quinta-feira, 10 de julho de 2008

Artigo: Diagnóstico devastador

Títula na integra: Diagnóstico devastador: a influência das drogas lícitas no aumento da criminalidade, o direito de suicídio e a ineficácia da repressão penal ao tráfico de drogas ilícitas


O dramático quadro da crescente violência verificada no trânsito, contra mulheres e crianças, e mesmo do aumento de homicídios, vem revelando, com números cada vez mais expressivos, que grande parte dos autores dos crimes aludidos estava sob o efeito de bebidas alcoólicas.

Em 1976, o Legislador ordinário elaborou a conhecida Lei de Tóxicos (Lei 6.368/76). O fundamento lógico da Lei era reprimir o consumo de drogas porque, na oca mentalidade da incongruente “elite” brasileira, drogas estava associada ao estímulo à criminalidade. E de fato está. Mas qual droga?

A bebida alcoólica é uma substância entorpecente, por definição, já que ela tem a capacidade de produzir dependência física e psíquica. Assim diz a primeira parte da definição de entorpecente, contida na redação da Portaria SVS/MS 344/98: “Substância que pode determinar dependência física ou psíquica...”

Pesquisas recentes (1999 a 2004), no Brasil e em Lisboa (Portugal), revelam que Drogas que são comercializadas legalmente, como o álcool e o cigarro, matam mais do que as drogas proibidas.[1]

Essa também é uma das constatações da pesquisa divulgada pela Organização Mundial da Saúde sobre substâncias químicas que agem no cérebro humano. O estudo foi feito em 11 países, entre eles, o Brasil.

Ipso facto, há que refletir na seguinte questão: Comparativamente, o traficante de drogas poderia ser o vendedor de Cerveja ou Uísque, cujo produto encontra um destinatário fadado ao alcoolismo ou suscetível de, sob influência da bebida, cometer um crime.

Os números são insofismáveis. No mundo, 0,4% das mortes tem relação com o uso de drogas proibidas; 3,2% com o consumo de álcool; e 8,8% estão ligados ao fumo.

Diante desse diagnóstico devastador, porque será que na portaria SVS/MS 344, DE 12 DE MAIO DE 1998, foi insistentemente mantida fora da relação de drogas proibidas as bebidas que contêm álcool e o cigarro, se estes estão mais vinculados à criminalidade?

Como suposta razão, sugerem alguns estudiosos do tema, encontra-se a preocupação do Estado com a saúde e bem estar de todos, na sociedade. Um argumento que não deixa de ser hipócrita, ou mesmo preconceituoso, já que as estatísticas levam à conclusão de que são as drogas lícitas as responsáveis pela alta taxa de criminalidade e óbitos populacionais. Nesse ponto, o Estado acomodou-se.

A razão dessa comodidade está no costume social. É lição basilar da ciência do direito que o costume funciona como uma espécie de fato gerador da norma jurídica. O costume é filho da vontade, a qual deixa a solidão interior do coração humano e vem ao exterior na forma de um comportamento ou idéia ou ideal individual, até que, gradualmente, chega a influenciar uma família, uma comunidade, uma cidade, um Estado, um País e mesmo no planeta.

Uma rápida avaliação antropológico-cultural dos costumes brasileiros nos permitirá verificar que, em tempos mais remotos, estar sobre a influência de álcool, em público, era uma atitude que fazia supor a má índole do indivíduo. O cigarro, então, se não fora um charuto que só a nobreza tinha condições de possuir, levava à igual indução.

Com o passar dos anos, o consumo do álcool e do cigarro se tornaram não apenas comuns, mas fonte de renda para muitos. Eles são consumidos e comercializados em larga escala hoje. Ou seja, é costumeiro hoje em dia beber cerveja, uísque, vodka etc, ou mesmo fumar cigarros – em publico – sem que isso atraia ao indivíduo o reproche do poder repressivo estatal.

Assim como a utilização de determinadas drogas em público passa a causar a sensação de normalidade de uma conduta, também os costumes internacionais exerceram forte influência na elaboração da Lei de Tóxicos brasileira. Nas palavras da proficiente jurista Flávia Piovesan, “a adoção de um padrão internacional de saúde” [2] levou à incriminação, na lex pátria, de certas drogas consideradas na maior parte do globo terrestre como ilícitas.

Um problema exsurge dessa acomodação consuetudinária: há idoneidade e ética – do ponto de político-criminal – da repressão a certas substâncias entorpecentes, ao passo que há outras que são autorizadas, mas que as estatísticas insistem em revelar que a influência dessas agrava o problema da criminalidade no Brasil?

