sexta-feira, 23 de maio de 2008

Artigo: Efetividade da reação social formal não punitiva: possibilidade do abolicionismo penal?

SUMÁRIO: Introdução. 1. Evolução Histórica da Reação Social Formal Não Punitiva e Abolicionismo Penal. 2. Efetividade da Reação Social Formal Não Punitiva e Falência do Atual Sistema Penal. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

O presente artigo trata do equivocado modelo jurídico penal brasileiro, que deixa de observar o lado principal no momento do cometimento do crime: o da vítima. Destaca a não-efetividade do sistema penal, pautado num modelo ditatorial – punitivo – analisando os institutos jurídicos da Constituição Federal de 1988 e enxerga uma possível abertura para a implantação de um futuro abolicionismo penal.

O objetivo deste artigo é analisar a possibilidade, bem verdade utópica, da implantação do abolicionismo penal no Brasil, a partir da efetiva aplicação de uma reação social institucional não punitiva, passando pela instituição de um Direito penal racional[i].

Assim, o abolicionismo penal deve estar diante de nós como uma meta utópica a ser sempre perseguida através da redução gradual e progressiva da intervenção penal (visão minimalista do Direito penal). Dessa forma, entende-se que somente haverá um bem-estar social, caso a sociedade entenda que é necessário descriminalizar condutas, tendo em vista a sua negatividade.

Este trabalho está dividido em duas partes. A primeira trata basicamente das positividades entre as idéias intersticiais da reação social formal não punitiva e do abolicionismo penal, analisando o tema dentro de uma perspectiva criminológica voltada para os reais anseios da vítima. Traz, para tanto, o conceito e a evolução histórica do abolicionismo penal e da reação social formal não punitiva.

A segunda parte aborda aspectos da efetividade do sistema jurídico formal não punitivo e da não efetividade do sistema jurídico penal punitivo frente à realidade criminal a qual vivemos, sob o enfoque da política de prevenção criminal.

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA REAÇÃO SOCIAL FORMAL NÃO PUNITIVA E ABOLICIONISMO PENAL

O abolicionismo penal surge criticando o sistema penal considerado ineficaz. Para os abolicionistas, tal sistema não funcionou e nunca irá funcionar, uma vez que tenta amedrontar o indivíduo com penas privativas de liberdade, a fim de evitar que se venha cometer uma conduta delitiva (prevenção geral).

Muitas são as opiniões diversas acerca do surgimento do movimento abolicionista, já que os seus principais idealizadores formaram-se em diferentes épocas e utilizaram pensamentos filosóficos diversos, objetivando, entretanto, a mesma finalidade, dentro de suas peculiaridades.

Houve um movimento iniciado pelo advogado e professor Filippo Gramatica que, com o surgimento de ondas humanísticas e o aparecimento de uma nova ordem criativa a respeito do Direito penal, fundou em Gênova, no ano de 1945, um Centro de Estudos de Defesa Social e, dois anos depois, realizou o primeiro Congresso Internacional de Defesa Social. O mencionado movimento iniciado por Gramatica recebeu várias adesões.

Contudo, posteriormente, muitos dos que aderiram, passaram a ter uma postura voltada para a intervenção penal mínima, ou seja, a utilização de penas alternativas no lugar das privativas de liberdade, que só poderiam ser utilizadas em último caso, ou seja, contra delinqüentes mais perigosos.

Sendo assim, é possível se afirmar que ocorreu um "corte" das idéias abolicionistas, voltando-se para as de cunho minimalísticos. Outros acreditam que o abolicionismo nasceu na década de 60, com a nova criminologia (criminologia crítica), surgida nos Estados Unidos. Dessa forma, houve um rompimento da criminologia positiva e, sob a influência de teorias sociológicas de tendências diversificadas, o padrão "etiológico" foi substituído pelo padrão do "controle-social".

