quarta-feira, 21 de maio de 2008

Artigo - Judiciário jogando para a torcida

A prisão processual dos acusados da morte de Isabela Nardoni, ocorrida na noite do último dia 08 de maio, forneceu ao Brasil um espetáculo de abusos, arbitrariedades e desrespeitos ao sistema constitucional, sacrificadores da Democracia e da Constituição Federal, como garantidora de proteção aos cidadãos contra os abusos do Estado.

A reflexão que se deve fazer no momento não é se o casal, acusado da morte da menina Isabela, é mesmo o responsável, situação esta, sinceramente, ainda cercada de dúvidas. A propósito, poucos têm ousado afirmar o evidente, qual seja: não há provas seguras da autoria do delito pelo casal acusado, indícios que permitam dar início ao processo, porém as provas divulgadas pela polícia junto ao setor mais sensacionalista da mídia, em inquérito dito sigiloso, mostram um contínuo afirmar de provas técnicas seguras para depois desmenti-las pois nunca existiram. Foi assim com o sangue no carro, com o vômito na roupa do pai da menina morta, com a festa antes dos fatos em que teriam discutido e que depois se soube que nunca existiu.

Importa neste momento refletir o que se tem feito em um dos casos criminais mais rumorosos da história brasileira. Curiosamente rumoroso em um país de contínua violência a menores, em que as pessoas já sentem insensibilidade ao verem crianças pedindo esmola em sinaleiros, cheirando cola nas esquinas e sendo massacradas por grupos de extermínio. Rumoroso sim, não há dúvida, por uma única razão, ocorreu na classe média alta e o sistema seletivo punitivo em que se vive deve proteger com mais rigor as ações perpetradas contra ricos, que contra pobres.

À parte a tragédia de Isabela, sem dúvida triste e chocante, a verdade é que o casal acusado, por força do artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, permanece inocente e em poucos casos a regra do estado de inocência se justifica tanto quanto neste, em que dúvidas gritantes ainda existem. Mais, somente poderiam ser presos provisoriamente se presentes uma das justificações do artigo 312, do Código de Processo Penal - garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal, assegurar a aplicação da lei penal - e no caso não está presente nenhuma.

O que justificou o aprisionamento foi o estapafúrdio argumento, apresentado com ares de sabedoria pelo agente ministerial, que se não fossem presos os acusados demoraria muito para julgá-los.

Em outras palavras, como sempre gostou de fazer o absolutismo, a ineficiência estatal é justificada e transferida aos cidadãos. Exatamente, os cidadãos brasileiros acusados do crime da menina Isabela devem ficar presos, mesmo gozando da presunção de inocência, para que o Estado possa corrigir, com o cerceamento da liberdade deles, as suas falhas e julgá-los mais rápido.

O espetáculo da prisão à noite, quando é das mais comezinhas noções de direito que, salvo em flagrante, somente pode ocorrer durante o dia, derrubou o véu que cerca a injustificada prisão processual do casal. Escolheu-se, mesmo sendo expediente inaplicável, prendê-los à noite, mas não de madrugada, não logo no início da noite, mas no horário de maior audiência da televisão brasileira.

É isto, não passa tudo de um espetáculo midiático, em que se sacrificam direitos, em que se tripudia sobre a memória da criança morta para promoção de um espetáculo doentio, como bruxas queimadas em praça pública na Idade Média e assim jogar para o público.

Os acusados da morte de Isabela precisam ser julgados, mas a sociedade brasileira tem uma rara oportunidade de reafirmar o seu compromisso democrático em momento que há quem fale até em perpetuação no poder, defendendo que a Constituição seja respeitada, protegendo a sociedade contra seu próprio irracionalismo, que o julgamento seja em conformidade às leis do País e que, se reconhecidos culpados, sejam punidos na forma estabelecida em lei.

É mais fácil no momento atual de irracionalidade defender a execução sumária dos acusados, mas também mais irresponsável. Todas as grandes democracias tiveram dificuldades em se assentar e só o fizeram porque escolheram o caminho mais difícil, ou seja, o do respeito aos princípios democráticos norteadores de sua carta constitucional. Foi assim da França da Declaração dos Direitos Humanos, na Inglaterra da Revolução Gloriosa e nos Estados Unidos de George Washigton. Não foi assim na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitler, nos Estados Unidos de Bush e na Espanha de Torquemada.

Vale refletir para escolher bem e consciente o caminho que se quer seguir.


Por Adel El Tasse é procurador federal, advogado criminalista, professor de Direito Penal e Processual Penal das Escolas da Magistratura Estadual e Federal do Paraná e de várias universidades


Folha de Londrina.

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