Absolutamente que não. E essa ação repressiva ao tráfico de drogas ganha um outro ponto que deve ser analisado: o direito individual, autônomo, de cada cidadão, de rejeitar a oferta estatal de “saúde à todos.”

Saúde é direito de todos (art. 196, CF). O mesmo texto constitucional diz que saúde é “dever” do Estado. O limite desse dever é a dignidade do cidadão, que engloba o conceito de liberdade de dispor desse direito. Para visualizar como isso é possível, basta olhar para o alcoólatra. Alcoolismo é um ato atentatório contra a saúde. O que faz o Estado? Apenas incentiva a recuperação. Mas não o pune. E isto é o certo, é o mais legítimo, de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana e o respeito às suas liberdades individuais ou autonomia.

A repressão às drogas ilícitas, por sua vez, não deveria se fundar no argumento de proteção à saúde de todos, mas o Estado poderia, com justiça, dispensar aos usuários daquelas, incluindo seus vendedores, o mesmo trato que dispensou ao consumidor ou vendedor de bebidas intoxicantes e cigarros.

Ora, considerando que a constituição federal assegura o “direito à saúde” inerente a cada pessoa humana, residente no Brasil, o simples fato de ser um direito já haveria, por si só, de suprimir ao Estado a ação repressiva contra pessoas que consomem substância entorpecente. È que a liberdade de dispor da própria saúde não encontra vedação constitucional.

Ainda crianças, aprendemos que ninguém tem o direito de tirar a vida de outrem e nem mesmo a sua própria. Os preceitos religiosos e as leis das nações exerceram grande influência nesse pensamento. O caráter de muitas pessoas de bem cuida de manter essa “proibição” firmemente sedimentada no âmago mais profundo da consciência individual. E essa consciência foi disseminada na sociedade ao ponto mesmo de pressionar o poder público a tutelar, no âmbito constitucional, o direito de “todos” à saúde como sendo “dever” do Estado assegurá-lo (art. 196, CF).

Com efeito, a lex matter do Estado Brasileiro estabelece o direito à saúde e à vida. Há, no entanto, silencio sobre o direito à morte. Evidentemente, assegurar ampla proteção à vida e liberdade sugere que a preocupação da Carta Magna é com o direito à vida, partindo de uma pressuposição natural de que o normal é que cada ser humano deseje defender e ter defendido tal direito. Mas convivemos com a hipótese de alguém, por alguma razão ou circunstância, dispor desse direito por conta própria. Tanto é que no Código Penal de 1940 existe a previsão normativa que impede a instigação ao suicídio (art. 122). Instigar é um verbo que indica a realização de uma conduta de alguém (terceiro) para com outrem. O suicídio é fato atípico, mas resta saber se é um direito subjetivo.

Tudo está a indicar que o ato suicida é um direito subjetivo da pessoa humana, sendo vedada ao Estado a intervenção nessa questão tão íntima. Direito por derivação, já que deflue de outro inerente a todo ser humano: a liberdade de escolha.

Uma vez que o suicídio é uma decisão que nasce no âmago de uma pessoa, sendo ato íntimo desta e que não deve ser instigado (art. 122, CP), o único papel do Estado é o de prover, solidariamente, condições e meios para evitar que o ser humano tome tal decisão, assim como fomenta campanhas contra o tabagismo, alcoolismo etc. Isto porque os meios repressivos revelaram-se ineficientes para chegar a um resultado positivo quando o assunto é depressão e ou sentimento de exclusão social. As cadeias públicas são, provadamente, escolas de criminalidade e insalubridade, inaptas para auxiliar em tais casos.

Ora, alcançando o suicídio, em suas diversas modalidades, o status de direito subjetivo, há que se questionar a legitimidade do Estado para intervir repressivamente nesse direito, já que é ele mesmo dotado do dever de zelar pela saúde dos cidadãos (art. 196, CF), mas que deve, por força de nova política criminal do SISNAD [3], devotar respeito à autonomia e à liberdade dos mesmos (art. 4°, I, da Lei 11.343/2006).

Sabe-se que o suicídio pode dar-se tanto de forma instantânea como de maneira gradual. Interessa-nos a última hipótese, já que o consumo de entorpecentes afeta a eficiência dos órgãos do corpo e equivale a um tipo de suicídio escalonado.

