quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Artigo: O momento consumativo do roubo próprio

A previsão dos antigos doutrinadores de que o desenvolvimento da sociedade acarretaria um recrudescimento dos delitos de fraude em detrimento dos violentos não se perfez. Ao contrário, o aumento populacional e a migração para os centros urbanos sem a melhoria da divisão de rendas e dos meios de educação levou à majoração dos delitos violentos e daqueles praticados mediante fraude.

Prova cabal disso encontra-se na circunstância, conhecida por todos os operadores do sistema penal, dos reiterados acontecimentos de roubos que diariamente nos vemos obrigados a arrostar.

Não obstante a grande freqüência de tais condutas, a determinação de seu momento consumativo permanece sujeita a controvérsias. De fato, no que toca à consumação do roubo a propositura das ações penais e suas decisões têm sido das mais variadas.

Para alguns o roubo próprio consuma-se com o mero emprego da grave ameaça ou da violência, para outros é necessário a concomitante subtração, ainda terceiros exigem que o agente tenha tido a posse "mansa e pacífica" do bem subtraído.

A questão é de fundamental importância pois pode significar a diferença entre o efetivo encarceramento do agente ou sua colocação em liberdade (através, v.g., da concessão da suspensão condicional da pena).

O presente estudo visa contribuir ao deslinde da questão sempre observando que o objeto da análise cinge-se ao roubo próprio sem o evento morte ou lesão grave que serão apreciados noutras oportunidades.

Para determinar o momento em que se consuma o crime é necessário, primeiro, enfocar o bem, ou bens, que se mira assegurar com a tipificação da conduta, pois como lembra Nuvolone(1): "A pesquisa do objeto do crime é solidamente associada à interpretação da norma que prevê o fato genérico."

Ao descrever a conduta o legislador fez menção a subtração realizada com o emprego de violência ou grave ameaça.

Dessarte, tutela-se a integridade corporal (física ou psíquica), a liberdade pessoal (que podem ser ofendidas com o emprego da violência ou da grave ameaça) e o patrimônio (que é ofendido com a subtração).

Trata-se, portanto, de crime pluriofensivo, vez que lesa mais de um bem jurídico; e complexo pois decorrente da fusão de outros tipos incriminadores (furto e alguma das infrações contra a pessoa — v.g., vias de fato, lesão corporal, constrangimento ilegal, ameaça etc..). Ou como quer Echandía(2): "Os tipos complexos ou de conduta pluriofensiva se caracterizam, em câmbio, porque simultaneamente protegem vários interesses jurídicos, sem prejuízo de que um de tais bens seja independentemente tutelado em outro tipo."

A consumação nos crimes pluriofensivos exige a exposição à perigo, ou dano efetivo, a todos os bens protegidos. Não basta a ofensa a um deles, é necessário que todos tenham sido atingidos (lesados ou expostos à risco).

Logo, para que se tenha ultimado o roubo é fundamental que o patrimônio e a liberdade pessoal ou a integridade da vítima tenham sido atingidos.

Na ausência de lesão ao patrimônio ou aos atributos da pessoa (integridade ou liberdade) o delito somente pode ser tido por tentado.

Grande parte dos doutrinadores afirma que o roubo se consuma com a realização da subtração de igual maneira ao delito de furto (nesse sentido é a lição de: Fragoso, Heleno Cláudio, Lições de Direito Penal, Parte Especial, Volume I, Rio de Janeiro, Forense, 1987, p. 290; Hungria, Nelson, Comentários ao Código Penal, Vol. VII, Rio de Janeiro, Forense, 1955, p. 58; Jesus, Damásio Evanvelista de, Direito Penal, 2º Volume, São Paulo, Saraiva, 1991, p. 298; Noronha, Edgard Magalhães, Direito Penal, Volume 2, São Paulo, Saraiva, 1988, p. 246 e Antolisei, Francesco, Manuale di Diritto Penale, Parte Speciale, I, Giuffrè, 1994, p. 352).