Os abolicionistas pregam o fim de todo o sistema de justiça criminal, considerado-o ilegítimo em suas técnicas, uma vez que agridem a integridade física e mental do delinqüente, causando-lhe um mal injustificável. No atual sistema penal, a punição para a prática de determinados delitos deveria intimidar as pessoas e fazer com que a criminalidade fosse extinta. Todavia, na prática isto não funciona, pois existem tipos penais com previsão de severas punições que continuam a ser praticados[ii].

O método utilizado pelo sistema penal é errado e falho, pois a tentativa de educar, impondo padrões de conduta, não funciona através do medo de ser castigado no cometimento dos crimes. O que leva o indivíduo a não praticar condutas descritas como crimes, ou seja, a ter um comportamento não criminalizado, são os valores apreendidos durante toda a sua vida, tanto no âmbito familiar, na sociedade, bem como na religião.

Sendo assim, entende-se que devem ser privilegiadas a conciliação, a mediação e a reparação dos danos sofridos, isto é, a utilização de meios não punitivos (reação social formal não punitiva), como, por exemplo, o emprego dos institutos do direito civil e administrativo para a resolução dos conflitos, em substituição ao sistema punitivo (reação social formal formalmente punitiva).

Louk Hulsman apud Marchi Júnior[iii] defendem o abolicionismo penal afirmando que a solução dos conflitos deve ser realizada simultaneamente nas nossas atitudes e comportamentos, pregando o seguinte discurso:

A lógica interna das propostas abolicionistas parece-nos incontestável: se o sistema penal é simbólico, apenas tendo por função assegurar a hegemonia de um setor social, com efeitos, no geral, negativos, melhor é a sua supressão, suprimindo a própria hegemonia social ou substituindo a forma de sustentação por outro sistema menos negativo (mais racional).

A reação social formal não punitiva prega a não utilização de penas, principalmente as privativas de liberdade na resolução dos conflitos interpessoais, isto é, a não aplicação do Direito penal, que é um sistema eminentemente punitivo. Tem por finalidade evitar que haja, além do descrédito do Direito penal vigente[iv], bem como a degradação das relações humanas, no que diz respeito à sua dignidade, respeitando para tanto os direitos fundamentais ou mínimos inerentes à condição de ser humano: os direitos humanos.

É preciso ter em mente que se deve utilizar os meios não punitivos quando esses forem possíveis, para podermos viver numa sociedade racional que respeita os direitos dos homens que compõem a coletividade, sem que haja necessidade da utilização de penas a serem cumpridas em presídios (verdadeiras escolas do crime).

2. Efetividade da Reação Social Formal Não Punitiva e FALÊNCIA do ATUAL Sistema Penal

Não é preciso ser um expert em Ciências Criminais para enxergar a incoerência do atual sistema jurídico penal. É de fácil percepção que a constante tipificação de condutas e o aumento das penas não é um programa apropriado para a prevenção de crimes, uma vez que apenas o medo do castigo não faz com que haja a negatividade da conduta penalmente descrita no tipo penal, conforme previa a criminologia clássica[v].

Segundo Molina e Luiz Flávio Gomes[vi] o sistema penal seleciona condutas criminosas e por isso é o principal criador de desigualdades, desrespeitando os direitos subjetivos inerentes a condição de ser humano. Nesse contexto, muito dificilmente as decisões judiciais deixam de ser discriminatórias, ou seja, há uma discriminação em série.

Ainda nesse sentido Adorno[vii], a fim de demonstrar o caráter separatista do Direito penal, assegura que "o funcionamento normativo do aparelho penal tem, por efeito, a objetivação das diferenças e das desigualdades, a manutenção das assimetrias, a preservação das distâncias e das hierarquias".

Enquanto o sistema penal se mostra impróprio na resolução dos conflitos, o instituto da responsabilidade civil, faz com que haja maior alcance dos reais anseios da vítima, do que a terrível e desumana aplicação de penas privativas de liberdade ao infrator[viii]. Os outros ramos do direito, como o direito civil, aludido acima, têm demonstrado um grau significativo na resolução dos conflitos e, conseqüentemente, alcançado os reais desejos das vítimas, sem ser preciso para tanto, a intervenção penal[ix].

