sábado, 5 de julho de 2008

Artigo: Desacato ao País

manhã de sábado, dia 14 de junho, três jovens desceram de um táxi, vindos de um baile, quando foram abordados por uma patrulha do Exército no Morro da Providência, favela do centro do Rio de Janeiro. Alega-se que teria ocorrido um desacato, razão por que foram os três encaminhados ao quartel, onde se registrou o fato. Em vez de serem liberados, como determinara o oficial do quartel, o tenente que se sentira ofendido, os três sargentos e os sete soldados presentearam os rapazes a delinqüentes da facção Amigos dos Amigos (ADA), que domina o Morro da Mineira, reconhecidamente inimigos dos habitantes do Morro da Providência.

Os rapazes, jovens trabalhadores, foram trucidados pelos delinqüentes do Morro da Mineira, eficientes cumpridores do mandato que lhes outorgaram o tenente, os sargentos e os soldados, feridos em sua sensível "honradez" militar.

Se o desacato consiste na afronta à autoridade e à dignidade do servidor público, o tenente, os sargentos e os soldados afrontaram a lei e a ordem do País, às quais devem, por preceito constitucional, a mais absoluta obediência, conspurcando a farda que vestem.

Se houve desacato, portanto, foi ao País, por parte do oficial e de seus subordinados, arquitetos de uma ação vingativa, ao se arrogarem a condição de autoridade, quando eram apenas uns covardes ao fazerem executar inocentes pela mão de delinqüentes, dos quais se transformaram em mandantes.

Em 1981 escrevi um artigo sobre o episódio do Riocentro, no qual um oficial e um sargento do Exército acabaram vítimas de si mesmos ao estourar no carro em que estavam a bomba que fariam explodir em meio a 20 mil espectadores do show do Dia do Trabalho, nos estertores da ditadura. O sargento morreu, o capitão feriu-se. Naquele momento, lembrei ato praticado por tenente do Exército e seus subordinados no denominado caso Satélite, denunciado com indignação por Ruy Barbosa no Senado Federal em 1914. Terminava o artigo indagando: "Até quando Ruy terá razão?"

Passados 27 anos, só posso dizer que Ruy ainda tem razão. O que Ruy, o patrono da cidadania, dizia?

Em 25 de dezembro de 1910, zarpava do Rio de Janeiro o navio Satélite com centenas de presos em seus porões, retirados das solitárias do presídio da Ilha das Cobras, em direção a Manaus, para cumprirem desterro no Acre. Eram marinheiros detidos durante o estado de sítio, que já se esgotara. Oito ex-marinheiros, não prisioneiros, foram convidados a ir a Manaus. A escolta no navio era composta de dois tenentes e 50 praças do Exército. O navio aportou na Bahia e depois no Recife.

Em 31 de dezembro, ao largo da costa de Pernambuco, desconfiaram o tenente e os soldados do Exército que os oito ex-marinheiros, então passageiros, viriam a ajudar os presos a se sublevarem. Foram detidos, postos a ferros e depois sumariamente fuzilados, sendo os corpos jogados ao mar. O Exército, meses depois, quando se denunciou a barbárie, justificou o morticínio com a escusa de que a tropa, desacostumada com o mar, estava exausta com a vigília e o enjôo, agindo em legítima defesa diante da iminente sublevação.

Em face desse fuzilamento sumário, dizia Ruy: "Que somos, que ficamos valendo todos nós neste país, de ora em diante?" Temia Ruy que a semente então espalhada nesses atos se propagasse a brotar sua florescência sinistra e que houvesse vítimas amanhã de atentados semelhantes.

Sentia-se cheio de vergonha e desanimado diante dos dolorosos e ferozes acontecimentos e lamentava a "miséria da linguagem humana, esgotada, gasta, já sem serventia para servir de látego sobre a cabeça de criminosos desta categoria e desta monstruosidade".

Ruy concluía que as leis mentem. Digo hoje, parafraseando o grande tribuno, que a Constituição mente, pois proíbe a pena de morte, assegura o devido processo legal, protege a liberdade e a vida, mas todos esses direitos e garantias se arruínam a tal ponto que um tenente e sargentos do Exército, tal como no navio Satélite, clandestinamente mandam matar inocentes de forma sumária.

Pior o caso do Morro Providência do que o do navio Satélite. Em 1910, os militares fuzilaram covardemente, mas com as próprias mãos. Hoje, covardemente, deixaram o serviço sujo aos delinqüentes que deveriam reprimir, dos quais se tornaram devedores e sócios. Em vez de velarem pela ordem e pela paz social, puseram o Exército contra a população civil do País, que juraram defender.

Se já constitui um mal o violador da lei assumir a posição de protetor da lei - o que tem sucedido muitas vezes -, mais inseguro, no entanto, é constatar que o mantenedor da ordem se transforma em infrator para atingir a vida e a liberdade dos membros da comunidade. Instala-se o medo definitivo, a descrença absoluta.

Se o tenente, em 1910, comandante da tropa no navio Satélite foi depois condecorado pelos bons serviços prestados, se o capitão do Riocentro veio a ser logo depois promovido a major, espera-se, com a presença do ministro da Defesa ao apresentar desculpas às mães dos jovens assassinados, e com a prisão preventiva decretada pela 2ª Auditoria Militar do Rio de Janeiro, que o espírito de corpo, que é grande, não prevaleça, como o único caminho possível para, em longa duração, se restabelecer a confiança nas autoridades.

Não há dia em que não se veja nos jornais notícia de violência praticada por agentes da lei. Policiais estão mancomunados com assaltantes, quando não dirigem a ação criminosa. Policiais ligam-se a grupos de extermínio e a milícias. Policiais fazem, nas esquinas das grandes cidades, transitar em julgado a condenação à morte de indigitados delinqüentes, sempre com a escusa de agir no cumprimento do dever legal.

O temor de Ruy Barbosa, infelizmente, tinha procedência, pois efetivamente brotou a florescência sinistra. Até quando Ruy terá razão?


Por Miguel Reale Júnior, advogado, professor-titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Estadão

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