Com isso somos remetidos a análise da consumação do furto.

O procurador de justiça Wiliam Wanderley Jorge(3) ensina que "A respeito da consumação do crime de furto há as seguintes teorias: a) contrectatio - é suficiente à consumação do crime o agente tocar a coisa; b) apprehensio rei - é suficiente o agente segurar a coisa para ocorrer a consumação; c) amotio - desde que o agente consiga remover a coisa, haveria a consumação; d) ablatio - para esta teoria, além da remoção era preciso que o agente conduzisse a coisa ao lugar destinado, ou seja, que a transportasse a outro local."

É certo, no entanto, que nenhuma dessas teorias, ditas espaciais, são hoje admitidas em sua globalidade.

Tratando-se de furto tem-se exigido, para a admissão da consumação, que o agente tenha conseguido a "posse mansa e pacífica" da coisa.

Essa exigência decorre do entendimento de que somente ocorre a subtração completa quando o sujeito passivo perde o poder de disposição sobre a coisa, e tal perda do poder de disposição teria lugar quando o agente lograsse atingir a posse não perturbada. Antes deste momento a vítima sempre poderia retomar o contato material com o bem. Daí a detenção legítima teria sofrido perigo mas não teve lugar o dano efetivo e, em conseqüência, não haveria a consumação (nesse sentido é a lição de Hungria, Nelson, obra citada, p. 23; Jorge, Wiliam Wanderley, obra citada, p. 382 e Dutra, Mário Hoeppner, O Furto e o Roubo, São Paulo, Max Limonad, 1955, p. 74).

Em suma, o furto somente atinge a consumação com a retirada da coisa da esfera de disponibilidade da vítima e tal ocorre quando o agente tem a posse indisputada do bem subtraído e, como visto, os doutrinadores aplicam o mesmo critério quando se trata de roubo.

Também a jurisprudência tem-se inclinado para a admissão de tal postura como se vê nas decisões encartadas em Jutacrim 78/248 (TACrim-SP, Ap., rel. Canguçu de Almeida), 82/472 (TACrim, Ap., Rel. Ercílio Sampaio) e 76/192 (TACrim, Ap., Rel. Rocha Lima).

Não nos parece, no entanto, que possa ocorrer a transferência pura e simples do critério adotado para a definição do momento consumativo do furto para o do roubo.

De fato, a ocorrência da violência ou da grave ameaça é elemento que não pode ser avaliado como irrelevante em relação ao instante em que o patrimônio é lesado e, como corolário, em que se consuma o roubo.

Doutro lado, a expressão "posse mansa e pacífica" (da coisa subtraída pelo agente) tem sido usada como decorrência da "perda da disponibilidade do bem pelo sujeiro passivo". Isto é, o sujeito passivo perde a disponibilidade da coisa e, em resultado, surge a "posse mansa e pacífica" da coisa pelo sujeito ativo. O que, como se verá, nem sempre ocorre, podendo haver a perda da coisa pela vítima sem que o agente tenha dela obtido a posse.

A melhor definição de patrimônio é aquela dada por Mantovani(4) pela qual esse corresponde ao complexo de relações jurídicas de uma pessoa, tendo por objeto coisas dotadas de função instrumental com capacidade de satisfazer necessidades humanas, materiais ou espirituais. O autor lembra que tal definição permite, enquanto embasada no conceito de relação jurídica: não tutelar penalmente as relações de fato com a coisa, instaladas de modo desaprovado pelo direito; incriminar as agressões que, ainda que não importando em diminuição econômica do patrimônio, reduzam sua instrumentalidade; e justificar a incriminação, entre os delitos contra o patrimônio, também das agressões que impliquem em mera turbação da utilização do bem.

Dessarte, haverá lesão ao patrimônio toda vez que ocorrer sua diminuição econômica ou impedimento para a sua utilização plena.

Por outro lado, subtrair é fazer desaparecer, retirar, tirar, diminuir, deduzir. Logo, subtrair, no sentido empregado pelo código, é retirar algo de alguém.