Podemos, ademais, perceber que mesmo dentro do próprio sistema penal é possível enxergar a utilização de um dos institutos genuinamente do direito civil: a composição[x], que funciona como um ressarcimento da pena e reparação dos danos sofridos pela vítima.

Dentro desta perspectiva, pode-se vislumbrar a possibilidade da legítima e efetiva aplicação da reação social formal não punitiva no Direito penal brasileiro, em substituição das penas irracionais previstas pelo "moderno" sistema penal, ou seja, deixa a aplicação das penas privativas de liberdade em segundo plano. É o melhor caminho a ser seguido.

A instituição das penas privativas de liberdade gera carreira criminal[xi], porquanto fazem com que haja uma aprendizagem de novas técnicas para o cometimento de novos crimes quando os presos adquirem liberdade. Ressalte-se que a pena é um instrumento de degradação do condenado e faz com que seja aderido ao condenado uma espécie de "etiqueta", indicando perigo à sociedade. Formam-se verdadeiros estereótipos.

O referido processo de etiquetamento gera uma criminalidade muito maior, pois faz com seja desencadeada uma desviação secundária (reincidência).

É indispensável mostrar o que significa a prisão nos dias atuais. Assim, Heleno Fragoso apud Bitencourt[xii] afirma que "a prisão representa um trágico equívoco histórico, constituindo a expressão mais característica do vigente sistema de justiça criminal. Validamente só é possível pleitear que ela seja reservada exclusivamente para os casos em que não houver, no momento, outra solução".

O sistema penal como órgão repressor, baseado na pena privativa de liberdade, está ultrapassado e desconexo da realidade, além de ter se revelado, ao longo de sua existência, como algo fracassado, oneroso e incapaz de produzir respostas consistentes e efetivas. Desta sorte, mister trazer à tona, a idéia esboçada por Muniz[xiii]:

[...] é preciso caminhar rumo a uma visão sistêmica, integrada e aberta da problemática da segurança pública que esteja realmente em sintonia com a natureza, diversidade e intensidade dos problemas de segurança vividos nas ruas. Uma concepção mais realista e sensata da segurança pública reconhece a necessidade de se ultrapassar o campo de atuação exclusiva das forças policiais e de outros órgãos do sistema criminal, através da incorporação na gestão da segurança pública das comunidades e de outras agências públicas e civis prestadoras de serviços essenciais à população.

CONCLUSÃO

Do exposto, pode-se concluir que as políticas de segurança devem atender aos anseios e às necessidades da sociedade. Para isso, é necessário que haja uma gradual descriminalização das condutas menos gravosas, isto é, adoção do princípio da ultima ratio, com o fim de se chegar à total descriminalização de condutas (abolicionismo penal).

Necessário assim, cientificar que a criação de novos tipos penais bem como o endurecimento das penas, conduzem a resultados ineficazes e põem em risco a credibilidade da Justiça e do próprio sistema penal. Não é essa a melhor política criminal.

Agir de tal modo, é andar na contramão dos desideratos da sociedade moderna. Utilizar como política de prevenção a imposição da reparação do dano causado à vítima, quando possível, e não o da tipificação de condutas ou majoração das penas, é evoluir no pensamento jurídico para a criação de um modelo penal justo e eficaz.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Sérgio. Crime, Justiça Penal e Desigualdade Jurídica. In: SOUTO, Cláudio; FALCÃO, Joaquim. (Orgs.) Sociologia e Direito. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1999. p. 311–333.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal - parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1.

MARCHI JUNIOR, Antônio de Pádova. Abolicionismo Criminal. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Direito. Disponível em: http://www.direitopenal.adv.br/artigos.asp?pagina=2&id=91. Acesso em: 20 mai. 2003.

MOLINA, Antônio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

MUNIZ, Jacqueline; PROENÇA JÚNIOR, Domício. Administração estratégica da ordem pública. In: Lei e Liberdade (Comunicações do Iser). Rio de Janeiro, 1997, p. 14-16. Disponível em: http://www.ucamcesec.com.br/pb_txt_dwn.php. Acesso em: 15 mai. 2003.

