A carreira de um juiz de direito quase chegou ao fim em uma boca-de-fumo da Avenida Farrapos, em Porto Alegre. Viciado em crack, o magistrado escapou por pouco de ser identificado em uma batida policial.
Sozinho no avião, um universitário debatia-se sobre o que fazer com os R$ 16 mil que os pais haviam entregue para ele custear o tratamento. Seguia para a clínica de reabilitação ou fugia com o dinheiro?
Durante oito meses sob o domínio do crack, um médico atendia seus pacientes enquanto lutava em consultórios alheios contra um mal que quase custou sua sanidade.
O mergulho de juízes, universitários, médicos, empresários, profissionais liberais e funcionários públicos de alto escalão no inferno do crack, constatado por ZH nas últimas semanas, revela que a pedra rompeu barreiras e avançou sobre o conforto dos condomínios de luxo, a vizinhança das escolas e das universidades particulares e as altas rodas da sociedade gaúcha.
O estigma de droga de periferia já não mais encontra confirmação na realidade. Nas clínicas de recuperação e nas reuniões de mútua ajuda para dependentes químicos são cada vez mais numerosos os crackeiros de elevada condição social e econômica.
- No Hospital de Mãe de Deus, onde só atendo classe média e alta, o crack foi chegar há um ano. Agora é a toda hora, crackeiros de todas as idades - confirma o psiquiatra e psicanalista Sergio de Paula Ramos, da Unidade de Dependência Química do Mãe de Deus.
O crack explodiu na favela como uma droga poderosa e de fácil acesso - a pedra custa apenas R$ 5. Cruzou a fronteira da periferia impulsionado pelo alto poder viciante e a promessa de efeito mais vigoroso, atraindo dependentes de maconha e de cocaína que queriam experimentar sensações mais fortes.
Usuário de maconha desde os 15 anos e de cocaína desde os 18, o universitário de 23 anos, filho de um empresário bem-sucedido de Porto Alegre, havia prometido a si mesmo nunca chegar ao crack.
- Pedra é coisa de vileiro, de marginal - costumava dizer.
Acabou experimentando sem saber. Um amigo ofereceu um cigarro de maconha, sem avisar que havia crack. O rapaz reclamou, xingou, mas era tarde. Não conseguiu mais parar:
- Seis meses de crack me aniquilaram. São 15 segundos do maior prazer e uma eternidade de desgosto.
A derrocada do jovem - que estudou em um dos mais tradicionais colégios da Capital e mora em um apartamento luxuoso de uma avenida nobre de Porto Alegre - não foi diferente das tragédias da periferia. Em semanas, o crack alinha pobres e ricos na mesma ruína.
O estudante trocou tênis, roupas de marca e celulares por pedra, roubou dinheiro dos pais, chegou a gastar R$ 3 mil em crack em noitada com amigos, presenciou assassinatos à queima-roupa na boca-de-fumo. Definhou a ponto de ouvir apelos até dos traficantes.
- Pára de usar a droga, tu vais morrer - pediam.
Foi depois de ser expulso de casa e de trabalhar como manobrista para sobreviver que veio a oferta dos pais: um cheque de R$ 16 mil para se tratar em uma clínica de luxo em São Paulo. No vôo, pensou em desembarcar em uma escala no Rio e gastar o dinheiro em pedra. Escolheu o tratamento.
- O crack é a droga do rico que vira pobre - define hoje, abstinente.
A diferença fundamental entre ricos e pobres viciados em crack é o montante de dinheiro que cada um tem a perder na droga. Há ainda peculiaridades na logística do consumo. Um público seleto pode comprar crack nos endereços mais nobres da Capital, como o bairro Três Figueiras e a tradicional Avenida Carlos Gomes. Os que não querem se arriscar encomendam a droga com o taxista ou o motoboy de confiança.
- Por que o traficante está lá? Porque o consumidor também está - reconhece Álvaro Steigleder Chaves, diretor do Departamento Estadual do Narcotráfico (Denarc).
No dia em que foi flagrado pela polícia na boca-de-fumo em um hotel barato da Avenida Farrapos, o juiz anteviu a carreira de 10 anos na magistratura acabar em escândalo. Dominou-se e encarou o delegado:
- Não tenho nada a ver com isso. Vim visitar uma amiga. Sabe como é, sou casado...
Enquanto outros eram presos, conseguiu escapar. Aos 41 anos, casado e pai de três filhas, o magistrado era viciado em cocaína, depois de ter passado por álcool e maconha. Quando foi apresentado ao crack pelo traficante, três anos atrás, não conseguiu mais pensar em outra coisa. Costumava pedir a droga pela telentrega, mas, quando batia a fissura, ia aonde fosse preciso para obter alívio.
No trabalho, para justificar o ar cansado de quem havia virado a noite fumando crack, alegava gripes e até pneumonia. Gastou R$ 40 mil em drogas, foi ameaçado com uma arma na cabeça por um traficante e quase perdeu a mulher. Afirma estar abstinente há meses:
- Quem me vê de terno e gravata não acredita que usei essa droga.
O médico, de 36 anos, examina a própria história e não fecha diagnóstico: o crack foi diabo ou salvador? Ele passou mais de uma década sucumbindo e voltando do álcool, da maconha e da cocaína. Ainda assim, conseguiu formar-se em Medicina, ter emprego, mulher e filho. Mas em 2006 defrontou-se com o que chama de "fase final": o crack.
Em oito meses, perdeu a mulher, estacionou na profissão e ignorou a família. Percorreu clínicas particulares e consultórios de psiquiatras, mas foi no serviço gratuito da Cruz Vermelha que achou um caminho, o grupo Narcóticos Anônimos (NA). Está sem usar a droga. Mas fez o pior diagnóstico para um pai: por conta de seu comportamento, acredita ter causado "seqüelas irreparáveis" no único filho:
- Levei minha família à exaustão, à vergonha e à desesperança.
Zero Hora.
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