terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Artigo: A retirada do réu da sala de audiência e o novo artigo 217 do CPP

Lamentavelmente, observa-se que virou rotina, no foro criminal, a retirada do réu da sala de audiência, supostamente com fundamento no artigo 217 do CPP, em sua redação original. Antes de iniciar a inquirição das vítimas e testemunhas, os juízes normalmente lhes perguntam se preferem depor na ausência do acusado, independentemente da prática de qualquer conduta ameaçadora ou intimidativa deste.

Esse costume judiciário — que conta com o apoio da doutrina e da jurisprudência do STF e do STJ(1) — contraria frontalmente o citado dispositivo legal, que exige uma atitude efetiva do réu capaz de influir no ânimo do ofendido ou da testemunha. Se isso não ocorre, a retirada viola — além da norma contida no artigo 217 — o direito assegurado ao imputado de presenciar os atos processuais (uma das facetas da ampla defesa), previsto na Constituição da República (artigo 5º, inciso LV) e no Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque (artigo 14, 3, “d”), ratificado pelo Brasil, aprovado pelo Decreto Legislativo n. 266, de 12.12.91, e promulgado pelo Presidente da República mediante o Decreto n. 592, de 06.07.92 (Delmanto et al, 2003).

Nesse contexto, veio a lume a Lei n. 11.690, de 9 de junho de 2008, que alterou a redação, dentre outros, do referido artigo 217, legalizando a infeliz prática judiciária. Segundo o novo texto legal, basta que a testemunha (ou vítima) sinta-se humilhada, atemorizada ou constrangida, para que o juiz determine a inquirição por videoconferência, e, na impossibilidade de utilização dessa forma, ordene a retirada do acusado. Não importa se o réu praticou ou não alguma conduta, nem o motivo alegado (objetivo ou subjetivo, razoável ou não), revelando que o tema não foi tratado de forma adequada pelo legislador.

De início, recordemos que o direito conferido ao réu de presenciar os atos processuais não tem fundamento meramente legal, mas constitucional (artigo 5º, inciso LV). Lembre-se, ainda, que o Pacto Internacional acima mencionado assegura ao imputado, de forma explícita, o direito de presença (artigo 14, 3, “d”). Ainda que não se atribua a esse tratado a estatura de norma supraconstitucional (Mello apud Mazzuoli, 2000) ou constitucional (Grinover apud Mazzuoli, 2000), não há mais como negar o seu caráter supralegal(2). Logo, não poderia uma lei ordinária restringir um direito estabelecido por norma superior.

Alega-se, em sentido oposto, que nenhum direito é absoluto (Fudoli, 2008), podendo, portanto, haver restrição legal a direitos previstos constitucionalmente, desde que observados os postulados da razoabilidade e proporcionalidade. É evidente, porém, que tais critérios não foram observados pela nova lei, que permite a retirada do réu independentemente de qualquer conduta deste e da existência de motivos objetivos e razoáveis. Além do mais, a restrição ao direito de presença não é medida necessária nem adequada ao regular desenvolvimento da audiência. Se o réu ameaçar ou intimidar vítima ou testemunhas, poderá vir a ser responsabilizado criminalmente (artigo 147 do CP) e ter a sua prisão preventiva decretada (com fundamento na conveniência da instrução criminal), sem prejuízo da inclusão daquelas em programa especial de proteção (Lei n. 9.807/99).

Veja-se que o direito de presenciar os atos processuais é tão fundamental que está consagrado de forma expressa na Constituição dos Estados Unidos da América (6ª emenda), e a Suprema Corte desse país só admite restringi-lo — excepcionalmente — em caso de comportamento desordeiro, desrespeitoso ou atemorizador por parte do imputado (Ramos, 2006), o que se mostra razoável(3).

Sabe-se, também, que a prova testemunhal, em regra, é utilizada como principal fundamento para a condenação, diante da precariedade da investigação criminal feita no Brasil. E quem milita na seara penal sabe a importância crucial da presença do acusado na audiência ao lado de seu defensor, auxiliando-o na formulação das perguntas (Fernandes, 2000). Logo, se é para admitir restrições ao direito de presença, que estas sejam feitas em casos realmente excepcionais.

Atente-se, ainda, para o fato de que o direito conferido à acusação de ouvir ofendido e testemunhas sem influências indevidas não possui maior importância do que o direito do réu de confrontá-las, não podendo, assim, prevalecer sobre este em caso de conflito. O objetivo do processo não é mais descobrir a “verdade real” a qualquer preço (Lopes Jr., 2007).

Concluímos, portanto, que a retirada do acusado da sala de audiência somente pode ser determinada em caráter absolutamente excepcional, caso o réu tenha um comportamento capaz de influenciar indevidamente aquelas pessoas que serão ouvidas. E, nesse caso, deve-se garantir-lhe a possibilidade de assistir ao ato, por videoconferência. Em nosso sistema processual (acusatório), o réu é sujeito de direitos e não mais objeto do processo. Deve ser tratado como inocente até a condenação irrecorrível e ter a sua dignidade respeitada (artigos 1º, III, e 5º, LVII, da CF/88). Somente com essa interpretação é possível salvar a novidade legislativa e evitar a sua retirada do ordenamento jurídico.

Referências bibliográficas

DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR, Roberto; DELMANTO, Fábio Machado de Almeida. “A retirada do acusado da sala de audiências”, Tribuna do Direito, São Paulo, outubro de 2003, p. 26. Disponível em . Acesso em 27 jun. 2008.

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 2000.

FUDOLI, Rodrigo de Abreu. “Lei nº 11.690/08: reforma do tratamento das provas no Código de Processo Penal”, Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1821, 26 junho de 2008. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2008.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. “Hierarquia constitucional e incorporação automática dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos no ordenamento brasileiro”, Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 37, n. 148, pp. 231-250, out./dez. 2000. Disponível em: . Acesso em: 02 jul. 2008.

RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de Processo Penal Norte-Americano. São Paulo: RT, 2006.

Notas

(1) STF, HC 67.711, 1ª Turma, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 04/03/06; STJ, HC 62.393, 6ª Turma, rel. Maria Thereza de Assis Moura, j. 04.10.07.

(2) Cf. o voto do min. Gilmar Mendes no RE 466.343-1/SP, rel. min. Cezar Peluso (julgamento ainda não concluído).

(3) No caso Illinois v. Allen, 397 US 337 (1970), a Suprema Corte assentou que “um dos mais básicos direitos contidos na cláusula de confrontação é o do acusado estar presente na sala durante cada um dos momentos processuais de seu julgamento” (Ramos, 2006).


João Fiorillo de Souza, Defensor público do Estado de Alagoas, especializando em Ciências Penais pela Unisul – Ipan – Rede LFG

SOUZA, João Fiorillo de. A retirada do réu da sala de audiência e o novo artigo 217 do CPP. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 192, p. 4-5, nov. 2008.

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