações em que se permite violar a ordem normativa sem infringir a ordem jurídica. Estas situações são denominadas de preceitos permissivos. Os preceitos permissivos são as situações em que se permite violar a norma sem que haja violação da ordem jurídica. Por exemplo: relativamente à norma não matarás, tutelada pelo tipo penal designado pelo artigo 121 do CP, crime de homicídio, há ocasiões em que a norma violada não implicará violação da ordem jurídica, por exemplo, quando alguém matar alguém em legítima defesa. Aqui, outra vez, nos valemos da doutrina de Zaffaroni e Pierangeli(11): “A tipicidade penal implica a contrariedade com a ordem normativa, mas não implica a antijuridicidade (a contrariedade com a ordem jurídica), porque pode haver uma causa de justificação (um preceito permissivo) que ampare a conduta”.

Tem-se, portanto, que antijurídica é a conduta contrária não só à ordem normativa mas, também, a conduta contrária a toda ordem jurídica, que possui preceitos permissivos, causas que justificam e que autorizam, em determinadas situações, a violação da norma. Claus Roxin(12) ensina que “una conduta típica es antijurídica si no hay una causa de justificacion”. O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 23, I, II e III, exclui a ilicitude quando o agente pratica o fato em estado de necessidade, em legítima defesa e em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito. Desta forma, como diz o professor Juarez Cirino dos Santos(13), “toda ação típica é antijurídica, exceto as ações típicas justificadas”. Antijurídica é, portanto, a conduta que não só contraria à ordem normativa mas, também, à ordem jurídica, vez que os preceitos permissivos também pertencem à esta última.

Por fim, dentro desta singela e resumida perspectiva, falta abordar o elemento do conceito de crime representado pela culpabilidade. O conceito de culpabilidade e o mais debatido pela teoria do delito, pela teoria do crime. Apesar disso, por acreditarmos que atende aos objetivos a que este artigo se propõe, no que tange à culpabilidade vamos nos limitar a trazer ao leitor apenas um valoroso, pequeno e suficiente extrato da obra, diversas vezes aqui citada, dos doutos Zaffaroni e Piarangeli(14), senão vejamos: “Já fornecemos o seu conceito geral: é a reprovabilidade do injusto ao autor. O que lhe é reprovado? O injusto. Por que se lhe reprova? Porque não se motivou na norma. Por que se lhe reprova não haver se motivado na norma? Porque lhe era exigível que se motivasse nela. Um injusto, isto é, uma conduta típica e antijurídica, é culpável, quando é reprovável ao autor a realização desta conduta porque não se motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que agiu, que nela se motivasse. Ao não se ter motivado na norma, quando podia e lhe era exigível que o fizesse, o autor mostra uma disposição interna contrária ao direito. Assim, se um sujeito de certo grau de instrução e de posição social furta um anel numa joalheria, sem que ninguém o obrigue a isto, ou o ameace, e sem estar mentalmente enfermo, dizemos que esse sujeito podia motivar-se na norma que proíbe furtar, e que lhe era exigível que nela se motivasse, porque nada o impedia. Por esta razão lhe reprovamos o injusto, concluindo que sua conduta é culpável, reprovável”.

De tudo o que foi dito até o momento se infere que não basta para que uma ação humana constitua crime que a lei assim a designe através de um tipo penal. Necessário se faz, também, que além de típica ela seja, ainda, antijurídica e culpável.

II - O processo de criminalização primária e o processo de criminalização secundária

O ato de selecionar ações que constituirão crimes é manifestação do poder político institucionalizado.

Para tutelar esses bens jurídicos considerados relevantes para o Direito Penal o legislador cria uma lei que estabelece uma sanção, uma pena para aquele que ofender ou tentar ofender (na acepção jurídica do termo) o bem juridicamente tutelado. Não é, contudo, como já se disse também, qualquer bem que merece a tutela jurídica do Direito Penal. Merecem a tutela, jurídica penal apenas, àqueles bens que são penalmente relevantes e, quem decide quais bens são penalmente relevantes é o Congresso Nacional. Deve-se ter em conta que um dos princípios que informam o Direito Penal é o denominado princípio da ultima ratio, ou seja, o Direito Penal só tem justificada a sua incidência quando todos os demais ramos do direito não se prestam para resolver a questão que se apresenta à sociedade. Não se olvide, ainda, do caráter fragmentário do Direito Penal. O Direito Penal só deve agir em última hipótese. A tarefa de dizer quais bens jurídicos são penalmente relevantes não se mostra, prima facie, uma tarefa simples, realizável por qualquer sujeito papalvo. É uma tarefa que conjuga uma série muito grande de providências, afinal, o Direito é, exceto para alguns, uma ciência e, como tal, demanda um exaustivo trabalho para a formulação de suas premissas.