Agregando-se o conceito de patrimônio temos que a subtração deve implicar na diminuição do valor econômico, ou na redução da instrumentalidade do patrimônio no sentido de que o sujeito passivo deve experimentar uma mitigação da capacidade de utilização das relações jurídicas de que é titular, ou, ainda, na turbação, ainda que momentânea, das relações entre o titular e os bens ou direitos.

Ora, a violência ou grave ameaça, quando utilizadas como meio para obtenção para a prática do roubo, podem fazer cessar de imediato o poder de disposição que o legítimo possuidor tem sobre a coisa sem que, no entanto, tenha se instaurado a "posse mansa e pacífica" do agente sobre o bem.

Basta imaginar a hipótese em que a coisa vem a ser perdida ou destruída durante a prática do roubo. Nesse caso o agente dela não obteve a posse e houve a perda patrimonial para a vítima. Ou ainda, a hipótese em que o agente consegue tomar o bem, porém, é longamente perseguido, não obtendo, assim, a tranqüilidade da posse. Nesse lapso temporal, em que o agente mantêm consigo o produto do roubo, é indisputável que a vítima experimentou diminuição na disposição de seu patrimônio.

Em qualquer desses casos os elementos integradores do tipo encontram-se presentes (emprego de violência, ou grave ameaça, e subtração do bem) e o sujeito ativo do delito não obteve a posse mansa e pacífica do bem.

Perceptível, portanto, que o critério da consecução da posse mansa e pacífica pelo autor não é válido como determinador do momento consumativo do delito de roubo.

O erro de tal critério reside em exigir que o autor do roubo tenha tido proveito com a prática do delito quando tal elemento não é exigido pelo tipo penal. A vantagem, benefício, com a realização da subtração violenta é mero exaurimento do delito e não elemento de sua integração.

De fato, ao contrário do que ocorre no Código Penal Italiano, no qual o apossamento da coisa subtraída pelo agente, ou por outrem, faz parte da descrição do roubo (rapina)(5), no Código Penal do Brasil a descrição da conduta não exige tal circunstância, contentando-se com a subtração.

É dizer, para a lei nacional basta que a subtração tenha sido realizada para si ou para outrem mas não é necessário que o agente, ou outro, tenha conseguido a posse da coisa. Observe-se que subtração e posse, ou detenção, são conceitos bem distintos ainda que usualmente, mas não obrigatoriamente, como aliás já visto, a realização do primeiro dê lugar ao segundo.

Logo, o critério da obtenção da posse para a determinação do momento consumativo do roubo não encontra amparo legal. A insuficiência de tal princípio é tão patente que leva os operadores do sistema penal a um verdadeiro casuísmo. Assim é que para se determinar quando ocorreu a posse pacífica são utilizados meios dos mais inusitados. Em alguns casos chega-se a exigir que se tenha perdido o autor de vista (portanto, sempre que a vítima for cega o roubo estará consumado, ou, por outro, sempre que o agente, por exemplo, dobrar uma esquina, completa estará a subtração violenta) como se a integração do crime pudesse estar à mercê da maior ou menor acuidade visual da vítima ou da existência, ou não, de uma esquina.

Como já visto, grande parcela dos doutrinadores assevera que o crime roubo, "tal como o de furto, somente se consuma quando a coisa sai da esfera de vigilância da vítima"(6).

O problema é que o critério da saída do bem da esfera de vigilância da vítima não é aplicável ao roubo.

Como ensinam Fiandaca e Musco(7): "A subtração é aquela conduta que determina a saída da coisa do poder de fato do precedente possuidor: ela equivale, em outras palavras, à eliminação da posse alheia, ao desapossamento."

Logo, no furto, a subtração ocorre quando o agente consegue fazer com que a coisa saia da esfera de vigilância do antigo possuidor(8).

Porém, no roubo a coisa é extraída do poder de fato da vítima, não em virtude dela ter perdido a vigilância sobre a coisa, mas sim por não poder exercer tal cuidado em decorrência do obstáculo consubstanciado na violência ou grave ameaça exercidos pelo agente.

