sábado, 3 de maio de 2008

Artigo - Mídia e Justiça

Em valioso livro, Casos Criminais Célebres (RT, 1998), René Ariel Dotti alerta para as dúvidas em que navegam a liberdade e a responsabilidade da imprensa. Básicos numa sociedade democrática, a liberdade de informar e o direito de ser informado podem, no entanto, transbordar ao se transformar a mídia em tribunal sem apelação. Nos casos criminais mais famosos a imprensa tomou partido, presumiu culpas, decretou inocências.

Caso ainda hoje duvidoso foi o crime do Sacopã. Na manhã de 7 de abril de 1952, num Citroën preto, largado na Ladeira do Sacopã, perto da Lagoa Rodrigo de Freitas, jazia o corpo do bancário Afrânio Arsênio de Lemos, abatido com três tiros de revólver.

As investigações dirigiram o foco para a antiga namorada, Marina de Andrade, moça charmosa e elegante. A imprensa cercou Marina de todos os lados. O jovem tenente-aviador Alberto Bandeira era o namorado dela na época. Marina passou a ser vista pela polícia e por parte da imprensa como o "pivô" do crime e Bandeira como o assassino.

O advogado Leopoldo Heitor, depois envolvido no desaparecimento da milionária Dana de Teffé, dizia à imprensa que um seu cliente fora testemunha ocular dos fatos. Foco das atenções, Leopoldo Heitor revelou ter Walton Avancini testemunhado o crime. Este declarou, por sua vez: "Eu me encontrava no Citroën quando se deu o crime e foi o tenente Bandeira quem matou Afrânio."

Havia, por outro lado, fortes boatos de que influente senador da República estaria manobrando para incriminar o tenente Bandeira. Segundo boatos, a filha do senador, conhecida no "café society" como Mimi, teria tido um namoro com Afrânio, que certa feita a espancara no Clube Caiçaras. Constava que o irmão de Mimi teria contratado dois homens para matar o bancário, um dos quais o próprio Walton.

A imprensa dividiu-se: a famosa revista O Cruzeiro transformou-se em tribuna de defesa; o jornal O Globo, em assistência da acusação. Como resultado, o tenente Bandeira foi condenado a 15 anos de prisão, dos quais cumpriu sete. Em 1972, o Supremo Tribunal Federal anulou o julgamento e o crime prescreveu em 1973.

Há 50 anos, Copacabana foi o palco de morte que convulsionou o País: Aída Curi, mocinha de 18 anos, terminou os seus dias no asfalto da Avenida Atlântica, provavelmente jogada do último andar do Edifício Nobre, aonde fora a convite de dois playboys que personificavam a então juventude transviada: Ronaldo Guilherme de Castro e Cássio Murilo Ferreira, menor de 18 anos, sobrinho de um coronel do Departamento de Ordem Política.

A imprensa, pelo envolvimento de jovens de classe média, passou a cobrir o fato com sofreguidão. O jornalista David Nasser veio a ser, na revista O Cruzeiro, o assistente de acusação em defesa da memória da jovem.

O laudo necroscópico revelava apresentar o cadáver "escoriações e equimoses provocadas por unhadas e socos. No peito, no lado esquerdo, havia sinais de profundas unhadas. Arranhões nas coxas, ventre, pescoço e equimoses no abdômen. Houve ruptura interna do lábio superior devido a um soco. Tentativas de estrangulamento. Sinais de bofetão no queixo. Marcas de defesa nos braços, antebraços, punhos e dorso das mãos, bem como no tórax que podiam ser conseqüência de mordida".

Ronaldo veio a ser impronunciado pelo juiz Souza Neto, que não viu indícios suficientes de autoria a justificar o julgamento pelo Júri. Houve inconformidade popular. A imprensa colocou o juiz no banco dos réus. A emoção tomara conta do País. O Tribunal de Justiça modificou a sentença e Ronaldo enfrentou o Júri, no qual veio a ser condenado a 37 anos de reclusão. Ao sair, populares gritavam: "Assassino!" Dias depois, surgiu uma testemunha-bomba: uma senhora confirmava ter estado num banco da praia ao lado de um rapaz e de uma moça, a Ziza, quando depois se percebeu aglomeração diante do corpo caído de Aída. O rapaz era Ronaldo, conforme depois vira na imprensa. A condenação injusta a fizera depor, rompendo o receio de se envolver.

Em novo julgamento Ronaldo foi, então, absolvido e aplaudido ao sair do Júri. Em terceiro julgamento veio a ser condenado a oito anos de prisão.

Já presente a televisão na vida nacional, a força da imprensa mostrou-se ativa no julgamento do homicídio de Ângela Diniz. A Rede Globo, coincidentemente, entre o primeiro julgamento, quando reconhecida a legítima defesa, e o segundo, em que houve condenação, aderiu aos movimentos feministas contra o acusado, Doca Street.

Agora, em face da triste morte da pequena Isabella, há imenso delírio da mídia, gerando o paroxismo da morbidez na curiosidade e na raiva intensas da população, que grita: "Assassinos!" A audiência de noticiários cresceu mais de 40%. As emissoras contrataram profissionais para a cobertura jornalística. Especialistas de toda ordem dão palpites na mídia. O promotor vai ao Fantástico, lá vão os indiciados. O processo corre diante das câmeras televisivas.

A mídia entra diretamente em competição com a Justiça. A imprensa pretende revelar a verdade para que a opinião pública seja o juiz, sem as precauções do devido processo, sem a presunção de inocência, sem as regras estritas do contraditório.

É difícil ter a garantia de que a busca de elevação dos índices de audiência coincida com a revelação objetiva da verdade. São interesses inconciliáveis numa imprensa sensacionalista. Como, então, enfrentar o impacto da mídia na Justiça, que dita condenações, elegendo apressadamente autores, ou promove absolvições injustas?

Só pela prudência a ser alcançada pela efetiva auto-regulação da mídia e pela eficácia de preceitos éticos, tal como dispõe o Código de Ética dos Advogados, segundo o qual o advogado deve evitar na imprensa a promoção profissional, o debate de caráter sensacionalista, bem como a manifestação acerca de causa sob seu patrocínio ou de colega.


Miguel Reale Júnior, advogado, professor-titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Estadão.

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