A tarefa de selecionar bens a serem tutelados juridicamente pelo Direito Penal, uma vez que não se mostra possível tutelar todos os bens existentes, embora caiba à União (Senado e Câmara dos Deputados), não é feita com base, exclusivamente, nos critérios particulares dos representantes do povo e dos Estados. Os Senadores e Deputados Federais não se motivam, unicamente, para a elaboração de leis em geral e, em especial das leis penais, apenas em suas próprias convicções. São, normalmente, influenciados pelos lobistas, pelos empresários morais, pela mídia etc. Há uma série de indivíduos e instituições que determinam quais os bens a serem selecionados para receber a tutela penal. Há, sabemos todos nós, uma série de interesses manifestados pelas mais diversas categorias de pessoas que a sociedade comporta. Boa parcela da população deseja ver bens que considera relevantes, tutelados pelo Direito Penal. Contudo, como isso não é possível, necessário é selecionar. O Direito Penal é, sem dúvida, a maneira mais drástica de se procurar proteger um bem jurídico, por isso deve ser a última instância a ser solicitada. Contudo, os dados estatísticos comprovam que apesar de ser a última instância, não é a maneira mais eficaz. Vemos, na Câmara dos Deputados, por exemplo, diversas bancadas agindo em prol de interesses específicos (há a bancada dos ruralistas, há a bancada dos banqueiros, há a bancada das indústrias, a bancada dos empresários, a bancada dos evangélicos, a bancada dos trabalhadores e assim vai). Não se olvide de lembrar que a esmagadora maioria dos que aportam na Câmara dos Deputados, em Brasília, em razão dos patrocínios que recebem para suas respectivas campanhas, já chegam devendo ao patrocinador que, com certeza, não irá esquecer de cobrá-los num futuro próximo, após as eleições é claro. A lei penal, quando é sancionada, não se direciona, especificamente, a uma pessoa pré-determinada. Contudo, de forma bastante clara, já discrimina e protege a determinadas classes de bens e, conseqüentemente, de indivíduos, posto que cria para alguns poucos uma situação de proteção especial. Esse processo de seleção de bens e, conseqüentemente, de indivíduos a serem protegidos pela lei Penal é denominado de criminalização primária. Seleciona-se potenciais vítimas e potenciais criminosos. A seleção vitimizante e a seleção criminalizante são as duas faces de uma mesma moeda. Uma moeda em forma de cone. De um lado, no vértice, temos, na posição de vítima, determinados grupos de indivíduos que, por suas características ou pelos bens que possuem, serão protegidos pela lei penal. Do outro lado, na região plana, temos o resto, temos na posição de prováveis criminosos, determinados grupos de indivíduos que por suas características e pelos bens que não possuem serão o alvo mais fácil a ser perseguido e atingido pelo Direito Penal, que através do Estado procurará impingir-lhes uma pena. Zaffaroni e Nilo Batista, na obra Direito Penal Brasileiro(15) I, diz que a criminalização primária “é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas”. O processo de criminalização primária é, também, resultado da manifestação de um poder político.