______, Jacqueline. O papel dos Municípios na Política de Segurança. Disponível em: http://www.uvb.com.br/main/posgraduacao/CienciasCriminais/AulasImpressas/SP_Aula02_Facultativa.pdf. Belo Horizonte, jun. 2000. Acesso em: 20 mai. 2003.

QUEIROZ, Paulo. Funções do Direito Penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. 2. ed. Belo Horizonte: São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Controle social punitivo e a experiência brasileira: uma visão crítica da Lei 9.099/95, sob a perspectiva criminológica. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 08, n.º 29, Jan./Mar. 2000.

SILVA, Luciano Nascimento. Manifesto Abolicionista Penal [Ensaio acerca da perda de legitimidade do sistema de Justiça Criminal]. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3556. Nov. 2002. Acesso em: 10 jun. 2003.

Zaffaroni, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

[i] Aplicação do princípio da ultima ratio.
[ii] Alguns dos Estados Norte Americano aplicam a pena de morte, entretanto a prática de crimes não diminuiu, ocorrendo, dessa forma, uma negação do direito e a demonstração da flagrante ineficácia da norma penal incriminadora.

[iii] MARCHI JÚNIOR, Antônio de Pádova. Abolicionismo Criminal. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Direito. Disponível em: http://www.direitopenal.adv.br/artigos.asp?pagina=2&id=91. Acesso em: 20 mai. 2003.

[iv] Sistema que consideramos falido.

[v] Trata do paradigma do ato.

[vi] MOLINA, Antônio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 387.

[vii] ADORNO, Sérgio. Crime, Justiça Penal e Desigualdade Jurídica. In: SOUTO, Cláudio; FALCÃO, Joaquim. (Orgs.). Sociologia e Direito. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1999. p. 332.

[viii] Previstas pelo direito penal repressor.

[ix] Nesse sentido Hulsman, em entrevista concedida ao site http://www.direitocriminal.com.br quando esteve no "VI Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim)", proferiu o seguinte discurso, a fim de poder exemplificar a inadequação do sistema de aplicação de penas: "Não costuma levar em conta, por exemplo, a perspectiva da vítima. Nunca se sabe nada sobre as vítimas. É preciso repensar o penal do ponto de vista das vítimas [e exemplificou esclarecendo que] a irmã de uma amiga minha era casada com um sujeito que tinha uma cara coleção de pinturas. Eles não gostavam verdadeiramente das pinturas. A certa altura foram roubados e ficaram muito contentes, porque desfizeram-se das pinturas de que não gostavam e receberam o dinheiro do seguro. Então, não dá para generalizar e dizer que há verdadeiras vítimas em casos assim".

[x] Compensação do prejuízo sofrido pela vítima com certa importância em pecunia. Pode-se observar a aplicação deste instituto nos arts. 62 e 72 da Lei 9.099/95 (Lei de Juizados Especiais Cíveis e Criminais). O art. 76 dispõe que em casos de ação penal pública, o representante do ministério público poderá realizar transação penal com o suposto autor do fato para aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa. Entendemos haver, in casu, o desiderato do legislador na tentativa de abolir o sistema penal punitivo.

[xi] Os presídios funcionam como escolas do crime.

[xii] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal - parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 528.

[xiii] MUNIZ, Jacqueline. O papel dos Municípios na Política de Segurança. Disponível em: http://www.uvb.com.br/main/posgraduacao/CienciasCriminais/AulasImpressas/SP_Aula02_Facultativa.pdf. Belo Horizonte, jun. 2000. Acesso em: 20 mai. 2003.


Por Luciana Filardi, Talita Liz

Bacharela em Direito/BA, Advogada/BA


Referência: FILARDI, Luciana, LIZ, Talita.Efetividade da reação social formal não punitiva: possibilidade do abolicionismo penal?. Disponível na internet www.ibccrim.org.br, 15.01.2007

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