As drogas [4] – lícitas ou não – quando não causam dependência psíquica ou física, geram algum tipo de destruição orgânica ou psíquica, que podem ser de ordem rápida ou gradual. O uso de drogas, a teor na nova política do SISNAD, tem recebido tratamento mais brando do que a mercancia (Lei 11.343/2006).

Sendo o consumo de entorpecentes um meio que destrói a saúde individual do usuário, observamos que o Estado tem buscando legitimar sua intervenção com o fundamento de cumprir seu munus legal que é garantir a eficácia do direito de saúde a todos, indistintamente. Mas se o intuito é garantir a dignidade dos seus membros, de assegurar a saúde dos mesmos, o que leva o Estado a buscar punir o traficante de drogas que, na maioria esmagadora dos casos, é, também, um usuário?

É um fato interessante que o discurso do Estado como “guardião da saúde alheia” é traído pela maneira severa com que os agentes públicos e a legislação opressiva têm tratado os presos acusados de tráfico de entorpecentes ou uso de substâncias psicotrópicas proibidas. Na prática, o Estado está punindo quem alega querer salvar das drogas, lotando presídios insalubres, conduta que encerra nítida contradição. O tráfico de drogas só gera violência que atemoriza a sociedade porque há o combate do Estado, combate opressivo. Se o traficante de drogas ilícitas pudesse ser equiparado ao dono de bares e boates, não haveria tantas mortes. É tudo uma questão de visão social a cerca da atividade de venda de certos tipos de drogas.

Além disso, é constatável que o intervencionismo estatal no direito subjetivo de agredir a si mesmo mediante uso de drogas é fora de seu lugar, porque, como já visto, há o direito de se suicidar lentamente, não proibido pela lei. Mais uma vez, fica claro que a repressão ao tráfico, o derramamento de sangue e horrendos gastos com a repressão, revelam uma ação estatal ilógica, irrazoável, contraditória, motivada por um costume social de repudiar certos tipos de drogas e marginalizar, assim, os que dela fazem uso.

Se o intuito do Estado em garantir a saúde de seus cidadãos fosse, de fato, o grande motivo que o leva a agir repressivamente contra o tráfico, ao ponto mesmo de se envolver em uma espécie de guerra civil, haver-se-ia de englobar nessa luta a proibição do consumo de bebidas alcoólicas e outra drogas lícitas. Afinal, elas também atentam contra a saúde das pessoas e, no entanto, são vendidas em toda esquina, sem qualquer fiscalização, a despeito de serem a causa maior do aumento da criminalidade.

Por derradeiro, sabe-se que o Brasil tem grandes exemplos de leis feitas para benefício de classes dominantes. E o resultado da incriminação de vários tipos de drogas que poderiam figurar no rol das lícitas não poderia ser outro, senão a deflagrada perseguição das maiorias menos favorecidas da sociedade, marginalizadas pela exclusão social e que, via de regra, não contam com o Estado que lhes deve um direito à educação, saúde, dignidade etc.

Com isso, pode-se facilmente identificar que não são os efeitos nocivos, em si, a única causa que leva à incriminação de uma droga perante a lei. Existe uma razão que a observação dos fatos não deixa escapar: o fato de certas droga ser um dos objetos de consumo de classes economicamente dominantes no país repercute na sua criminalização ou não. Essa a ratio que explicaria, salvo melhor juízo, porque nicotina sim e maconha não; porque álcool, em largos goles e grande escala sim, e 05 (cinco) gramas de cocaína não.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E NOTAS

[1] COSTA, Carlos; LEAL, José. A Criminalidade Associada à Droga: evolução comparativa 1996-1999 e 2003-2006, Lisboa, Setembro de 2004. Disponível em: http://www.policiajudiciaria.pt/htm/dados_estat/criminalidade.pdf. Acesso em: 07 de abril de 2008.

[2] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7ª sd. São Paulo: Ed. Saraiva, 2006. p. 124.

[3] Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas.

[4] No caso em questão, empregamos o termo “droga” com a acepção de substância entorpecente, alucinógena, excitante etc.



Por Saulo Henrique Silva Caldas, Assessor jurídico/SE, Assessor jurídico e ex-assessor da Procuradoria Geral de Justiça de Sergipe (de 2003 a 2007).


CALDAS, Saulo Henrique Silva. Diagnóstico devastador: a influência das drogas lícitas no aumento da criminalidade, o direito de suicídio e a ineficácia da repressão penal ao tráfico de drogas ilícitas. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 10.07.2008.

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