Isto é, a posse deixa de existir por se ter rompido a relação de fato entre a vítima e a coisa, por se ter extraído o bem da esfera de disponibilidade do sujeito passivo com o emprego da violência ou grave ameaça.

A distinção não é meramente acadêmica. Basta pensar na hipótese em que a vítima permanece amarrada enquanto o agente dispõe de seus bens. A vigilância continua a ser exercida mas a disponibilidade sobre os bens desaparece.

Bem se percebe que o conceito de subtração acaba por ser modificado pela existência da violência ou grave ameaça.

Portanto, o correto seria afirmar que: tal como no furto, o roubo se consuma com a perda da posse sobre a coisa, sendo que naquele isso ocorre quando o bem sai da esfera de vigilância da vítima e nesse quando, ainda que permanecendo a vigilância, o bem é extraído de sua esfera de disponibilidade.

De todo o exposto percebe-se que o roubo próprio consuma-se tanto que, empregada a violência ou grave ameaça, tenha a vítima ainda que momentaneamente, perdido a disponibilidade sobre a coisa, tenha o agente, ou não, obtido a posse mansa e pacífica dele.

Com tal critério, fica eliminada a necessidade de que o agente tenha obtido a posse do bem, reconduzindo-se o momento de consumação aos ditames da figura típica (já que esta não faz qualquer menção a apossamento da coisa pelo sujeito ativo).

Doutro lado, a menção de perda da disponibilidade dos bens conduz à idéia de instrumentalidade do patrimônio o que possibilita sua maior garantia.

Por fim, com a aludida recondução, evita-se a insegurança de multiplicidade de critérios para a determinação do momento consumativo do roubo próprio, tal como vem ocorrendo, já que ora se emprega o critério da posse, ora do perdimento do bem.

Notas

(1) Nuvolone, Pietro, I Limiti Taciti Della Norma Penale, Padova, Cedam, 1972, p. 50.

(2) Echandía, Reyes, Tipicidad, Bogotá, Temis, 1989, p. 128.

(3) Jorge, Wiliam Wanderley, Curso de Direito Penal, Rio de Janeiro, 1989, p. 381.

(4) Mantovani, Ferrando, Diritto Penale, Padova, Cedam, 1989, p. 18.

(5) No Código Penal Italiano o roubo próprio vem previsto no caput do art. 628 que, em tradução livre, tem a seguinte redação: "Quem quer que, para obter para si ou outrem um proveito injusto, mediante violência a pessoa ou ameaça, apossar-se de coisa alheia móvel, subtraindo-a de quem a detêm, é punido com reclusão de três a dez anos e com a multa de um milhão a quatro milhões de liras." Na língua original: "Chiunque, per procurare a sé o ad altri un ingiusto profitto, mediante violenza alla persona o minaccia, s'impossessa della cosa mobile altrui, sottraendola a chi la detiene, è punito com la reclusione da tre a dieci anni e com la multa da lire un milione a quatro milioni."

(6) Mirabete, Julio Fabbrini, Manual de Direito Penal, Parte Especial 2, arts. 121 a 234 do CP, 10ª ed., São Paulo, Atlas, 1996, p. 235.

(7) Fiandaca, Giovanni e Musco, Enzo, Diritto Penale, Parte Speciale, Volume II, Tomo Secondo, Delitti contro il patrimonio, Bologna, Zanichelli, p. 51.

(8) Vale lembrar que nessa definição não é exigido que o furtador tenha instaurado nova relação de posse (do furtador para com a coisa subtraída). É que a lei nacional, como já aludido, não exige, como a lei italiana, que o agente venha a se apossar da coisa.


Luiz Roberto Cicogna Faggioni, Promotor de justiça em São Paulo, mestre em Direito Penal e professor da Universidade Paulista (Unip).

FAGGIONI, Luiz Roberto Cicogna. O momento consumativo do roubo próprio. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.53, p. 08-09, abril 1997.

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