Essa situação de seleção se torna mais evidente quando se procura dar efetividade ao processo de criminalização primária. Passa-se a uma segunda fase denominada de criminalização secundária. O processo de criminalização secundária se dá quando as agências (instituições) encarregadas de dar execução ao projeto entabulado pelas agências de criminalização primária entram em ação. A face mais aparente do processo de criminalização secundária e levada a efeito pelas polícias civis dos Estados. Aqui, também, se dá um processo seletivo, agora de maneira mais concreta, pois se selecionam os indivíduos específicos a serem criminalizados. Contudo, como não é possível, em razão da precária capacidade operacional das agências de criminalização, buscar investigar e punir a todos os indivíduos que cometem atos criminosos no dia-a-dia das sociedades, se impõe escolher quem será objeto de perseguição pelo poder punitivo do estado. A mídia é fator preponderante neste processo de seleção. Esta seleção se processa tendo em consideração alguns fatores que surgem em razão da vulnerabilidade pertencente a cada indivíduo. Ensinam Zaffaroni e Nilo Batista(16) que a “regra geral da criminalização secundária se traduz na seleção: a) de fatos burdos ou grosseiros (a obra tosca da criminalidade, cuja a detecção é mais fácil), e b) de pessoas que causem menos problemas (por sua incapacidade de acesso positivo ao poder político e econômico ou à comunicação massiva). No plano jurídico, é óbvio que esta seleção lesiona o princípio da igualdade, desconsiderado não apenas perante a lei mas também na lei. O princípio constitucional da isonomia (art. 5.º CR) é violável não apenas quando a lei distingue pessoas, mas também quando a autoridade pública promove uma aplicação distintiva (arbitrária) dela”.

Prosseguem os doutrinadores acima citados: “Os atos mais grosseiros cometidos por pessoas sem acesso positivo à comunicação social acabam sendo divulgados por esta com os únicos delitos e tais pessoas como os únicos delinqüentes. A estes últimos é proporcionado um acesso negativo à comunicação social que contribui para criar um estereótipo no imaginário coletivo. Por tratar-se de pessoas desvaloradas, é possível associar-lhes todas as cargas negativas existentes na sociedade sob a forma de preconceitos de classe social, étnicos, etários, de gênero e estéticos. O estereótipo acaba sendo o principal critério seletivo da criminalização secundária; daí a existência de certas uniformidades da população penitenciária associadas a desvalores estéticos (pessoas feias), que o biologismo criminológico considerou causa do delito quando, na realidade, eram causas da criminalização, embora possam vir a tornarem-se causas do delito quando a pessoa acabe assumindo o papel vinculado ao estereótipo (é o chamado efeito reprodutor da criminalização ou desvio secundário)”.

O que se vê é que a mídia tem um papel preponderante na eleição dos critérios de seletividade que venham a ser exercidos pelos processos de criminalização primária e secundária. Um exemplo concreto disso, do poder que a mídia exerce sobre os legisladores, da interferência que produz no processo de criminalização primária, é a alteração sofrida pela lei de crimes hediondos. Após a divulgação de crimes cometidos contra vitimas privilegiadas (Roberto Medina, Abílio Diniz e Daniela Perez) a lei sofreu alterações marcantes. Lembre-se que foi após o assassinato da atriz Daniela Perez, em 1992, filha da escritora de novelas da Rede Globo Glória Perez, que o crime de homicídio foi incluído no rol dos crimes hediondos. Por sua vez, um exemplo da forma como a mídia interfere no processo de criminalização secundária é o caso da Escola Base, de São Paulo. Este caso é paradigmático.

A mídia exerce poder sobre as agências de criminalização primária e secundária, poder que se soma ao das agências políticas institucionalizadas e as legitima em suas ações, mas isso é assunto para um outro debate. Esse poder da mídia, no que concerne à criminalização secundária, acaba redundando na justificativa da força a ser exercida pelas polícias civis, em geral, contra aqueles que são mais vulneráveis à criminalização. Para não ficar tão aberrante a desvirtuada a seleção sobre determinadas categorias de pessoas, vez ou outra, se procura um bode expiatório, que não se enquadre no estereótipo dos indivíduos a serem criminalizados e que faça com que a massa ignorante e sem filtros acredite que todos são iguais perante a lei, pois só assim o sistema terá sustentação e o status quo ante será preservado.

III Comentário sobre o comentário de Arnaldo Jabor

Nosso entendimento nos leva à crença de que o texto de Arnaldo Jabor é uma apologia concreta ao fascismo, ao autoritarismo, à ditadura maquiada. Arnaldo Jabor é um sofista, na acepção mais negativa que o termo possa representar, isso é o que extraímos do que conhecemos dele por intermédio de seus textos e comentários apresentados na mídia. (Veja no box o texto de Jabor na página 10).

O Sr. Arnaldo Jabor, por certo, não conhece a obra de Oswaldo Giacóia Júnior. Caso contrário não sairia por aí se valendo dos ensinamentos de Giacóia para induzir as pessoas em erro. Vale lembrar o que escreveu Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do séc. XIX, sobre alguns filósofos, um em especial, no prefácio da obra “O mundo como vontade e como representação(17)”, senão vejamos: “Sim, gostaria de dizer: época alguma poderia ser mais desfavorável à filosofia do que aquela na qual é maltratada, de um lado, escandalosamente como instrumento de Estado, de outro, como meio de sobrevivência. Ou alguém acredita que, em meio a tal agitação e tumulto, a verdade, da qual ninguém se ocupa, virá à lume? A verdade não é uma huri, que se joga ao pescoço de quem não a deseja; antes, é uma donzela tão difícil que mesmo quem tudo lhe sacrifica ainda não pode estar certo de seu favor”. Mutatis mutandis, aplica-se ao “jornalista” Jabor.

Ao que parece, não sabe Jabor que Giacóia Júnior tem uma pequena, mas interessantíssima, obra na Coleção “Folha Explica”, onde dá as razões do motivo pelo qual se deve ler Nietzsche hoje. Conhecesse Jabor a obra de Giacóia, a qual cita fora de seu contexto, com o objetivo de sustentar sua perspectiva fascista da política criminal a ser desenvolvida pelo Estado brasileiro, teria lido Nistzsche e, por certo, antes de emitir opiniões que alcançarão milhares (quem sabe milhões) de pessoas, recordaria quando na obra “Além do Bem e do Mal(18)”, falando da linguagem de um antigo mistério, Nietzsche cita: “Adventavit asinus pulcher et fortissimus” [chegou o asno belo e muito forte] e, deixaria de lado o infeliz comentário. Jabor é “esperto”, e “belo” e é “forte”. Jabor conhece e sabe que tem o direito de falar o que bem entender e o que lhe garante tal faculdade é, justamente, o Estado Democrático de Direito. Há uma lei de imprensa que lhe fornece alternativas. Estado Democrático de Direito que garante, embora precariamente, também, a possibilidade de que aqueles foram ofendidos em sua honra pleiteiem uma indenização pela ofensa moral a que foram submetidos. Contudo, Jabor não tem o direito de, seja dolosamente, seja culposamente (por ignorância), fomentar a ira contra o Estado Democrático de Direito do qual se vale para falar o que bem quer, pregando, por vias transversas (linchamento) a solução de questões que devem ficar a cargo do Estado. Se o Estado é ineficiente em razão das regras positivadas em lei, então que se mude a lei, pela via legal, se alterem as regras do jogo. Contudo, enquanto a regra estiver predeterminada pela lei que se siga ao que ela estabelece, ao menos no que tange à questão da criminalização. Há muito mais a ser feito para que a violência e, conseqüentemente, a atividade criminosa seja minorada. Não serão as penas “mais terríveis, mais violentas, mais rápidas, mais temíveis” que serão capazes de minimizar os problemas da Violência. Jabor, me desculpe a utilização de uma forma de expressão sermus plebeius, mas o buraco é bem mais embaixo! Jabor julga, valora, portanto vamos pagá-lo no âmbito da sua ética. Jabor, como tantos outros pequenos burgueses, ficarão, até que cometam uma ação burda ou grosseira (como fez Pimenta Neves) ou saiam perdedores na luta por um poder hegemônico (como Collor), fora do alcance dos efeitos da lei, ainda que uma vez processados não chegarão jamais a serem condenados. Sabendo disso Jabor apregoa penas mais terríveis, mais violentas, mais rápidas e mais temíveis. Jabor tem consciência de que está fora do alcance do poder punitivo do Estado, não porque não cometa crimes, mas porque tem acesso positivo aos meios de comunicação de massa, porque tem poder. Jabor tem consciência de que a lei tem direção certa e de que ele não está na mira dela, em razão do poder que lhe emprestam, por enquanto, os meios de comunicação. Como já se disse: Jabor é esperto. Jabor deveria ler Emile Durkheim e assim compreenderia que a violência e um fato social normal, um fato social que deve ser compreendido como tendo a tarefa de manter permanentemente aberto o canal que viabilize o progresso da humanidade. Ser um fato social normal não significa dizer que seja um fato que deva passar despercebido. Significa, sim, ter consciência que, quem sabe por razões de natureza socioantropológica, vai sempre existir e necessitará, sempre, de medidas lícitas capazes de reduzi-lo. Jabor deveria ler Giacóia e tantos outros filósofos, mas lê-los de verdade, não apenas para aparentar um conhecimento que não possui.

Rubem Braga, esse sim jornalista na acepção mais honrosa do termo, na crônica “Os Jornais” (maio de 1951) diz: “Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. Veja por exemplo aqui: em um subúrbio, um sapateiro matou a mulher que o traía. Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico”(grifo nosso). Rubem Braga não desejava com isso denegrir a imagem dos meios de comunicação. Desejou ressaltar que acontecem sim fatos representativos de violência, de crimes, de desumanidades, contudo, acontecem, também, fatos, no dia-a-dia da humanidade, que são bons, louváveis e virtuosos. Entretanto, fatos bons, louváveis e virtuosos não produzem interesse jornalístico.

Por certo Jabor não conhece ou, não recorda, da crônica “Os Jornais” de Rubem Braga. Prefere se arvorar no direito de emitir uma opinião preconceituosa, não estabelecida pela razão e fundada exclusivamente em notícias de jornais e, de maneira simplória e reducionista, valorar com base em seus standarts pessoais uma ação da qual não tem plena consciência (ou será que alguém acreditaria que Jabor foi até a delegacia de polícia e obteve cópia integral dos autos de inquérito policial e os analisou com fundamento em dados antropológicos, sociológicos, filosóficos e jurídicos constitucionais). Jabor já condenou Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá. A sua perfunctória visão do caso já é o bastante, só falta a aplicação de uma pena mais terrível, mais violenta, mais rápida e mais temível. Jabor é empresário moral, na acepção negativa que neste conceito se compreende. Jabor é sofista.

Jabor demonstra em seu comentário um total desconhecimento. Desconhecimento não só dos fatos que cercam a morte de Isabella Nardoni, como, ainda, desconhecimento visceral dos aspectos jurídicos que envolvem o caso. Chega a falar em Supremo Tribunal de Justiça, sendo que, no Brasil, não existe um Supremo Tribunal de Justiça. Existe sim um Supremo Tribunal Federal e um Superior Tribunal de Justiça. “Adventavit asinus pulcher et fortissimus!”. Jabor é, como a violência, um fato social normal, um mal necessário, viabiliza manter aberto o canal que possibilita a evolução da sociedade, afinal os erros provocam maior evolução do que os acertos. Jabor é um erro. Jabor é instrumento. Instrumento da manutenção de uma perspectiva fascista do poder punitivo do Estado. Jabor tem seu dono.

Não é difícil pensar que para a vida em sociedade a morte do anjo Isabella Nardoni, ainda que de uma forma vil, abjeta e nojenta, é menos reprovável do que a ação de Jabor ao emitir tão infundada perspectiva da forma como deve se dar o desenvolvimento da política criminal no Estado brasileiro. Afinal, embora soframos todos, intimamente, com o caso Isabella, com a perspectiva de Jabor só alguns, os menos favorecidos, sofrerão e por certo Jabor não estará, infelizmente, neste rol.

IV - Conclusão

Compreender os diversos matizes, capazes de nos dar uma perspectiva fundada na razão, a respeito dos fatos criminosos que acontecem no dia-a-dia das sociedades, não é uma tarefa fácil. Infelizmente, nem todos os brasileiros somos capazes de elaborar raciocínios sólidos e verdadeiros sobre o fenômeno crime. Podemos fazer inferências e deduções com base nas informações que detemos, esse é um direito imanente ao ser humano, qualquer um pode e deve exercê-lo. Contudo, o que não podemos, é fomentar uma situação de selvageria, sugerindo linchamento, opressão desmedida, pregando a violência, institucionalizada ou não, enfim, querendo dar às nossas incipientes convicções pessoais o status de verdade absoluta.

Não podemos calar os insanos, ou melhor, não seria bom calá-los (nem os insanos) em um Estado que se diz democrático. Não há democracia sem liberdade de expressão e sem imprensa livre. No entanto, podemos exigir uma imprensa séria, honesta e responsável. A liberdade de imprensa está ameaçada pela libertinagem de alguns de seus membros e este fato ameaça, também, a nossa liberdade.


Por Haroldo César Náter, professor de Direito Penal e Processo Penal, doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais UMSA.


O Estado do Paraná, Direito e Justiça.

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